Não podemos olhar para a nova estrutura de Wall Street a partir de uma posição de divindade omnisciente que procura criar o sistemafinanceiro perfeito porque tal posição não existe. Em alternativa, temos de a analisar a partir da perspectiva do que pode ser alcançadona prática, quer através do mercado, quer pela via de uma regulação finita e plausível. Através das políticas monetária e fiscal, é possível
influenciar positivamente as condições de mercado de forma que os padrões de comportamento institucional se desloquem na direcção certa. Acima de tudo, uma regulação bem seleccionada pode evitar os abusos no decurso de bolhas, não obstante o facto de grande parte do trabalho poder ser feito através de uma política monetária rigorosa.

O próprio abrandamento provocou grandes alterações institucionais. Se no passado se considerava que os bancos de muito grande dimensão seriam provavelmente “demasiado grandes para falirem”, não havia certezas quanto a isso. Além disso, a função mais importante no financiamento empresarial era desempenhada pelos bancos de investimento, relativamente aos quais não havia qualquer pressuposto à época. Hoje, não existem bancos de investimento de grandes dimensões, e as instituições financeiras muito grandes, de uma forma geral, mostraram-se elas próprias não só vulneráveis, mas também candidatas a uma ajuda governamental em caso de falência.

Assim, ainda que pretendêssemos regressar à versão de Wall Street de 1995-2008, não o poderíamos fazer. O primeiro problema que temos para solucionar é o que fazer com instituições que são “demasiado grandes para falirem”. Claramente, não lhes deve ser permitido endividarem-se, como o fizeram os bancos e os bancos de investimento nos anos da bolha, nem lhes deve ser permitido efectuar transacções
de capital de “cauda grossa” e elevado risco, nem tão pouco investir mais do que somas modestas em capital de risco e outros títulos ilíquidos e de risco. De igual modo, deve haver um lugar para instituições nas quais o público possa confiar incondicionalmente para efectuar depósitos, solicitar crédito e subscrever títulos de risco baixo ou moderado.

Os grandes bancos argumentarão que através dos seus sofisticados sistemas de gestão de risco podem proteger-se a si próprios e aos contribuintes contra prejuízos. Não se deve dar fé a tais argumentos A crise actual mostrou não só que o sistema de gestão de risco “Valor em risco” (VAR – “value at risk”) falhou de uma forma patética, mas também que não há um sistema de gestão de risco que seja capaz de controlar instrumentos complexos num mercado em turbulência.

Enquanto o mercado permanecer calmo, como sucedeu no período 1995-2007, o comportamento destes títulos está aparentemente sob controlo, obedecendo aos limites de risco VAR na maior parte dos casos e só se afastando deles modestamente
nos casos que estão fora dos seus limites VAR, que representam 1%. Contudo, se os mercados registarem turbulência como sucedeu com os títulos hipotecários em Julho de 2007 e com todos os títulos em Setembro de 2008, não existe qualquer limite à quantidade a transaccionar destes títulos. O problema agrava-se pela contabilização ao “valor de mercado actual”, que força as entidades a avaliar títulos exóticos pelo respectivo valor num mercado secundário restrito, sejam quais forem as suas prováveis características de risco de longo prazo.

Por isso, as instituições “demasiado grandes para falirem” não deviam ser autorizadas a ter mais do que uma pequena fracção do seu capital (digamos, um terço, uma importância que as instituições se pudessem permitir perder e mesmo assim sobreviver) em instrumentos de risco ou altamente ilíquidos. Em troca, a contabilizaçãoao “valor de mercado actual” devia ser abolida para estas instituições. São essencialmente empresas de serviços públicos, tais como a companhia local de
águas, devendo ser regulamentadas e controladas como tal. Poderão fazer bons negócios e terão uma capacidade de subscrição limitada, mas não serão centros nem de risco nem de inovação.

O seu pessoal será de uma forma geral de tipo burocrático e será pago em conformidade, não obstante existirem algumas posições de gestão de topo moderadamente exigentes.

Entres as instituições “demasiado grandes para falirem” contam-se os bancos comerciais nacionais, Fannie Mae e Freddie Mac (cuja endividamento será severamente reduzido). Beneficiarão do facto de os seus papéis estarem no essencial
garantidos pelo governo mas envolver-se-ão quase exclusivamente em actividades mercantilizadas de margens reduzidas, e o seu endividamento ficará também severamente reduzido.  Serão também objecto de forte regulamentação. Haverá ainda três outras categorias de instituições, cada uma das quais terá limites relativamente ao respectivo total de activos para que não se transformem numa ameaça ao sistema financeiro em caso de falência. Os respectivos custos de financiamento serão superiores aos dos bancos “demasiado grandes para falirem” mas beneficiarão de menores restrições e, se o desejarem, de maior endividamento.

As primeiras serão as casas consultoras, fontes da maior parte do trabalho de inovação e aconselhamento financeiro para as grandes empresas relativamente a fusões, angariação de fundos e outros assuntos. Serão sociedades privadas com responsabilidade ilimitada e, por conseguinte, com reduzida necessidade de capitalização e capazes de assumir apenas riscos de financiamento modestos. Podem negociar subscrições mas subcontratarão os riscos de subscrição às instituições “demasiado grandes para falirem” e a outras instituições de investimento.

A sua remuneração para uma nova emissão será, pois, essencialmente uma comissão
de gestão. Serão objecto de uma regulamentação ligeira, uma vez que o tipo de sociedade estabelecida as torna em grande medida auto-regulamentadas; em qualquer caso, não serão “demasiado grandes para falirem”. De uma forma geral, empregarão
as pessoas mais capazes.

A segunda categoria destas instituições mais pequenas será a das que desenvolvem essencialmente uma actividade local, particularmente no sector de hipotecas imobiliárias.

Uma vez que estas não serão “demasiado grandes para falirem”, devem ser autorizadas a prosseguir a sua actividade mais ou menos como até agora o têm feito,
com cobertura de depósitos e um limite quanto à respectiva dimensão.

Com custos de financiamento mais elevados mas menos restrições do que as entidades “demasiado grandes para falirem”, devem concorrer com estas no serviço prestado nas suas áreas locais. Algumas técnicas financeiras mais modernas, nomeadamente swaps de taxas de juro, permitir-lhes-ão reduzir os riscos inerentes a operações activas (crédito) de longo prazo e operações passivas (endividamento) de curto prazo.

Finalmente, teremos as próprias instituições de investimento, nas quais se contam as companhias de seguros, os fundos de pensões, fundos “hedge” e os fundos de capitais de investimento. Estes terão a opção de obedecer a restrições de dimensão para evitar que se tornem “demasiado grandes para falirem”, caso em que operarão livremente, ou crescerem, caso em que estarão sujeitos a restrições quanto ao montante dos fundos administrados que podem investir em activos ilíquidos ou com algum risco,
e o endividamento que podem obter.

As suas contas deverão obedecer às regulamentações contabilísticas pelo “valor de mercado”. Os sectores de fundos “hedge” e fundos de capitais de investimento modestos poderão albergar pessoas com um elevado nível de capacidade e um não menos elevado nível de avidez/agressividade; tais pessoas deverão, por conseguinte, ser convenientemente isoladas da actividade consultora e das alavancas do verdadeiro poder financeiro.

No que se refere às próprias áreas de actividade, afigura-se existirem duas restrições essenciais adicionais às que já se encontram em vigor. Em primeiro lugar, os swaps de incumprimento de crédito só deveriam ser legais desde que transaccionados em bolsa; caberia a esta entidade definir as regras relativas a colaterais e outras e proceder à publicação de registos das posições assumidas.

Em segundo lugar, os empréstimos só seriam titularizáveis pelo respectivo emitente até ao limite de 80% da participação do emitente nos mesmos (pelo que 20% permaneceriam nos respectivos registos contabilísticos) sendo proibidas as titularizações artificiais que não estivessem ligadas a um empréstimo determinado.

Assim, um gestor que assumisse 100 milhões de dólares num empréstimo sindicado de mil milhões estaria autorizado a titularizar 80 milhões de dólares mas teria de manter 20 milhões; de igual modo, o emitente de uma hipoteca imobiliária de 500 mil dólares teria de manter 100 mil. Naturalmente, as instituições “demasiado grandes para falirem” seriam objecto de limitações de capital no que se refere às suas actividades derivadas e posições de titularização de empréstimos.

Esta estrutura seria colocada em prática através de uma combinação de três métodos. Primeiro, seria aprovada legislação restringindo severamente as actividades e o endividamento de instituições “demasiado grandes para falirem”.

Deste modo, os melhores talentos sairiam quer para os fundos hedge, quer para as sociedades consultoras. Depois, a legislação restringiria fortemente os conflitos de interesses para os consultores que participassem na subscrição ou transacção de fusões, proibindo-lhes no essencial a aquisição de mais do que pequenas posições nos negócios por eles tratados. Há que pensar muito bem de que modo é que as entidades
consultoras podem ser conduzidas para a forma de sociedades privadas, o que é óptimo na perspectiva de uma política pública.

Talvez fosse adequado colocá-las sob a alçada de legislação particularmente severa no domínio da divulgação e auditoria, do tipo da Lei Sarbanes- Oxley, enquanto entidades públicas, ou talvez a contabilidade ao valor de mercado actual” em si fosse
suficiente gravosa relativamente às empresas consultoras para desencorajar listagens públicas.

Finalmente, uma política monetária rigorosa capaz de modificar radicalmente o ambiente em que Wall Street opera. A especulação e o sobre-endividamento dos anos da bolha agravaram-se substancialmente pela longa persistência de condições de “dinheiro fácil”.

Em 2007, as primeiras perturbações do abrandamento foram descritas pelo administrador financeiro da Bear Stearns como “o pior que me foi dado assistir em 22 anos” – bastante correcto do ponto de vista técnico, já que ele só entrou para o ramo em 1985. Os mercados que permitem que as condições de acesso a dinheiro fácil durem mais do que as carreiras da gestão de topo constituem uma grave ameaça à saúde do sistema financeiro.

A solução passa por dificultar o acesso ao dinheiro – reduzindo a duração das bolhas a muito poucos anos – e uma gestão de topo mais experiente, eliminando o síndroma de “montes de dinheiro aos 40” que atormentou Wall Street durante os anos da bolha.
Uma actividade de serviços financeiros devidamente reformada desempenhará um pequeno papel nas economias norte-americana e global. Não é difícil de colocar em
prática; uma política monetária rigorosa e elementos legislativos cuidadosamente
elaborados devem ser suficientes. Agora que o sector é assolado pela insolvência, chegou a hora de preparar a sua reestruturação.

*Mestrado em administração de empresas e finanças
Fonte: Novo Jornal