Luanda - A Constituição da República, aprovada em 2010, foi um terrível golpe para o Estado democrático e de direito em Angola. Alguns juristas costuraram o fato da tirania com as medidas exactas de José Eduardo dos Santos. Esses académicos trouxeram em sua defesa um estranho conceito a que chamaram de “ variante idiossincrática” para justificarem a concentração de poderes num só indivíduo, o líder, baseando-se na estrutura tribal dos antigos reinos e sobados.

Fonte: Facebook

Rodeado de uma corja de bajuladores que já se lambuzavam com os milhões de dólares do negócio do petróleo, JES caiu na tentação e vestiu o dito fato das monarquias absolutistas e lá fomos nos descendo vertiginosamente a montanha russa, confundindo-se os gritos de aviso de alguns e as salvas e elogios falsos dos que o rodeavam. A partir dali, a separação de poderes passou a uma mera formalidade grifada na Constituição e o poder judicial ficou refém de dispositivos arbitrários que, metidos nas entre-linhas do texto constitucional, concederam ao idolatrado líder, um poder quase ilimitado, sem qualquer pólo institucional de equilíbrio. Nessas condições, não houve, nem poderia haver ambiente para a afirmação do Estado de direito. Só havia JES e o poder.


Quando João Lourenço chegou finalmente à cadeira presidencial, veio com ideias de mudança estruturadas. Deve ter engolido muitos sapos nas reuniões estratégicas da cúpula ligada a JES no MPLA, que pretendia um compromisso mafioso a fim de garantir a continuidade da pilhagem dos recursos do pais.


Após estar finalmente legitimado com os poderes presidenciais, João Lourenço olhou para o fato do Zedu e pensou: não vou vesti-lo completo, mas vou aproveitar algumas peças.


Quanto a isso, não devem existir ilusões: por vontade de JLo a revisão constitucional não será para o presente mandato. Vivemos um completo descalabro institucional do Estado e o actual PR, que é um militar, sabe muito bem que necessita de poder pessoal para impor disciplina e rigor nas diferentes hierarquias da administração estatal, enquanto se espera que as igrejas e organizações sociais e as famílias façam a sua parte, no resgate da moral da nação.


Concluindo, a actual cruzada contra supostas práticas corruptas, embora aparentemente mostrem uma inesperada independência do poder judicial, ainda é de motivação e influência politicas que são imprimidas pelo PR.


Acho impossível negar que existe um clamor nacional no sentido de se romper com as práticas herdadas do consulado de JES. Talvez surjam duvidas em alguns sectores, se essa dinâmica responde a uma motivação genuína de mudança, ou se se trata de uma operação cosmética e de recauchutagem do regime caduco e moribundo que o antecedeu, para reinar exclusivamente num novo ciclo. Os super-poderes concedidos a uma só pessoa, pela Constituição de 2010, são uma permanente tentação do pecado mortal. Pessoalmente, tenho confiança em João Lourenço, mas o futuro, como sempre, tudo dirá.


Existem inúmeros desafios e eu posso apontar alguns: a verdadeira separação de poderes, que é uma das traves mestras do Estado democrático de direito, só se efectivará com a imprescindível revisão constitucional e a inadiável reforma do Estado. Isso deverá implicar a efectiva descentralização da gigantesca engrenagem administrativa estatal, tarefa que não se esgotará com as eleições autárquicas previstas para 2020.


Creio que, apenas uma transformação dessa magnitude, gerará uma nova responsabilidade, com o Estado burocrático e centralizador a deixar o seu papel tradicional de provedor directo do progresso social e económico, passando para uma nova responsabilidade de facilitador e de salvaguarda de um ambiente propicio à harmonia, no qual a sociedade civil e o sector empresarial privado surgem como verdadeiros parceiros no desenvolvimento multifacético da nação.