Mas isso não poupou a instituição com importantes interesses económicos em Angola de ser criticado na edição de ontem do “Jornal de Angola” por convidar Geldof, o músico responsável pelo Live Aid (1985) e pelo Live 8 (2005) para o evento. Em Lisboa, num comunicado, a Embaixada angolana repudiou as afirmações de Geldof e evocou a possibilidade de processar o músico. Ontem, fonte daquela embaixada disse ao PÚBLICO que continuavam “em estudo” as “medidas legais (...) apropriadas” para “repor a verdade dos factos”.

O jornal angolano acusou Geldof de “malcriado” e de “espertalhaço” e destacou a reacção do BES, em defesa de Angola, que qualificara de “injuriosas” as suas afirmações. Mas, ao mesmo tempo, deixou um recado - “O BES tem que ver quem convida para falar de desenvolvimento” - e acrescentou, com ironia: “Pelos vistos, a sua administração [do BES] gosta de lidar com criminosos”. E sobre Bob Geldof, mas tendo como alvo o BES, concluiu: “Bob fez mesmo a diferença e comportou-se como os seus contratadores queriam”.

No mesmo artigo, o único jornal diário do país elogiou o esforço do Governo de Angola para fazer avançar o país “a um ritmo invejável” (...) “fazendo do caos da guerra uma terra prometida, onde todos têm uma oportunidade e uma vida decente”.

Questões legítimas

A poucos meses das eleições legislativas de Setembro em Angola, as organizações internacionais de direitos humanos e em defesa da transparência contactadas ontem pelo PÚBLICO realçaram, pelo contrário, o que era possível ter sido feito desde o fim da guerra em 2002, e não foi. Lembram que Angola está entre os países mais corruptos do mundo e em última posição num índice elaborado pela ONG Save the Children, que avalia as condições sociais da população em função da riqueza dos países (Wealth and Survival Index). Neste relatório inédito de Fevereiro deste ano, Angola, “rica em petróleo”, é o país pior classificado no que diz respeito à mortalidade infantil. “A taxa de mortalidade infantil de 260 para 1000 é 162 vezes superior àquilo que seria previsível face à dimensão da economia do país”. E não melhorou desde o fim da guerra.

“Tendo em conta estes dados e a enorme discrepância entre uma elite muito rica e uma vasta maioria ainda a viver na pobreza, é legítimo levantar questões sobre o destino dado ao dinheiro do petróleo, “, disse ao PÚBLICO o director da Global Witness, Simon Taylor. A organização que, em 1999 e 2004, publicou relatórios acusando personalidades da hierarquia do Estado angolano de corrupção e desvio de fundos, incluindo o Presidente José Eduardo dos Santos, lamenta “as oportunidades perdidas” destes últimos seis anos de paz.

A Human Rights Watch não estava ontem disponível para comentar, mas tem sido uma das organizações mais activas nas denúncias de abusos das forças de segurança em Cabinda ou dos despejos forçados das populações dos bairros desfavorecidos dos arredores de Luanda para a construção de condomínios. Estas situações começaram por ser denunciadas por associações angolanas - a Mpalabanda, entretanto extinta, para o caso de Cabinda e a SOS Habitat para os despejos forçados e a violação dos direitos humanos na perspectiva dos direitos económicos e sociais.

Falando ao PÚBLICO a partir de Londres, a investigadora da Amnistia Internacional para Angola, Muluka-Awne Miti, escusa-se a comentar o teor das acusações de Geldof contra os dirigentes de Angola, mas reconhece: “É importante que alguém, seja quem for, levante a questão dos direitos humanos. Estamos sempre à procura de alguém que o faça para que o Governo possa ter isso em consideração e tome medidas para melhorar a situação”.

Um dos aspectos que as organizações angolanas e internacionais, que trabalham na área da transparência das contas públicas e direitos das populações mais lamentam é o “silêncio” a que se remetem governantes de Portugal e de outros países europeus, um silêncio “conivente” com situações “graves” para não comprometer os interesses económicos.

Entre os activistas contactados pelo PÚBLICO, houve quem aplaudisse a iniciativa de Geldof, considerando-a “absolutamente legítima e louvável” e comparando o músico irlandês ao actor George Clooney enquanto figura que “usa a sua notoriedade para fazer activismo político”. O “efeito de surpresa”, sendo Bob Geldof alguém que fala muito sobre África mas falou pela primeira vez de forma tão específica sobre Angola, também “fez a diferença”. Mas também há quem manifeste reservas por esta ter esta forma “mediática” de “chocar” e “chamar a atenção” sem “provar coisa nenhuma” contra os dirigentes angolanos. No âmbito do caso Angolagate, de desvios de fundos públicos nos negócios de armas durante a guerra ou no pagamento da dívida angolana à Rússia, o empresário Pierre Falcone, que serviu de intermediário, começará a ser julgado em França no fim do ano, mas não há dirigentes angolanos acusados no processo, embora existam referências a pagamentos feitos a estes por Pierre

Falcone / Difícil de provar

Mas mesmo os mais cépticos relativamente à iniciativa de Bob Geldof reconhecem que “há muitas coisas a apontar” aos responsáveis angolanos e ao mesmo tempo “muita dificuldade em prová-las”, tendo em conta a opacidade do sistema e “a sensibilidade às críticas” por parte do Governo de Luanda.

A própria reacção do BES, demarcando-se imediatamente das declarações de Geldof, será também “muito sintomática” do “nível de coerção sobre as autoridades políticas e económicas” de outros países, pois “demonstra que há medo de represálias”. Por fim, há quem ressalve: as acusações de Geldof são injustas para aqueles que em Angola, dentro do próprio MPLA ou entre a geração mais jovem de quadros reformistas que regressam ao país, estão a tentar mudar as coisas no bom sentido.

Fonte: Publico