Luanda - O antigo Presidente de Moçambique considera “espectacular” o processo de reconstrução de Angola. “Também fiz a reconstrução do meu país, mas a de Angola está a ser um tanto ou quanto espectacular”, afirmou Joaquim Chissano, em entrevista colectiva a jornalistas. O nacionalista moçambicano reconheceu que, apesar dos longos anos de guerra e destruição, o país teve uma “direcção clarividente”, que soube fazer a paz, a reconciliação nacional e dirigir bem a economia, para iniciar o processo de reconstrução. 

Fonte: JA
Joaquim Chissano disse ainda que, mesmo com a crise mundial, provocada pelo baixo preço do petróleo no mercado internacional, a ideia de diversificação da economia angolana foi posta sempre em prática. Chissano falou também das experiências do seu país no capítulo das autarquias, da democratização no continente africano, das mudanças políticas que ocorrem em Angola e do processo de paz em Moçambique, sobretudo, depois da morte do líder da principal força da oposição, Afonso Dlakhama.

O que o traz a Angola?
Desta vez, vim responder a um convite para participar no Colóquio Internacional sobre “Os Processos de Autarcisação”. Sei que este assunto está a ser amplamente discutido em Angola, no quadro da preparação das eleições autárquicas, previstas para 2020. Moçambique já tem esta experiência há vários anos. Os organizadores do colóquio acharam pertinente estarmos aqui para trocar experiências sobre a matéria e transmitir a experiência de Moçambique, onde o processo não foi realizado de uma só vez, mas de forma paulatina. Aliás, neste momento, decorre a revisão da Constituição sobre a descentralização, que envolve também as autarquias locais.

Há quem diga que, em Moçambique, a implementação das autarquias locais esteve paralisado, justamente por causa da corrente “gradualismo” ...?
Moçambique nunca teve o processo parado. Depois da criação do primeiro grupo de autarquias, houve uma interrupção por motivos organizativos. Mas, depois, o processo continuou e já foram realizadas várias eleições autárquicas, conforme o número designado de autarquias. O processo nunca parou, até porque estamos agora a preparar as eleições autárquicas para este ano, que devem acontecer em Outubro próximo.

Ao que chamam autarquias em Moçambique?
O que em Angola chamam municípios, em Moçambique são distritos. Para nós, os municípios são organizados nas cidades, vilas e, mais tarde, nas povoações, que são os territórios das sedes dos postos administrativos. Isso é o que nós chamamos autarquias locais. Num distrito, em Moçambique, temos uma ou duas cidades. Na província de Gaza, por exemplo, temos o distrito de Xai - Xai, que é sede da província. Em Gaza, existe o distrito de Chókwé, que conta somente com a autarquia com o mesmo nome (Chokwé).

Afirmou que, em Moçambique, a implementação das autarquias não foi realizada de uma só vez ...
Quando dizia que não foi feito tudo de uma só vez, não me referia à implementação das autarquias, mas ao processo de descentralização, que, desta vez, no meu país, vai tomar uma outra forma. Estamos sempre a pensar na Constituição. Vamos emendando e discutindo com outras forças políticas. Existem ainda os acordos políticos. E assim vamos avançando.

Como surgiu a ideia das autarquias em Moçambique?
Aquando da realização do 4º Congresso da Frelimo (partido no poder em Moçambique), em 1983, constatou-se que havia demasiada centralização e concentração do poder. Era preciso descentralizá-lo e desconcentrá-lo. É neste processo que surgiu a ideia das autarquias, que foi tomando forma, no intuito de trazer maior participação do povo na gestão do poder. Em traços largos, é este o sentido da autarquia: uma comunidade que toma a sua autonomia administrativa, financeira, política, no exercício do poder. Verifica-se a auto-gestão das comunidades ao nível da autarquia local. Como vê, trata-se de passar o poder de administrar bens, finanças, etc. É um processo que requer não só bens materiais e financeiros, mas recursos humanos. Quanto mais complexa for a autarquia, mais complexa também é o conhecimento dos recursos humanos. É grande o esforço de formação das pessoas que querem dirigir a autarquia. É necessário ainda mobilizar os munícipes para compreenderem o processo e tomarem as suas iniciativas. Essa tomada de consciência também leva o seu tempo. Nós próprios, dirigentes em Moçambique, tivemos de estudar para compreender o que são autarquias e os problemas que se levantam quando as mesmas são constituídas.

Quais são estes problemas?
São os que já defini. Ter os meios necessários, quer materiais quer humanos, e um plano para o aparecimento dessas autarquias com todas as suas características. Para garantir o patriotismo ou o sentimento patriótico nos cidadãos dos nossos países, é preciso não permitir a construção de uma autarquia que constitua motivo de divisão.

O senhor defende mesmo o gradualismo em eleições autárquicas?
Defendo sim. Gradual é um termo científico. Significa irmos fazendo as coisas de forma gradual e continuamente. Realizar as coisas para que tenham o impacto necessário gradualmente. Queremos autarquias fortes e capazes de se auto gerirem, nas quais a intervenção do Estado vai sendo diminuída, à medida que for aumentada a capacidade das mesmas. Gradualismo não é só ver o território, mas, sobretudo, darmos à autarquia a força de gerar os seus recursos internos.

No vosso caso, as autarquias começaram na era em que o senhor dirigiu Moçambique. Elas contribuíram para a consolidação da democracia no país?
Todo o processo começou com reflexões feitas no seio do partido governante (Frelimo) e na sociedade em geral, em 1983. A nossa independência foi em 1975 e, oito anos depois, já estávamos a pensar no processo de preparação do 4º congresso do partido, de onde surgiram ideias da autarcização e dos órgãos locais do Estado. E isso evoluiu para pensarmos numa descentralização em forma de órgãos do poder local. Discutimos o papel das autoridades tradicionais, que na altura passámos a chamar autoridades comunitárias. Tivemos depois de enveredar para o multipartidarismo, mas não nos esqueçamos que a democracia que queremos não é apenas representativa, mas a que chamamos de autarquias.

Há desvantagem de a implementação das autarquias ser de uma vez?
Em Moçambique, se quiséssemos implementar autarquias de uma só vez, já teríamos 500 ou quase 600 autarquias. Não interessa fazer de uma só vez, sem qualquer experiência, nem pontos de referência. Isso é que ditou fazermos as eleições autárquicas de forma gradual. E em Angola já se fala muito do gradualismo de Moçambique, o que significa fazer as coisas de uma maneira paulatina, gradual, aproveitando os melhores momentos para implementar, mas sempre na perspectiva de continuidade.

Mudando um pouco de assunto ... como o senhor avalia as mudanças políticas que se operam em Angola?
Angola teve muitos anos de guerra e muita destruição. Mas, felizmente, teve uma direcção clarividente, que soube fazer a paz, a reconciliação nacional e dirigir bem a economia para iniciar o processo de reconstrução. Também fiz uma reconstrução rápida no meu país, mas a de Angola foi um tanto ou quanto espectacular.

Porquê “espectacular”?
Porque, apesar da crise mundial, provocada pelo baixo preço do petróleo no mercado internacional, a ideia de diversificação da economia em Angola foi-se instalando e posta sempre em prática, sobretudo, nos sectores do Turismo, Agricultura, Pecuária, Transportes, reconstrução de infra-estruturas e demais domínios. Há uma economia vibrante em Angola, que eu muito aprecio. Não tive a possibilidade de visitar empreendimentos sociais e económicos, mas oiço algumas coisas e vejo à volta de Luanda coisas agradáveis. O povo angolano está de parabéns.

Como vê a transição política que ocorre neste momento em Angola?
De facto, estamos satisfeitos com esta transição de Presidentes, onde um deles ocupa-se apenas das questões do partido. Não sei se vão conservar a coexistência entre os dois Presidentes (um para dirigir o partido e outro o Estado) ou se voltam ao sistema anterior. Tudo isso é possível. Não me quero envolver naquilo que os angolanos vão decidir ou já decidiram.

Sobre este assunto qual é a realidade em Moçambique?
Em Moçambique, decidimos manter o Presidente da República e também líder do partido. E se um dia a oposição ganhar as eleições presidenciais, evidentemente, vai ser esse partido que vai decidir o sistema. Nós também tivemos uma boa transição de um presidente para outro, com eleições. Tivemos coexistência do Presidente cessante com o actual. E isso é muito agradável.

Como encara a morte do líder da maior organização política da oposição moçambicana, Afonso Dhlakama?
Ele morreu dias depois de termos falado ao telefone. Já não sou dirigente do Estado, mas sempre encorajei o Presidente Nyusi e Afonso Dhlakama a primarem sempre pelo diálogo. E foi nesse processo de encorajamento das partes que telefonei a Dhlakama para felicitá-lo pela maneira como estavam a decorrer as negociações e encorajá-lo a continuar na mesma senda.

Como reagiu Dhlakama?
Da mesma forma! Pediu-me que continuasse a fazer declarações que encorajassem a Frelimo e a Renamo a encontrar uma plataforma que conduzisse à paz definitiva em todo o território moçambicano. Com Dhlakama, assinei o Acordo de Paz. Naquela altura, já resolvíamos com diálogo todos os problemas que surgiam ao longo das negociações. Com o Presidente Nyusi, as coisas também estavam a caminhar bem. Por isso, foi um grande choque quando soube que morreu a pessoa com quem tinha falado há alguns dias e que nada mais queria senão voltar ao convívio familiar.

Que mais Afonso Dhlakama lhe confessou?
Também me disse que estava com muitas saudades de viver com a família. Nisso percebi que estava em presença de uma pessoa que não parecia muito ávida do poder, que tudo fazia para ser o Presidente. Quando veio ao funeral do meu filho, na altura a minha esposa estava muito magoada pelas atrocidades da Renamo, que envolveram familiares próximos. Nesse dia, e pela primeira vez, minha esposa estendeu a mão a Dhlakama e disse-lhe: "O senhor está desculpado. Já não tenho mais rancor de si. Só penso que se comporte bem no futuro". O meu sentimento por Dhlakama vai, sobretudo, pelo facto do acordo de paz que já tinha sido alcançado.

O que mais falta para Moçambique concluir o processo de paz?
Falta a parte relacionada com a desmobilização e desarmamento das forças e posterior integração dos militares na vida social. Penso que não vai ser difícil ultrapassar mais esta empreitada. Tudo porque as balizas estão mais ou menos marcadas. Custou muito saber que um homem como Dhlakama tivesse desaparecido de forma física. Com ele, a reconciliação teria outro sentido. Também no caso de Angola, acho que, se houvesse uma reconciliação com o Savimbi, ela teria outro valor.

Como vê o processo de democratização em África?
É positivo, com seus altos e baixos. Enquanto a maioria dos países africanos avança com o processo de democratização, outros ainda debatem-se com conflitos sangrentos, como os casos da República Centro Africana, Somália, Sudão do Sul e Líbia: E isso não é agradável. São países que começam a marchar e depois recuam. Mas, na maioria dos Estados, a democratização prossegue.

Angola está num processo de combate contra a corrupção e impunidade. Como avalia o empenho do novo Executivo no combate contra esses fenómenos?
Peço desculpas. Não acompanhei muito este trabalho, que gostaria imenso de acompanhar. Mas, conhecendo o Governo angolano na pessoa de José Eduardo dos Santos, sei que há quadros idóneos e íntegros, que querem o bem deste povo. Mas também sei que Angola, como todos os nossos países, tem sido criticado por ex-cesso de corrupção. Mas o facto de já se terem encontrado fórmulas para atacar este problema de maneira contundente é algo muito agradável para ser apoiado.

Nos dias de hoje, é possível acreditar no sentimento patriótico dos angolanos e moçambicanos?
Os nossos países têm os seus povos empenhados na construção de uma Nação. Sinto que, quer em Moçambique quer em Angola, já existe sentimento de pertença a uma Nação, ao contrário do que existia durante a Luta de Libertação.

Um dos principais negociadores dos Acordos de Lusaka

Joaquim Chissano nasceu a 22 de Outubro de 1939, na aldeia remota de Malehice, distrito de Chibuto, província de Gaza. Frequentou o ensino primário, numa escola oficial na cidade de Xai-Xai, actual capital provincial de Gaza.

Chissano jogou um papel fundamental nas negociações dos Acordos de Lusaka, assinados a 7 de Setembro de 1974, entre a Frelimo e o Governo Português, sobre a Independência de Moçambique.

A 20 de Setembro de 1974, com apenas 35 anos, Joaquim Chissano toma posse como Primeiro-Ministro do Governo de Transição, que conduziria Moçambique à proclamação da Independência Nacional, a 25 de Junho de 1975. É, depois, nomeado Ministro dos Negócios Estrangeiros. Como chefe da diplomacia, ajudou o país a granjear respeito e simpatia no Mundo.

Com a morte do Presidente Samora Machel, em 1986, Joaquim Chissano é eleito para o lugar. Como Chefe do Estado, Chissano conduziu com sucesso profundas reformas sócio-económicas no país, consubstanciadas na Constituição de 1990, que abriu Moçambique ao multipartidarismo e à economia de mercado.

Como Chefe de Estado moçambicano, Chissano ocupou altos cargos em organizações internacionais, no-meadamente, Presidente da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP); Presidente da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC); Presidente do Órgão da SADC para a Cooperação nas Áreas de Política, Defesa e Segurança e Vice-Presidente da Internacional Socialista. Em Julho de 2003, foi eleito Presidente da União Africana (UA).

Chissano é poliglota. Fala fluentemente cinco línguas: Changana, Português, Swahili, Inglês e Francês. Comunica em mais três línguas: Espanhol, Italiano e Russo. É casado com Marcelina Rafael Chissano, com quem tem 4 filhos.