Brasil - “O MPLA é rio que bebe água em muitas fontes.” (Mendes de Carvalho. Entrevista à TPA em 16.10.95.)

A versão oficial divulgada pelos líderes do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) no início dos anos 60, e até hoje mantida pelo partido, dá conta de que o movimento teria sido criado em 10 de dezembro de 1956, em Luanda, após a unificação do Partido da Luta Unida dos Africanos de Angola (PLUA) com outros grupos nacionalistas. No entanto, desde muito cedo levantaram-se dúvidas acerca dessa data, contribuindo para isso os relatos contraditórios elaborados pelos próprios líderes do movimento.

Fonte: Wizi-Kongo

Ao que tudo indica, as narrativas desencontradas estão relacionadas à disputa estabelecida entre a União das Populações de Angola (UPA) e o MPLA, visando maior legitimidade e os possíveis apoios de aliados internacionais. Lutava-se, de todas as formas, pela demonstração quanto a anterioridade da criação do movimento – fosse ele a UPA ou o MPLA – em relação ao oponente. No tocante a criação da UPA, outros estudos alertam para o fato de que o movimento de Holden Roberto teria antecipado a data de nascimento real da União das Populações do Norte de Angola (UPNA), sua matriz.

 

O mesmo caminho seria trilhado pelo MPLA. É assim que encontramos duas versões para a data de criação do PLUA. Mário de Andrade, um dos principais líderes do MPLA na década de 60, parece ser o responsável pela divulgação de ambas. A primeira, apresentada em 1960, na revista Démocratie nouvelle, afirma que o PLUA teria sido criado em 1956 e seria um desdobramento do Partido Comunista Angolano (PCA), formado no ano anterior. A segunda, lançada dois anos depois, aponta para a criação do PLUA como tendo ocorrido em 1953.

 

Nesse caso do PLUA, para além da disputa com a UPNA pelo reconhecimento internacional como o mais antigo movimento de libertação existente em Angola, é provável que tenha influenciado a pretensão dos líderes do MPLA de se afastarem de uma vinculação estreita ao PCA. O cenário internacional bipolarizado de início dos anos 60 recomendava uma postura mais anticolonial e menos incisiva no tocante às filiações políticas. Essa segunda versão nem menciona o nome PCA.

 

Todavia, relatos posteriores a essa agitação dos anos 60 e a recente documentação levantada junto aos arquivos da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) – orgão responsável pela repressão aos opositores do regime salazarista – pelo historiador Carlos Pacheco têm fornecido novos elementos capazes de nos auxiliar a entender melhor o problema.

 

Segundo Mário António Fernandes de Oliveira, à época um dos muitos jovens envolvidos na agitação clandestina luandense, o PCA foi criado em 1955 por ele, Viriato da Cruz, António Jacinto e Ilídio Machado. Esse núcleo comunista, porém, de acordo com Mário António, “achou que realmente estava a fazer muito pouco e, sobretudo, que tinha muito poucas possibilidades de ver aceitar setores nacionalistas, que o eram evidentemente, e que tinham uma certa resistência à palavra comunismo.

 

(…) Em vista disso”, diz ele, criou-se “uma coisa chamada PLUAA”. Consistia, portanto, numa tentativa de alargamento da luta, que facilitaria até mesmo a aproximação de alguns padres. Mário António ainda nos informa que a idéia inicial era que o PLUA se transformasse numa organização de massas e que o PCA mantivesse o controle através de seus dirigentes. O responsável pela ligação deveria ser Ilídio Machado, devido à sua ascendência na Liga Nacional Africana – instituição de caráter socio-cultural frequentada pelos angolanos com maior proximidade ao meio urbano. No entanto, logo no ano seguinte, em 1957, Mário António se casaria e, segundo seu relato, discordando da obrigatoriedade de que as mulheres ficassem de fora dessa movimentação, acabaria por abandonar a luta.

 

Quanto às orientações e aos objetivos do PCA, o que conseguimos recolher são apenas pequenos vestígios espalhados por entrevistas e livros publicados nos últimos anos, mas quase tudo com pouca substância, quer do ponto de vista documental, quer do ponto de vista analítico, o que aponta uma vez mais para a dificuldade dessa luta clandestina luandense e o reduzido apelo que ela conseguia proporcionar na população temerosa das retaliações. Ainda mais em se tratando de algo estranho como o comunismo.

 

Sobre esse ponto, convém destacar o fato de que Mário de Andrade, responsável pelas versões contraditórias sobre a criação do PLUA, estava fora de Angola desde finais dos anos 40, quando fora estudar na metrópole, o que fatalmente acarretou em informações de segunda mão, sem falar na necessidade de dar uma versão aos fatos que não prejudicasse a trajetória do MPLA.

A questão mais discutida com referência ao PCA parece ser a dúvida relativa à influência que o Partido Comunista Português (PCP) teria assumido junto a essa organização angolana. Marcum acredita que tenha ocorrido uma parceria e aponta como justificativa a participação de europeus na emergência desse movimento de conscientização que estava tomando força em Angola. Sem se deter muito sobre oassunto e fugindo a tal polêmica – mas sempre que possível destacando a atuação de militantes do PCP em Angola -, Pélissier cita em nota uma entrevista de Saydi Mingas na qual esse dirigente do MPLA afirma que o PCA teve uma existência frágil e que a exclusividade do trabalho nas províncias do Ultramar era do PCP.(14)

 

Os interrogatórios feitos pela Pide, aos quais Pacheco teve acesso, tendem a minimizar essa importância e nesse sentido estão em sintonia com o relato de Mário António e o texto de Viriato da Cruz. Confirmando a versão de que o PLUA surgira em 1956 e que seria um desdobramento do PCA, os depoimentos de António Jacinto, Ilídio Machado e Mário António à Pide, apontam ainda para a importância de Viriato na elaboração dos estatutos – feitos com base nos estatutos do Partido ComunistaBrasileiro – e na dinâmica dos estudos que eram realizados no PCA. É provável que aconcentração de tarefas em torno de Viriato e o destaque dado a sua atuação nos interrogatórios constituam uma fuga às responsabilidades por parte dos ex-companheiros, sem que isso significasse a entrega ou o agravamento da condição de Viriato, já que ele tinha conseguido fugir para o exterior. Em seu depoimento, António Jacinto ressalta também as influências literárias sofridas pelos líderes do PCA e cita para além das publicações do PCP os materiais provenientes do Brasil e da França.

 

Radicalizando ainda mais, Viriato da Cruz afirma que o PCP não havia exercido, “entretanto, qualquer influência apreciável, nem sobre a preparação, nem sobre o desencadear do movimento revolucionário angolano”. Ele destaca, no que diz respeito às influências externas, os escritores brasileiros.(17) Mário António, por sua vez, concorda com esse distanciamento em relação ao PCP e afirma que não existiamcontatos com seus representantes. Para o antigo militante do PCA, esse partido consistia numa “coisa totalmente endógena, aspirando a contatos com o Partido Comunista da União Soviética”.

 

Mesmo que uma influência mais direta do PCP não tenha ocorrido, conforme os novos indícios apresentados, a participação de alguns de seus simpatizantes e militantes na expansão desse movimento de conscientização anticolonial em Angola foi importante, como nos demonstra Pélissier. Quanto ao que se passava na metrópole certamente a parceria não só era mais próxima como também mais viável.

 

Os membros do PCA e do PLUA, por sua vez, seriam detidos para interrogatório quando da grande leva de prisões que iria originar o “Processo dos 50”. Esse episódio sucederia as eleições presidenciais portuguesas de 1958 que revelaram a substantiva votação do eleitorado angolano no candidato oposicionista a Salazar, general Humberto Delgado. As eleições que dariam a vitória ao candidato situacionista, o Almirante Américo Tomás, mesmo em Angola, foram consideradas fraudulentas pelos observadores internacionais, mas funcionaram como fator mobilizador. Entretanto, o reinício das atividades clandestinas não duraria muito tempo. Em março de 1959, a PIDE realizou vasta operação em Luanda e noutras cidades que culminaram com a prisão de dezenas de suspeitos de conspirarem contra a soberania portuguesa, ou mesmo de serem simpáticos a tal idéia. A partir dessas prisões, o governo português instaurou um inquérito que ficaria conhecido como “Processo dos 50”, todo ele repleto de irregularidades jurídicas, destacando-se a proibição de os advogados visitarem seus clientes. Estabelecia-se, dessa forma, duro golpe contra o movimento nacionalista angolano.

 

Apesar do retrocesso que essas prisões significavam para o movimento de contestação colonial, elas proporcionaram o reconhecimento, por parte de Portugal, de que havia grupos organizados lutando pela independência das colônias. Finalmente, a luta por uma Angola independente alcançava o noticiário internacional e punha em xeque o discurso luso-tropicalista de Salazar.

 

As prisões acabariam por proporcionar ainda uma boa amostragem do estrato social dos elementos que se empenhavam na luta anticolonial. Eram em sua maioria funcionários públicos, empregados do comércio, enfermeiros, operários e estudantes.

 

Constituíam-se nos quadros mais conscientizados, que davam sustentação aos pequenos grupos independentistas e possuíam tanto formação católica, como protestante.

 

Para além dessas considerações, a lista dos presos serve também como elemento incontestável de demonstração de que essa movimentação política, ao contrário do que alguns críticos afirmaram durante certo tempo, expandiu-se por todos os grupos raciais, não sendo possível sustentar que tal contestação fosse implementada por um “movimento mulatista”.

 

Segundo Mário António, tanto ele quanto António Jacinto foram absolvidos e nem sequer pronunciados. Isso porque o PCA já havia encerrado suas atividades, o que ocorrera em 1957, logo após a sua saída – entre julho e agosto – e a fuga de Viriato – em setembro.

 

De acordo com essas informações, as ações empreendidas pelo PCA e pelo PLUA não ultrapassaram o ano de 1957. O abandono da luta por parte de Mário António e a fuga de Luanda efetuada por Viriato extinguem as possibilidades, ainda na fase embrionária, de uma expansão do partido, como era a proposta original. Ocorrerá, então, uma mudança quanto à geração e quanto à vinculação dos indivíduos que iriam dar continudade a luta clandestina em Luanda. Boa parte dos militantes mais antigos que tinham iniciado esse processo por volta de meados dos anos 40, ligados a uma proposta de resgate da cultura africana e que ficara conhecida pela palavra de ordem que daria origem a um movimento cultural denominado “Vamos descobrir Angola”, já tinha partido para a metrópole ou para outros centros no exterior, sem que isso significasse o rompimento com o compromisso assumido no passado de levar adiante o processo de independência angolano.

 

O entendimento do que se passava na metrópole requer, portanto, a atenção sobre a impossibilidade, devido à ausência de instituições, dos estudantes continuarem os estudos nas colônias após a conclusão do liceu. Dessa forma, os interessados em prosseguir em sua formação eram forçados a buscar recursos que viabilizassem a viagem e a permanência em Portugal, a fim de terem acesso ao ensino superior, considerado pelos angolanos preocupados em alterar o panorama colonial como etapa fundamental para tal objetivo.(22)

 

O ambiente pouco acolhedor vivenciado por esses estudantes em Portugal levou à criação de locais para reuniões onde poderiam desfrutar de um maior companheirismo. Esse processo, intensificado em meados dos anos 40, seria responsável pela criação da Casa dos Estudantes do Império (CEI) em 1944 e do Centro de Estudos Africanos (CEA) em 1951.

 

Evidentemente, desde a criação da CEI, a intenção das autoridades salazaristas era manter sob seu controle todas as atividades promovidas pelos estudantes. Todavia, já em fins da década de 40, muitos dos elementos pertencentes aos corpos dirigentes da CEI assinavam as listas do Movimento Unidade Democrática (MUD), ingressando no MUD Juvenil. A CEI, ao contrário do que pretendiam as autoridades portuguesas, transformou-se num espaço de discussão e difusão de idéias anticoloniais, com fortes ligações à oposição portuguesa.

 

A Casa passaria por uma série de intervenções até ser fechada em 1965, quando já quase não havia estudante vindo das colônias, pois em 1963 foram criados os estudos gerais universitários em Angola e Moçambique. A CEI, entretanto, já tinha cumprido o seu papel na formação de muitos dos quadros que iriam lutar pela libertação de seus países.

 

A grande dificuldade desses estudantes, ao lado da preocupação em despistar a PIDE, era o estabelecimento de contatos com as colônias. No caso dos angolanos, que não era diferente, ganharia destaque a vinculação aos marítimos e aos poucos funcionários com acesso a Angola que eram simpáticos as suas idéias, além de contatos menos sistemáticos feitos por angolanos ou militantes da oposição portuguesa e da esquerda européia.

 

Para além dessas atividades buscando realizar de forma mais segura e intensa a comunicação com Angola, esses estudantes, ao lado de outros jovens das diversas colônias portuguesas, decidiram criar uma organização política que denunciasse o colonialismo português, até então divulgado na Europa como algo brando e muito diferente dos demais colonialismos. É assim que surge, em 1957, o Movimento Anti-Colonialista (MAC), reunindo entre outros: Mário de Andrade, Viriato da Cruz -nessa época instalados em Paris -, Amilcar Cabral, Marcelino dos Santos, Lucio Lara e Eduardo dos Santos.

 

Qual era, porém, o conhecimento que esses estudantes tinham do que estava ocorrendo em Angola, das movimentações políticas? Ao que tudo indica, era extremamente escasso. As vias de comunicação estavam cada vez mais vigiadas, a PIDE se instalara em Luanda e dificultava o trabalho de mobilização e conscientização que estava sendo feito internamente, além de prejudicar e muito o contato com os queestavam fora. As atividades exercidas pelos independentistas em Angola e na metrópole se distanciavam cada vez mais. As últimas notícias de maior conteúdo que os estudantes em Portugal receberam davam conta da formação do PLUA e do PCA e tinham ocorrido pouco tempo antes da passagem de Viriato por Lisboa, em 1957.

 

Restava, portanto, aos que estavam no exterior continuar em sua crítica ao colonialismo português e na busca de maiores apoios no cenário internacional.

 

Apesar do esforço despendido pelos indivíduos que estavam em Paris, já sob a orientação do MAC, não tinha sido possível para esse grupo viabilizar a viagem de representantes para a Conferência Afro-Asiática, realizada no Cairo em dezembro de 1957. O mesmo aconteceria em relação à Primeira Conferência dos Povos Africanos, ocorrida em Accra, em 1958. Somente com a participação no Segundo Congresso de Escritores e Artistas Negros, realizado em Roma, em março de 1959 é que o grupo do MAC se encontraria com Frantz Fanon, que lhes ofereceria a oportunidade de treinar angolanos para a luta armada, junto ao exército de libertação nacional da Argélia.

 

Como tal possibilidade foi frustrada pela ofensiva da PIDE em Luanda, o encontro entre o grupo do MAC e Frantz Fanon, na Secunda Conferência dos Povos Africanos, em Túnis, em janeiro de 1960, não poderia ser pior. Fanon voltaria a insistir na necessidade de penetração em território africano e na nacionalização da luta. O recado seria completado ao destacar, para os militantes do MAC, a atuação de Holden Roberto.

 

Túnis marcaria a grande virada na estratégia de luta até então adotada pelos militantes do MAC, que ainda durante a conferência substituíriam o antigo nome pelo de Frente Revolucionária Africana para a Independência Nacional (FRAIN). A partir dessa conferência, os movimentos de libertação nacionais ganhariam destaque ao lado do novo organismo, que continuaria a auxiliar na divulgação internacional da luta, ainda não armada, levada à frente pelos movimentos. O conselho dado por Frantz Fanon passava a ser seguido. É assim que começa a ser apresentado e divulgado no cenário internacional o nome MPLA. Sendo que seus líderes afirmavam que sua criação tinha-se dado em 1956, em Luanda.

 

Em Luanda, dando desdobramento aquela perspectiva cultural, teremos a atuação de um grupo formado por jovens que se reuniriam à volta da revista Cultura. No entanto, surgiriam também outros grupos, baseados em diferentes tipos de aliança e que possuíam outros vínculos de solidariedade. É assim que prolifera uma série de pequenos partidos e movimentos empenhados na luta pela independência, embora atuando de forma muito tímida e pouco contundente, dada às dificuldades existentes.

 

Aliás, sofreriam grandes perdas ou mesmo encerrariam suas atividades, com as prisões ocorridas em 1959 e 1960.

 

É importante, porém, voltarmos à discussão sobre a criação do MPLA. De acordo com o que analisamos até o momento, contrariamente ao discurso oficial e de seus simpatizantes, ou mesmo dos analistas que não questionam a versão comumente divulgada, tanto em Angola quanto no exterior até o final do ano de 1959 não há indícios que comprovem a existência do movimento.

 

Apesar de Marcum e Pélissier fazerem referência às contradições existentes quanto ao movimento que teria dado origem ao MPLA – se originário do PLUA de 1953 ou do PCA de 1955 e depois PLUA em 1956 -, ambos aceitam a idéia de que o MPLA foi fundado em 1956. O primeiro autor a fornecer uma interpretação diferenciada, mesmo que pouco nítida, foi Franz-Wilhelm Heimer, em livro publicadoem 1980, ao dizer que “a base original do MPLA foi a população não branca de Luanda”. Segundo ele, “diferentes grupos clandestinos, mais ou menos estruturados, fundiram-se num só movimento ao redor de 1960”. É possível, porém, que Heimer relacione essa data de maneira pouco precisa, da mesma forma que outros autores apontam o período pós-58 como sendo um momento de adesão de pequenos partidos ao MPLA. De qualquer modo, ao não destacar a data de 1956, o autor se encaminha para uma direção até então desconhecida. O mesmo autor em texto publicado quatro anos mais tarde apontaria novamente para tal dúvida.

 

Ainda sem fornecer maior clareza sobre o assunto, encontramos o relato de Mario António, datado de 1984, sobre a transformação do PLUA em MPLA no qual, apesar de não contestar de forma contundente a data de criação do movimento, transfere a sua origem para o exterior:

 

“E eu acho que é o PLUAA, é a fundação do PLUAA que aparece hoje indicada como a fundação do MPLA. Isso foi o crisma que teve em Paris, mas nasceu PLUAA”.

 

Pezarat Correia, da mesma forma, em 1991, apenas aponta o problema, mas não demonstra curiosidade em investigá-lo, até porque ele estudava um tema bem distante dessa questão. Sua contribuição se resume à observação de que a versão oficial da criação do MPLA não era “pacificamente aceite por todos os fundadores”.

 

No campo da literatura, Pepetela publica, em 1992, o seu livro A geração da utopia, onde deixa transparecer a surpresa dos estudantes angolanos residentes em Portugal, já no ano de 1961, com o surgimento da sigla MPLA e com o fato de esse movimento reivindicar para si as ações ocorridas em 4 de fevereiro em Luanda. Até então, segundo a história contada pelo livro, tinha-se conhecimento apenas da UPA e de que um padre tinha estado por detrás de toda a movimentação ocorrida em fevereiro.

 

Um ano mais tarde, Adriano João Sebastião publica um livro de memórias onde relata toda essa agitação independentista dos anos 50 ocorrida na região de Luanda e em suas proximidades. O autor, além de afirmar, contrariamente ao que observamos antes, que o PLUA já existia em 1955, defende a idéia de que o MPLA teria sido criado em 1960. Segundo Adriano Sebastião, toda a movimentação clandestina atéessa data teria tido como principais articuladores o PLUA, o Movimento para Independência de Angola (MIA) e o Movimento para a Independência Nacional de Angola (MINA). O MPLA seria o nome cunhado por Agostinho Neto, em Luanda, já em 1960, para substituir o MINA.

 

A discussão começa a ganhar contornos mais incisivos com a publicação, em 1994, de duas entrevistas com ex-líderes do MPLA – Manuel dos Santos Lima e João Van Dunem – na Camões Center Quaterly. Ambos concederam as entrevistas em1991 e afirmaram, entre outros pontos polêmicos, que a criação do MPLA deveria ser retardada para depois dos ataques às prisões em 4 de fevereiro de 1961, além de ser transferida para o exterior. Apesar de ser uma versão nova e totalmente contrária aodiscurso oficial, tais acusações não receberam destaque nem no meio acadêmico nem no meio político angolano.

 

Em 1995, no programa de entrevistas intitulado Foi há vinte anos…,realizado pela Rádio Nacional de Angola, teremos novamente a retomada da questão. De acordo com Joaquim Pinto de Andrade, ele teria sido obrigado a responder negativamente a uma solicitação do presidente da República José Eduardo dos Santos pedindo-lhe documentos sobre a origem do MPLA, porque, segundo o ex-militante, até 1960 não existia tal organização. Em outro programa, chamado Opinião e apresentado na Televisão Popular de Angola, em 16.10.95, Mendes de Carvalho afirmou que não tinha sido fácil para o MPLA introduzir-se nos musseques e que muitos nacionalistas só tomaram conhecimento de sua ligação com o MPLA quando foram presos a partir de 1959.

 

É no ano de 1996, porém, que teremos o acirramento da discussão, com o aparecimento de novas formulações contestando a versão oficial. Inicia-se pela publicação do romance de José Eduardo Agualusa Estação das chuvas. O autor ainda data o MPLA como tendo sido criado, em Luanda, no ano de 1956, mas, por outro lado, deixa claro que suas atividades só tomariam consistência em 1960 e que osacontecimentos de 4 de fevereiro surpreenderam seus líderes.

 

Um mês depois da primeira edição do livro de Agualusa, no dia em que se completava 19 anos da tentativa de golpe de 27 de maio de 1977, ocorrido em Angola, o historiador angolano Carlos Pacheco, em artigo sobre o golpe, publicado no Diário de Notícias de Lisboa, afirma que o MPLA tinha sido criado em 1960, em Conacry, por obra de Viriato da Cruz. A referência ao fato, apesar de ser pequena, causaria discussões acaloradas em Angola, pois se esperava ansiosamente por novidades, desde que se descobriu que Pacheco obtivera acesso aos arquivos da Pide guardados em Lisboa.

 

O maior contato com essa documentação inédita e a repercussão alcançada pelo artigo do jornal impulsionaram Pacheco a produzir um livro, rico em notas, onde busca demonstrar com maior consistência que a fundação do MPLA somente ocorreria em 1960, mais precisamente em 31 de janeiro de 1960, após a conferência de Túnis. O historiador contou, para esse trabalho de investigação, não apenas com a documentação da Pide, mas também com alguns relatos de ex-dirigentes e seusfamiliares.

 

Expostas as principais argumentações referentes a essa discussão e as linhas gerais do seu cenário, podemos, então, passar a discorrer sobre o nosso posicionamento acerca da questão e o material adquirido, bem como a análise resultante de todo o problema. O nosso posicionamento inicial, depois de surgida a dúvida, foi o de tentar encontrar dados que comprovassem a existência do MPLA antes de 1960.

 

Partimos à procura, num primeiro momento, dos documentos oficiais do movimento e das coletâneas editadas pelo partido. À exceção do manifesto de 1956, não encontramos nada que comprovasse a sua existência antes de 1960, quando surge a declaração assinada por alguns de seus membros, em 31 de janeiro de 60, em Túnis, juntamente com Holden Roberto, e que marcaria o compromisso de coordenarem a luta contra o colonialismo português. O manifesto, porém, segundo todos aqueles que contestam a versão oficial, pertenceria ao PLUA e em suas palavras finais conclama a população angolana para a criação de um amplo movimento popular de libertação de Angola. Esse trecho, portanto, teria servido de inspiração para o nome MPLA, só que bem mais tarde.

 

Mesmo nas coletâneas não-oficiais consultadas e que partem de autores e de países totalmente diferentes, também não obtivemos sucesso. Em todas elas, o MPLA só começa a dar sinais de existência a partir dos anos 60. Quanto aos inúmeros panfletos elaborados na década de 50 e difundidos pelos musseques de Luanda, também não conseguimos encontrar sinais do MPLA. Para isso nos socorremos dos exemplares divulgados por Mária do Céu Carmo Reis e Mário de Andrade, em sua coletânea de textos, e dos que se encontram anexados à tese de Carlos Serrano. O fato de não termos obtido o acesso aos arquivos da Pide, ricos nesse tipo de documentação, em certa medida foi compensado pelo trabalho de Carlos Pacheco.

 

Devido à exigüidade, quando não a inexistência, de informações na imprensa internacional sobre Angola nos anos 50 – o que nos seria muito útil -, passamos, então, à recolha de artigos dos principais líderes do MPLA e que em finais dos anos 50 já estavam fora de alcance das ações colonialistas. Para nossa surpresa, deparamo-nos com dois artigos publicados em 1959, na Présence Africaine, um redigido por Viriato da Cruz e o outro assinado por “um grupo de intelectuais dos países sob dominação portuguesa”. Em ambos, apesar de tecerem sérias críticas às arbitrariedades impostas pelo colonialismo em Angola, não há qualquer menção ao MPLA. Ora, Viriato da Cruz, segundo a versão oficialmente difundida pelo MPLA, por essa época seria o secretário-geral do movimento e é estranho que, mesmo alertando para a necessidade da independência de Angola, como se pode observar na parte final do artigo, não faça referência ao MPLA.

 

Finalmente, as entrevistas que realizamos com vários dos militantes e ex-militantes do MPLA, uma vez mais, confirmam a recente versão de que o movimento não foi criado em 1956.

 

O ex- presidente da Assembléia Legislativa de Angola, Roberto de Almeida, por exemplo, apesar de defender a criação do MPLA em 1956, deixa escapar pistas importantes de como se dava a movimentação clandestina nos anos 50, em Luanda, onde a vinculação aos movimentos não era muito clara e agia-se mais em nome da idéia de independência. Esse comportamento, portanto, podia muito bem encobrir a inexistência do MPLA:

 

“Eu filio-me no MPLA primeiro como simples simpatizante, desempenhando uma série de tarefas que me eram dadas por pessoas da minha família. Mas eu posso me considerar filiado no MPLA desde 58, 59, que é a data em que eu vivia com a minha irmã, Deolinda Rodrigues, que foi (…) a fundadora da OMA [Organização da Mulher Angolana]. (…) Colaborávamos na distribuição de panfletos e de outra propaganda aqui nos bairros de Luanda. (…) Inicialmente, aqui a juventude, pelo menos aqui ao nível de Luanda, em 58 – eu tinha o que 17, 16 anos – e não distinguia muito a ação pra que partido, pra quemovimento era dirigido. Nós queríamos era fazer, se fosse da UPA,(…) se fosse do MPLA a gente distribuía. Só mais tarde é que nós tivemos uma ação mais clarificada, e fizemos então aí uma opção clara a favor do MPLA. Mas nesses tempos iniciais, nós podíamos fazer qualquer tipo de tarefa, desde que fosse a favor do nacionalismo, a favor da independência.”

 

Mais contundente, porém, é o depoimento de José Gonçalves. Sua atuação na luta anticolonial também teve início com a tarefa de distribuição de panfletos, mas, de acordo com seu relato, não escutara qualquer menção ao MPLA antes do 4 de Fevereiro:

 

“Isso andou assim durante todo o ano de 59. Em 1960, nós começamos reproduzindo panfletos e depois fazendo panfletos. E até aí, a palavra MPLA nunca me tinha aparecido nos ouvidos.(…) Em vésperas do 4 de Fevereiro, já havia muita, muita repressão, já estava muita gente presa. E eu lembro de ter assistido ao primeiro julgamento do processo dos 50. E nessa altura nenhum acusado do processo dos 50 era acusado de ser MPLA. Então não havia MPLA, eu distribuí panfletos talvez de umas dez siglas. A UPA estava, eu me lembro muito bem do discurso do Holden Roberto em Accra, que eu distribuí. Depoishavia todo tipo de grupo ELA [Exército de Libertação de Angola], FLNA e o grupo que eu conhecia melhor [que se] chamava Movimento de Libertação Nacional de Angola [MLNA], que era resultado da fusão de dois grupos, o MLA [Movimento de Libertação de Angola] e o MLN [Movimento de Libertação Nacional]. O MLN era onde estavam essencialmente pessoas brancas ligadas à Sociedade Cultural de Angola. O MLA era o grupo do Mingas, o grupo dos enfermeiros, (…) mas depois foi tudo preso. (…) Parte desse grupo mais tarde vai se declarar MPLA (…). Mas digamos que até o 4 de Fevereiro nunca tinha ouvido falar de MPLA. Ouvia falar muito era nas pessoas, Mário de Andrade, Lúcio Lara, Viriato da Cruz, toda essa gente. Me lembro perfeitamente da prisão de Agostinho Neto. (…) Soube que ele tinha um grupo próprio, que não se chamava MPLA, que era um grupo, salve o erro, com Manuel Pedro Pacavira. (…) Quando é que aparece pela primeira vez o MPLA é pela via da imprensa portuguesa, dizendo que o MPLA tinha reivindicado em Conackry a paternidade do 4 de Fevereiro. Segundo me contaram pessoas que estavam em Conakry naquela altura, Mário de Andrade teria resistido em aceitar essa paternidade, pois ele não sabia do que se tratava.”

 

Sem tanta certeza como o nosso informante anterior, o atual deputado pelo MPLA Mário Afonso “Cassessa” acredita ser possível que o MPLA só tenha sido criado no pós-61, a partir da reunião dos pequenos partidos até então existentes. O seu comentário vem em resposta a uma pergunta sobre a afirmação de Manuel dos Santos Lima de que o MPLA só foi fundado após o 4 de Fevereiro:

 

“É possível, (…) [mas] não tenho dados concretos para poder afirmar que ele tem razão ou não. Mas o fato é que o MPLA nasceu, na verdade, da junção desses outros movimentos e partidos que talvez fossem grupos de intelectuais que formaram-se em partidos, e nasceu o MPLA, e aparece na verdade a partir de 1961, quando foi aí que os partidos se manifestaram. (…) Foi aí, a partir de 1961, quando houve aqui o problema nas prisões, o assalto à prisão de São Paulo, e depois o movimento popular do norte, com a UPA a enquadrar essa revolta camponesa, rural, digamos assim, mas depois do 4 de Fevereiro.”

 

Outro depoimento interessante é o de João Vieira Lopes, um dos líderes da fuga empreendida pelos estudantes que estavam em Portugal após o 4 de Fevereiro.

 

Segundo esse ex-militante do MPLA, a idéia de uma organização que congregasse os independentistas das várias colônias africanas de Portugal não surtira o efeito necessário no desenvolvimento da luta internamente, mas apenas do ponto de vista político internacional:

 

“Não fomos nós que chegamos a essa conclusão sozinhos, mas os amigos dos países amigos, que nos aconselharam a fazer uma mudança. Era para se desmembrar. Sim senhor, ela [a FRAIN] poderia continuar existindo, (…) mas era preciso que aparecessem os movimentos de independência de cada país. É assim, pela primeira vez, que se começa a falar, em princípios dos anos 60, na criação do MPLA. Para mim, é desta agenda, o MPLA vem desta fileira das indicações de Casablanca, de Marrocos (…). Nessa altura, havia vários movimentos pequenos que estavam se organizando (…) a partir de 58, 59, 60, mas que não estavam em níveis daquilo que nós lá fora já chamávamos de MPLA. E quando há a explosão aqui em 61, a direção do MPLA que estava lá fora, faz muito bem, aproveita desse fato e [o] reivindica [para si].”

 

Outro ator nesse cenário, com uma exposição pública menos marcante nos dias de hoje, ao contrário dos demais entrevistados, é Afonso Dias da Silva, que seria conhecido em fins da década de 60 como um dos responsáveis pela edição do jornal Tribuna dos Muceques. Segundo o seu depoimento, pautado pela precisão de datas e nomes dos envolvidos na agitação dos anos 50, existiam vários grupos de atuação anticolonial, todos limitando-se à publicação de panfletos que buscavam a conscientização da população. Destacavam-se, por um lado, os indivíduos ligados a Viriato da Cruz e Ilídio Machado e, por outro, os que estavam próximos de Cândido Costa, Bernardo Joaquim Silas e Manuel Pedro Pacavira. O primeiro grupo comporia o PCA, que depois se transformaria no PLUA, e muitos de seus componentes seriam detidos quando do “Processo dos 50”. O segundo militava no MINA e sofreria um duro ataque com a continuação das prisões em 1960. Apesar das mútuas acusações de bufaria entre Afonso Dias da Silva e Adriano João Sebastião, os seus relatos até esse ponto são coincidentes. Além disso, o que dá mais importância aos seus relatos, eles fazem parte dos poucos informantes que estavam atuando no interior de Angola nesse momento.

 

De acordo com Dias da Silva, a data reivindicada pelo MPLA como tendo sido o marco de sua criação, na verdade, refletia a fundação de um outro movimento, o MIA, que contaria com a participação de Franco de Souza, Matias Migueis e Ilídio Machado. Esse grupo inicia contatos com alguns marinheiros para troca de correspondências com o exterior, em meados de 1957, mas logo em seguida passa a sofrer a perseguição da Pide. Acabaria também tendo seus integrantes presos no “Processo dos 50”. Mesmo a versão de Dias da Silva sobre a transformação do MINA em MPLA, apesar de pequenas diferenças quanto aos participantes da reunião que decidira pela mudança de nome e ao dia exato em que ela ocorrera, aproxima-se no essencial, da que foi publicada por Adriano Sebastião. Propositalmente, deixamos para finalizar essa parte dos depoimentos sobre a criação do MPLA, a entrevista realizada com Lúcio Lara, sem dúvida, um informante privilegiado de toda essa agitação. Embora estivesse fora de Angola nesse período, Lúcio Lara foi um dos principais envolvidos no difícil processo de comunicação com o interior da colônia, além é claro de ser um dos mais importantes dirigentes do MPLA, desde o seu início, ainda vivo.

 

Segundo Lúcio Lara, o manifesto de 1956 existiu e realmente conclamava à criação de uma frente de luta que congregasse todas as organizações então atuantes em Angola, o que não prova a existência de imediato do MPLA. Não obstante a referência a esse manifesto, o fato de no relato de seu encontro com Viriato, em Lisboa, em 1957, não ter mencionado o nome MPLA como tendo sido citado na conversa constitui um forte indício de que a versão oficial tem que ser revista. Mais adiante, Lúcio Lara comentou o seu encontro com Mário de Andrade, em Paris, em 1959, a caminho de Frankfurt:

 

“Quando eu passo em Paris, por acaso encontro o Mário. (…) Uma das coisas que o Mário sempre dizia era: ‘Vê lá se apertas o Viriato. (…) Nós estamos a lutar em nome de quem, afinal? Do MAC? Mas o MAC é cá fora e lá dentro é o quê?’ Bom, havia o Partido Comunista Angolano. O Viriato tinha falado nele, (…)mas, para nós que estávamos cá fora, (…) a gente não acreditava muito na estabilidade, na força, desse Partido Comunista Angolano. (…) Então o Mário dá-me esse recado: (…) ‘É preciso que a gente saiba concretamente com que está a lutar agora.’ Então, eu falei com Viriato, (…) a malta insiste neste aspecto e o Viriato diz: ‘Mas vocês têm o vosso documento, sabem muito bem quem é. Lá no manifesto não está o nome num amplo movimento popular de libertação de Angola? É um amplo movimento popular de libertação de Angola.’ Então, é a partir daí que começamos cá fora, isto é 59, digamos, a injetar, se quiser, a idéia de que existe em Angola um Movimento Popular de Libertação de Angola. (…) O nome, realmente, só aparece em 59, a primeira vez que aparece em público internacionalmente. Mesmo aqui muita gente sabia que havia um movimento. Mas como se chamava, eles não sabiam, porque havia o PLUA, havia o MINA, havia o MIA, havia o tal núcleo dum Partido Comunista Angolano. E muita gente aqui não sabia que estava a trabalhar em nome do MPLA. Então há essa primeira divulgação do MPLA, que é feita até, creio, no jornal Avant-garde, em 59, e daí em diante começamos, embora agindo em nome do MAC, começamos pouco a pouco.”

 

Apesar da ironia no fato narrado por Lúcio Lara, sobre a luta que era empreendida internamente por pessoas que não sabiam que estavam vinculadas ao MPLA, internacionalmente essa apropriação iria dar os melhores resultados possíveis para o movimento. Quanto à edição do jornal citado e que teria sido publicada em dezembro de 1959, infelizmente não conseguimos encontrá-la.

 

Todos esses depoimentos e mesmo os demais materiais encontrados, ou até não-encontrados, mas apenas referidos, como é o caso da documentação oficial do MPLA do periodo anterior a 1960, os seus panfletos e também o jornal citado por Lúcio Lara, nos fazem acreditar que sua criação realmente deva ser transferida de Luanda para o exterior, mais precisamente para Túnis, e do ano de 1956 para o ano de 1960. É a assinatura da declaração de compromisso por Lúcio Lara e Viriato da Cruz (FRAIN e MPLA), em 31 de janeiro, juntamente com Holden Roberto (UPA),(59) Amilcar Cabral (FRAIN e Partido Africano da Independência – PAI) e Hugo de Menezes (FRAIN), que marca a oficialização do MPLA.

 

Quanto à sua implantação em Angola, os dados recolhidos nos fazem concluir que esse processo dá-se pela transformação do MINA em MPLA. Para tanto, baseamo-nos, entre outros, na proximidade deste com o MINA divulgada pela versão oficial, nas recentes informações obtidas por Carlos Pacheco, no livro de Adriano João Sebastião e nos depoimentos de José Gonçalves e Afonso Dias da Silva. Todos esseselementos indicam que essa mudança no MINA seria responsável pelo aparecimento da sigla MPLA em Angola.

Segundo Adriano João Sebastião, essa alteração teria ocorrido em Luanda, em janeiro de 1960, numa reunião de que participaram os líderes do MINA e Agostinho Neto, que teria sugerido a troca de nome. Posição contrária advogam Dias da Silva e Carlos Pacheco, para os quais o fato teria se passado na segunda semana de maio, após o retorno de Manuel Pedro Pacavira – militante do MINA – de um encontro com um representante do MPLA em Brazzaville, onde recebera o material produzido pouco antes pelos líderes do MPLA, nessa época já em Conakry. É após essa viagem que o interior passa a ter consciência de que existia um nome sendo divulgado externamente e que seria importante dar força a essa idéia.

Seguramente, a data ventilada nessa segunda hipótese é a que tem mais consistência, pela perfeita sintonia entre essa versão e as datas que são apresentadas nas entrevistas. Entre elas, por exemplo, a de Lúcio Lara. De acordo com Lara, é logo após o encerramento da conferência de Túnis que surge a possibilidade de instalar a primeira base de atuação do MPLA em Conakry e seria a partir dela que seriam retomados os contatos com Angola após as prisões que acarretaram no “Processo dos 50”:

“Então aí começamos a fazer nossos documentos já com cabeça, tronco e membros – os estatutos do MPLA, o programa, o programa mínimo, o programa máximo. Isso tudo é feito a partir de Conakry. (…) Um dos primeiros cuidados que a gente tem em Conakry é aproximar-se de Angola (…)”.

No entanto, os contatos, a divulgação do novo movimento e o trabalho de conscientização que deveriam ser implementados pelos recém-convertidos militantes do MPLA foram tarefas de fôlego muito curto. No mês de junho do mesmo ano de 1960, uma nova leva de prisões em Luanda levada a efeito pela PIDE acabaria atingindo o núcleo central desse grupo, acarretando em mais uma prisão para Agostinho Neto.

Mas, afinal, por que razão não há consenso em torno da data de criação do MPLA? Acreditamos que a resposta para isso só pode ser obtida com a percepção da fragilidade do contexto da luta anticolonial, quer nas colônias, quer fora, nos anos 50 e 60, da pouca consistência dos contatos entre essas duas “frentes de luta”, além é claro da necessidade do MPLA de aparecer no cenário internacional como o primeiro movimento de contestação ao colonialismo português em Angola.

E como explicar o longo tempo que se passou até que se iniciasse o questionamento dessa data? Em primeiro lugar, a falta de informações, devido à dificuldade imposta pelo colonialismo português e à clandestinidade, não favoreceu o fortalecimento de uma versão contestatória, nem mesmo entre os inimigos declarados do MPLA. Em segundo lugar, as versões contraditórias acabaram sendo ultrapassadas pela constante reprodução do discurso oficial, que cada vez menos passou a aceitaropiniões divergentes.

No entanto, para o nosso estudo, perceber o que essa formação antecipada encobre é mais importante do que a simples transferência de datas. Ao passarmos a criação do MPLA de 1956 para 1960, ganha maior nitidez o que até então era camuflado pela versão oficial do MPLA, auxiliada pela escassez de informações.

Ambas ajudavam a esconder a existência de uma miríade de pequenos movimentos responsáveis por ações anticoloniais muitas vezes isoladas.

O entendimento dessa efervescência pulverizada de pequenos movimentos e partidos na década de 50 – entre os quais poderíamos relembrar o PCA, PLUA, ELA, MIA, MLA, MLN, MLNA e MINA – supõe o reconhecimento de dois fatores básicos: a clandestinidade a que eram empurrados pela repressão portuguesa e os diferentes vínculos parciais de solidariedade que os uniam.

No tocante à clandestinidade, era normal que tais movimentos desconfiassem e mesmo temessem qualquer agregação ou associação com outros parceiros já constituídos em organizações políticas. Contava para tanto a ação eficaz e rigorosa realizada pela ditadura fascista portuguesa, representada pela Pide e materializada no método de inflitração de informantes. Em vista disso e sem as condições para os grupamentos políticos se exporem, diminuíam as possibilidades de aproximação entre eles. Como tivemos oportunidade de perceber através dos relatos, por diversas vezes não se sabia nem para que movimento se estava trabalhando.

Por outro lado, tais organizações muitas vezes refletiam a existência de vínculos de solidariedade, desde entre os grupos formados por indivíduos do mesmo bairro, da mesma geração na escola, da mesma profissão, do mesmo clube, até entre os da mesma religião ou freqüentadores da mesma igreja ou missão. E nem sempre era fácil extrapolar de uma atuação nesse meio para outro.

O interessante nesse processo é perceber como irá se dar a unificação da luta empreendida por tais movimentos. Acreditamos que para isso tenham sido decisivas a perseguição e depois as prisões realizadas pelas forças de repressão portuguesas, que iriam desestruturar, quando não extinguir, os movimentos atuantes principalmente em Luanda. Na verdade, a ofensiva colonial sobre os grupos que agiam em Angola acabou por destacar e, conseqüentemente, fortalecer o grupo que estava no exterior.

De outra forma, como explicar a sobrevivência e o rápido crescimento do MPLA, exceto pelo fato de ser o único entre os movimentos luandenses naquele momento a poder ampliar as ações dos seus militantes fora das fronteiras do colonialismo português. Essa capacidade do MPLA, devido à atuação de seus líderes, de se fazer ouvir no exterior, não só na Europa, mas também na África, fez com que os pequenosgrupos existentes internamente, a maioria com militantes presos no “Processo dos 50” e também no decorrer de 1960, percebessem que suas chances de continuar a luta e mesmo sua segurança dependiam da sua aproximação a uma organização mais forte, mais ampla, com possibilidade de lutar por eles internacionalmente e de fazer o trabalho de convencimento junto aos demais países quanto à existência de presos políticos empenhados na luta pela independência de Angola.

Ora, o MPLA reivindicava e anunciava a sua atuação no interior; nada mais natural, portanto, que se filiassem a ele. Daí podermos pensar que, se o MPLA estivesse restrito ao interior de Angola como os demais movimentos, muito dificilmente fugiria a um destino idêntico ao desses grupos.

Evidentemente, a essa projeção no exterior soma-se a questão dos laços de solidariedade que existiam entre esses militantes inseridos no espaço luandense e os líderes exilados do MPLA, muito mais fortes quando comparados com os da UPA, que também possuía tal capacidade de exposição internacional e que durante algum tempo manteve relações com esses grupamentos luandenses. De acordo com a pesquisa em andamento de Carlos Pacheco, que tem se debruçado sobre o estudo da UPA, a transformação interna sofrida por esse movimento, resultante da disputa entre suas lideranças, parece ter causado seu distanciamento em relação a esse espaço luandense.

Ressaltemos, ainda, como fator importante para se entender tal aliança o fato de muitos desses indivíduos que articulavam e atuavam no interior dos grupos de base luandense comporem o que se pode chamar de uma intelligentsia angolana. Tinham sofrido o impacto, quando não participado das mais diversas formas, do movimento “Vamos Descobrir Angola”, que consistia no primeiro exercício de reflexão do que era Angola.

Dessa forma, pode-se afirmar que o êxito do MPLA em reivindicar a sua criação como tendo ocorrido em 1956 resulta, também, de que grande parte dos envolvidos nessa mobilização luandense de finais dos anos 50, com o passar do tempo, acabou por se ligar ao movimento.

A mesma idéia – de uma incorporação futura ao MPLA – parece servir também como fator explicativo do sucesso alcançado internacionalmente pelo movimento ao pleitear a organização do ataque às prisões ocorrido em 4 de fevereiro de 1961. Esse ataque, segundo as novas declarações e os estudos que têm sido elaborados, parece estar mais associado à atuação do cônego Manuel das Neves e de outras figuras ligadas à UPA. Esta, por sua vez, ao que tudo indica, continuaria, como conseqüência das suas tranformações internas, a se afastar ainda mais radicalmente de tudo que se relacionasse com a agitação luandense.

Por outro lado, o rápido crescimento do MPLA e de suas bases militantes, não obstante a prisão de importantes lideranças pela PIDE, tem que ser entendido como conseqüência de dois fatores fundamentais. Em primeiro lugar, a arregimentação dos indivíduos oriundos do interior de Angola, fossem das cidades ou do campo, que fugiram à violenta contra-ofensiva portuguesa decorrente dos levantes acontecidos em 4 de fevereiro e 15 de março. Entre esses a grande maioria pertenceria aos grupos etnolingüísticos quimbundo e bakongo, o que pode ser explicado pelo fato de os levantes terem acontecido nos territórios onde se concentram tais grupos, acarretando uma repressão ainda mais violenta nessas regiões. No caso dos bakongos, a força do laço de caráter étnico, existente de forma mais radical na UPA, acabaria por prevalecer em grande parte dos indivíduos. Assim, o MPLA veria reforçada sua base quimbundo, já que a região de Luanda e seu interior, sua principal base de apoio em Angola, é uma área em que predomina tal grupo, para além dos bakongos refratários a postura marcadamente étnica estabelecida pela UPA.

Para que tal absorção de pessoas tivesse lugar, a condição prévia foi a transferência de sua base de atuação de Conakry para Leopoldville, mesmo que com uma autorização provisória e sujeito a todas as retaliações e dificuldades possíveis de serem impostas pela UPA, lá instalada por muito mais tempo, como afirma Lúcio Lara. Nesse ponto, o destaque deve ser dado ao Corpo Voluntário Angolano deAssistência aos Refugiados (CVAAR), que funcionava como principal articulador, enquanto o MPLA não tinha possibilidade de agir legalmente.

O segundo fator a ser lembrado nesse processo de crescimento do MPLA é a fuga de Portugal realizada por um grupo de estudantes oriundos das colônias em meados de 1961. Após uma série de imprevistos e de intervenções diplomáticas envolvendo os Estados Unidos, a Espanha e Portugal, o grupo consegue se desvencilhar das pressões salazaristas e a maioria dos estudantes angolanos que participara do episódio passará a engrossar as fileiras do MPLA. Segundo Lúcio Lara, o movimento, por não ter condições de absorver todos, pediu a alguns países amigos que abrigassem parte desses indivíduos, concedendo-lhes bolsas de estudo. O relato de João Vieira Lopes, um dos organizadores dessa fuga, nos fornece maiores detalhes de como se desenvolvera o episódio:

“A partir daí, penso que há a explosão aqui em 61. Nós no exterior (…) resolvemos que era necessário sair de Portugal, (…) ir encontrar amigos que já estavam na maior parte, nessa altura, na Guiné Conakry, e descer para países fronteiriços como o Congo Kinshasa, que já estava a receber inúmeros refugiados políticos. Assim, a gente organiza uma fuga que ficou bastante ampla, porque foi pra cima de 120 estudantes (…), [para o] norte de Espanha e depois para a França. Foi uma organização bem montada, [na qual] fomos ajudados pelo núcleo protestante, que já tinha uma boa prática, porque eles tinham já ajudado os argelinos na sua luta de libertação. (…) Nós fizemos uma fuga não apenas de angolanos ou de militantes do MPLA, estavam integrados todos aqueles que pensávamos que tinham uma base de nacionalismo suficiente para poder largar aquela vida e integrar-se numa luta armada. (…) Foi Gana quem se empenhou e conseguiu trazer da França, através da Alemanha, (…) os angolanos, [que] foram parar na fronteira de Angola, os cabo-verdianos, [que] foram para outro lado, e os moçambicanos. Todos aqueles que estavam (…) foram continuar sua luta. Esta é a minha integração, digamos. Quando chego a Kinshasa, uma nova etapa se desenvolve. Foi a projeção do líder dos estudantes (…) e sou integrado na direção do MPLA, em Kinshasa, portanto já em 61.”

Esses novos recrutamentos acontecidos já em Leopoldville iriam alterar o perfil inicial do MPLA. Os antigos militantes da luta anticolonial que possuiam uma perspectiva nacional, em sua grande maioria moldados por uma vivência urbana, teriam que se defrontar agora de forma ainda mais intensa com indivíduos provenientes de outras realidades socioculturais. Ao mesmo tempo, porém, o alargamento de suas bases e mesmo de suas lideranças passaria a dificultar a acusação, que vinha sofrendo por parte da UPA, de que se tratava de um movimento de mulatos intelectuais e urbanos. Em suma, passar a criação do MPLA de 1956 para 1960 significa dar-lhe uma dinamicidade que de forma alguma aparecia na versão anterior.

Se ele surge em 1960, logo em 1961 transforma-se ao lado da UPA na principal referência anticolonial angolana.

Não queremos perder a oportunidade de finalizar esse artigo destacando um ponto por vezes disperso e não muito claro no decorrer do texto, o que deve ser entendido como conseqüência do tema, do tipo de abordagem que optamos por realizar, do marco cronológico e da discussão que pretendemos travar. Trata-se do apoio popular, nem sempre demonstrado de forma direta, a essa agitação anticolonial.

A população tinha, muitas vezes, formas diferenciadas de contestação ao colonialismo, como, por exemplo, as migrações e a recusa ao trabalho contratado, que são as mais evidentes. Para além dessas, podem ser destacadas ainda o apoio aos movimentos de tipo messiânico e mesmo as manifestações contra as atitudes ditatoriais das autoridades coloniais portuguesas, como quando da prisão de Agostinho Neto em 1960, que iria gerar uma ação de contestação na região de Icolo e Bengo, local de origem do líder do MPLA e que sofreria dura repressão por parte dos colonialistas. Um exemplo a mais seria o episódio da Baixa do Cassange.

Da mesma forma, a concentração, na região dos Dembos, da população em fuga das retaliações portuguesas, após os levantes do primeiro semestre de 1961, foi uma ação que nasceu da necessidade dos populares de se esconder do inimigo e da tradição já existente na área de acolher os que fugiam ao controle do colonialismo. Lembremos que as lutas contra as autoridades governamentais, quando da expansão colonial do século passado, não cessariam até fins da segunda década deste século. Em 1961,portanto, a memória desses fatos ainda estava bem viva.

Com isso, queremos deixar claro que, no aspecto mais amplo da luta anticolonial angolana, mesmo nesse período em que nos concentramos, não se deu uma atuação isolada dos líderes mais urbanizados na mobilização de populações acomodadas. O sucesso desse recrutamento e dessa parceria só foi possível porque havia por parte dos demais angolanos uma atitude e uma predisposição, quando não uma ação,anticolonial que se associava a essa perspectiva de luta mais ampla que seria desenvolvida pelos movimentos de libertação.

Anexo

Declaração de Comprimisso

Nós, abaixo assinados, membros activos (no exterior dos nossos Países Africanos) das seguintes organizações patrióticas: “Movimento Popular de Libertação de Angola”, “União das Populações de Angola” (UPA), “Partido Africano da Independência” da Guiné (PAI) e “Frente Revolucionária Africana para Independência Nacional das Colónias portuguesas” (FRAIN) que coordena a acção revolucionária dos patriotas africanos, concordamos no seguinte, depois da reunião realizada emTunis, em 31 de Janeiro de 1960:

a) As nossas organizações decidiam numa acção conjunta na luta contra o colonialismo português, decisão de que temos provas e devereres cumprir patriòticamente.

b) A personalidade, a doutrina e a independência de cada uma das nossas organizações pode ser mantida através dessa acção conjunta.

c) Impõe-se estabelecer o mais cedo possível um programa concreto de acção para 1960 e que conduza os nossos povos à independência no mais breve espaço de tempo.

d) Representando a UPA, integra-se na Frente Revolucionária Africana para a Independência Nacional das Colónias Portuguesas (FRAIN) o camarada Guilmor, também conhecido por Rui Ventura e Roberto Haldane, o qual, juntamente com os restantes signatários, todos pertencentes àquela Frente, e quaisquer outros elementos representantes de outras organizações patrióticas, deverão proceder ao planeamento, coordenação e incremento da actividade revolucionária da nossa luta comum anticolonialista, e de maneira a desencadear o mais breve possível uma acção concreta nos nossos países contra o colonialismo português.

e) Prometemos maior e mais completo sigilo conspirativo em relação a este documento e às decisões secretas por nós tomadas ou que venham a ser tomadas, e, bem assim, não tomar individualmente qualquer atitude ou compromisso que possa ter consequências significativas na nossa luta comum contra o inimigo comum, o colonialismo português.

f) Concordamos em que a nossa próxima reunião, na qual deverão comparecer todos os signatários deverá realizar-se em Conackry, capital da República da Guiné, em data a fixar posteriormente, mas que não deve ir além do mês de Março de 1960.

Nós declaramos que às no, digo, às organizações patrióticas a que pertencemos fica reservado o direito de, em qualquer altura, reconsiderarmos sobre esta declaração de compromisso e alterá-la, digo, propôr a sua alteração ou considerá-la de efeito nulo para o que, entretanto, os outros membros tenham o direito de exigir credenciais a, digo, os outros membros terão o direito de exigir credenciais autênticasdeterminantes dessas ou dessa resolução.

Abel Djassi: (PAI e FRAIN)

Hugo MENEZES: (FRAIN)

José GUILMOR: (UPA)

Lúcio LARA: (FRAIN e MPLA)

Viriato CRUZ: (FRAIN e MPLA)

Feita em Túnis, aos 31 de Janeiro de 1960, último dia da Conferência dos Povos Africanos.

Correcção: na alínea a) onde está “decidiam” deve estar “decidira, digo “decidiram”; e onde está “devereres” deve estar “deveres”.

* Abel Djassi foi o nome utilizado por Amilcar Cabral para não ser detectado pelo colonialismo português como tendo participado da conferência de Túnis. Também Holden Roberto utilizou outro nome, “José Guilmor”, para assinar o documento.

angola-livro-mpla-um-nascimento-pol_mico-de-carlos-pacheco-ed-vega-lisboa-1997-04

Referências:

(1)Esse artigo, com algumas alterações, consiste no capítulo IX da dissertação de Mestrado, defendida junto ao Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP), em dezembro de 1996, intitulada: “As linhas que formam o ‘EME’, Um estudo sobre a criação do Movimento Popular de Libertação de Angola”.

(2) Pesquisador do Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA) e doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense.