Luanda - A prática jurídica angolana continua a presenciar, diariamente, alguns casos em que cidadão são mantidos presos, pela impossibilidade de pagamento de caução. Recentemente, todos tomamos conhecimento, do “ignóbil” caso da morte, por espancamento, dentro de um centro de detenção, de um antigo segurança da União dos Escritores Angolanos (UEA). Alegadamente, os autores do homicídio foram os outros detidos, que o agrediram o infeliz até a morte. Mais grave ainda, resulta da constatação que o mesmo estava detido por circunstâncias obscuras (foi detido, fora do flagrante delito e sem mandato, por alegado furto) e, depois de ouvido pelo magistrado do Ministério Público (MP), foi-lhe aplicada uma medida de coação da “caução”.

Fonte: Club-k.net

Caso da morte do segurança da UEA

Não tendo possibilidade de pagar a caução naquele momento, ele foi mantido preso. Foi durante esta prisão, que se deu este infeliz e incompreensível acontecimento. No final, fica a sensação que se o mesmo tivesse pago a caução, estaria, neste momento, em vida. Por se tratar de uma situação que pode acontecer com qualquer um de nós ou nossos amigos e familiares, proponho a leitura da presente análise.

A manutenção da prisão por não pagamento de caução, é uma das grandes ilegalidades que ainda persiste no processo penal em Angola. Fruto de uma prática antiga, decorrente da má interpretação do “desactualizado” Código de Processo Penal, onde os magistrados do MP (e alguns juízes, em fase mais avançada do processo penal), permitiam, em certos processos, que em vez a prisão preventiva, fosse decretada a liberdade provisória, mediante apresentação, pelo arguido, de uma caução. Tornou-se célebre os famigerados despachos, “Ordeno a soltura do arguido (réu), mediante caução”. Ou seja, a libertação do arguido (réu), estava dependente do pagamento de uma quantia determinada pelo magistrado. Se não pagasse, continuava preso.

A presente conducta é ilegal e inconstitucional. A caução, nos termos da Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal (LMCPP), trata-se de uma medida de coação pessoal (alínea c) do n.º 1 do art.º 16 da LMCPP). A caução consiste no depósito, penhor, hipoteca ou fiança, bancária ou não, de um montante que for fixado e pode ser aplicada por um magistrado em processo penal, ao arguido incurso na prática de crime punível com pena de prisão. Ela tem duas natureza, mormente, a caução carcerária(que visa garantir que o arguido participe nos actos processuais obrigatórios, durante o processo) e económica(quando o magistrado entende que haja fundado receio da ausência ou diminuição das garantias patrimoniais, necessárias para uma “futura” indemnização, em razão dos factos criminais imputados ao arguido). São medidas distintas e autónomas (n.º 4 do art.º 44). Da leitura da LMCPP, entendemos, salvo melhor opinião, que a caução carcerária é a prevista no art.º 28 e a caução económica vem prevista na alínea a) do n.º 1 do art.º 43. O último artigo estabelece também o arresto preventivo, como igual medida de garantia patrimonial (b) do n.º 1 do art.º 43 da LMCPP)

À luz do ordenamento jurídico em Angola, nenhum cidadão pode ser mantido preso, por não ter a possibilidade de pagar caução. Em primeiro lugar, porque a prisão preventiva é uma medida extrema, aplicada somente quando haja fortes indícios da prática de crimes dolosos, punível com pena de prisão superior a 3 (três) anos e, concomitantemente, o magistrado entenda que se mostra inadequado ou insuficiente, a aplicação de medida de coação menos gravosa. Ou, por último, nas situações em que o arguido em liberdade provisória viole o cumprimento das suas obrigações (art.º 36 da LMCPP). Assim, sempre que no processo-crime seja possível aplicar uma medida de coação menos gravosa que a prisão preventiva, o magistrado, por força da lei e da Constituição, está obrigado a o fazer.

No que concerne à caução (carcerária), um dos grandes males, resulta da deficiente interpretação do seu fim. Ela não visa substituir a prisão preventiva. O arguido não é solto porque presta caução, mas sim, porque, no caso em concreto, é possível aplicar uma medida menos gravosa que a prisão preventiva, sem prejudicar os fins do processo penal. Daí que, em caso de impossibilidadeou se o arguido tiver dificuldade em prestar a caução, determina o n.º 3 do art.º 28 da LMCPP, que o magistrado do MP pode, oficiosamente ou por requerimento do arguido, reduzir o seu valor ou substituir a mesma por outra medida de coação. Nunca, em momento algum, pode aplicar a prisão preventiva ou domiciliar, como alternativa a cauçãoou em caso de impossibilidade ou insuficiência de meios pecuniários, por parte do arguido. Quem age desta maneira, viola manifestamente a Constituição (art.º 36) e vários normas da lei (por exemplo, o art.º 28 da LMCPP).

Em consequência, não é juridicamente válido, por ausência manifesta de base legal, que se continue a emitir despachos, ““Ordeno a soltura do arguido, mediante caução”. Condicionar o direito à liberdade, pelo não pagamento de uma quantia fixa em dinheiro, determinada em processo penal, atenta contra vários princípios estruturantes do Estado de Direito, em especial, a protecção da dignidade da pessoa humana (art.º 1 da CRA) e o próprio direito à liberdade (art.º 3 da CRA).

Na prática forense, muitas vezes, várias pessoas são mantidas presas, por impossibilidade (por vezes, porque o banco que se deve depositar a caução está fechado e o despacho do magistrado ocorreu na 6.ª feira, depois das 15 horas – sem contar os casos que o banco fica sem sistema -, tendo de ficar detido o final de semana) ou insuficiência de meios económicos (pobreza) do arguido. Não pagando, mantem-se preso. Por maioria de razão e, numa análise de senso comum, não séria mais lógico estabelecer um prazo razoável para prestação da caução pelo arguido, do que o manter preso até que ele pague?


Se argumentos legais, humanos, morais não são atendidos, pelo menos, o argumento económico deve ser tido em consideração. O Estado gasta bastante dinheiro em manter internados em situação carcerária os arguidos (o MINTIN informou há anos, que a média era de USD 40 por dia). Logo, manter um sujeito preso por não pagar uma caução (muitas vezes irrisória), transferindo ao Estado uma despesa originária de um facto ilegal e desnecessária, deve levar que os operadores forenses reflictam com o devido cuidado. Sobretudo, em época de grave crise económica e social.

Infelizmente, no triste caso do guarda da UEA, uma vida foi perdida, por, entre outros motivos, o infeliz não ter sido posto em liberdade, por não pagar a caução. Certamente, existem mais casos destes, por esta grande Angola, o nosso Estado em construção. Assim, urge, que doravante, sem procurar encontrar culpados, que todos os operadores forenses, tenham o máximo de cuidado e cautela nestas situações. Devemos, porque resulta da Constituição e da lei, e por ter como suporte a protecção da dignidade da pessoa humana e o direito à liberdade, deixar de manter pessoas presas por não pagar caução (ou situações similares). Assim, cumpriremos a lei, respeitando o Estado de Direito, evitaremos custos ao Estado e, acima de tudo, iremos garantir dignidade das pessoas, mesmo em condição de arguidos. O que acontece com alguém hoje, amanhã pode acontecer connosco.


* Wilson de Almeida Adão – Docente da Universidade Católica de Angola