Luanda - O músico angolano Barceló de Carvalho "Bonga" apontou, em Luanda, a necessidade de uma mobilização geral em prol da cultura nacional e da defesa e promoção da personalidade sócio-cultural do país. O recém-condecorado pelo Presidente da República, João Lourenço, conta aspectos ligados à carreira, ao momento sócio-político de Angola.

É importante preservar identidade da cultura angolana

Fonte: Angop
Depois de longos anos de trabalho musical, hoje é finalmente reconhecido no país. Como se sentiu ao saber que seria condecorado em vésperas do 11 de Novembro, Dia da Independência Nacional?
É um prémio com um valor incalculável. Não se trata de um prémio simbólico, é um prémio com um elevado valor, pois vem do meu país e dado pela mais alta figura da magistratura angolana. É um tributo que enaltece um longo e árduo trabalho. Um trabalho de uma vida inteira. É o mais alto grau atribuído pelo Estado angolano a individualidades que deram o melhor de si em prol de Angola. É a medalha que passa a ser a número um na parede da minha casa. É o maior orgulho para a minha carreira.

Quem acompanha a minha carreira sabe do que estou a falar. Fui alvo de chacota, fui menosprezado, fofocado, boicotado e muitas outras coisas do ponto de vista negativo, mesmo sendo um filho da terra que tinha apenas a missão de trazer a público o sofrimento do meu povo. Felizmente, como diz o ditado: “nunca é tarde” e este prémio tira-me a lágrima do canto do olho e coloca-me nos parâmetros da Nação como um filho querido.

Muitos prémios conquistados, com destaque para a condecoração em 2014, promovida pela Embaixada de França, com a insígnia de Cavaleiro na Ordem das Artes e Letras. O que falta na sua galeria?
Não estava a contar com esta condecoração. Não sei o que pode mais acontecer pela positiva. Mas o que vier, desde que seja em conformidade com a minha participação, com a execução das minhas obras, sem a mão estendida para pedir algo, será mais uma cereja no topo do bolo.

A condecoração que recebi é o maior carinho que podia receber do meu povo, que registou e sabe que o homem que ouviam a cantar em caxexe para não serem conotados ou reprimidos hoje está à vontade e a cantar com alegria. Saber que quem durante muitos anos ouvia o Bonga de caxexe já o pode ouvir abertamente e este mesmo Bonga está a ser considerado pelas mais altas estâncias do país.

É um dos músicos que sempre se bateu pelo bem-estar dos angolanos por meio da música. Que avaliação faz do actual momento político?
A mudança presidencial tem um peso muito significativo no momento que se vive no país. E o mais significativo ainda é o facto de o Presidente João Lourenço ser do mesmo partido político que governa o país. O país respira um novo paradigma, uma nova era que transmite confiança e esperança ao povo. O novo Executivo tem um longo caminho pela frente, pois é preciso limpar a casa, varrer a rua, a burocracia, os escritórios e tudo que estiver ou possa atrapalhar a nova caminhada de Angola.

A mudança, digamos, não está a ser somente teórica, mas sim prática, mobilizando todos os angolanos para participarem activamente na vida política e social, como forma de contribuir para que haja comida nos pratos de todos os angolanos, que todos tenham acesso aos medicamentos, à escolarização. É necessário que os angolanos se sintam felizes, satisfeitos e partícipes activos no desenvolvimento de Angola. Há, portanto, muita coisa feita e outras que devem ser feitas para que todos nos sintamos definitivamente filhos da mesma mãe.

Quem imaginava há cinco anos que um dia personalidades como Bonga, Viriato da Cruz, familiares de Jonas Savimbi, Mfulupinga Landu Victor e outros que, anteriormente, eram tidos como as ovelhas ranhosas de Angola fossem hoje reconhecidas pelo trabalho em prol de Angola?

É um grande passo no caminho pela concórdia entre os angolanos. Significa que dentro de muito pouco tempo vamos praticar a frase “etu mudietu”- nós entre nós. O país e os angolanos já sofreram muito e basta de sofrimento. Fomos invadidos por máfias estrangeiras e nacionais, cujo objectivo era delapidar as nossas riquezas, que eram e são necessárias para o desenvolvimento do país. Chegou a hora de acabar com as diferenças, com o sofrimento do povo e com o mesmo grupo que sempre beneficiou das riquezas do país.

"Angola 72", lançado em 1972, na Holanda, é o seu primeiro disco. É também o princípio de uma carreira artística recheada de peripécias. Que recordações guarda deste disco?
Foi uma surpresa. Era tudo o que eu trazia dentro de mim e resolvi gravar, mas não estava a pensar que ia ter sucesso, que ia fazer nome, que ia viver da música. Foi bem recebido, colhido, seguido, aliás, como sempre disse, não cantei para mobilizar carne de canhão, porque ninguém estava a sonhar que os angolanos iam lutar entre si. Era um chamamento, da mesma forma que os panfletos que recebíamos nos nossos quintais. Não assinados e muito menos os nomes de quem o produziu, porque também não podia, nem partido político e que antes de os entregarmos no velho (pai) líamos primeiro. Mas principalmente a vivência do Zeca (Bonga).

Víamos tudo e não podíamos fazer nada. O Bonga levou para o “Angola 72” todas as injustiças que se registavam no país. Assim que entrei, pela primeira vez, num estúdio, na Holanda, depois de ter passado por Portugal, onde fui campeão dos 40 metros em atletismo - que não afectou o meu nacionalismo, consegui despejar tudo para fora. E ainda bem que assim aconteceu.

Depois do “Angola 72”, do problema com os portugueses na época colonial, o Bonga começa a ter conflitos em Angola por causa das letras de algumas das suas músicas...
Infelizmente, passei por uma fase bastante complicada, porque alguns integrantes do governo angolano se limitavam simplesmente a ser imitadores da política portuguesa e porque também achavam que o que eu cantava era contra eles, os novos burgueses angolanos. Houve divisão entre os angolanos e, felizmente, hoje esta situação está a ser ultrapassada. Ficamos divididos no tempo e no espaço. Começamos a criar um clima de inimizade e os oportunistas aproveitaram para fazer das suas, jogando um papel bastante preponderante no afastamento de uns e de outros que consideravam como espinhos para a concretização dos seus objectivos, desmembrando completamente a família angolana. Apesar de o povo ter levado algum tempo para reagir, hoje a situação é completamente diferente. Houve toda uma máquina que levou o país à situação em que esteve.

Como se sentiu ao ser banido musicalmente em Angola?
Foi necessária força moral e psíquica para não se ir abaixo, mas também continuar o trabalho, porque dei conta, com o contributo de muita gente; primeiro, tenho talento. Segundo, as músicas eram vendidas e consumidas; terceiro, os espectáculos apareciam e eu tornei-me um profissional.
Quando temos um número considerável de países interessados pelo nosso trabalho, obriga-nos a sermos profissionais e a fazermos o trabalho, muito embora não seja ouvido no país, porque era proibido devido à acção dos invejosos políticos que tomaram conta do país.

Até a família sofreu a acção dessas pessoas que tentaram destruir a minha carreira que, ao invés de se valorizarem, darem força, tentaram prejudicar. Felizmente, com algum malabarismo e curvas, consegui ludibriar os ditos e levar para frente a minha carreira musical. Os angolanos, às vezes, levam tempo para atingir o topo por causa do comportamento infame e da inveja dos próprios compatriotas, que não ousam dar força e compreender, mas pelo contrário inventam mentiras. Mas a têmpera do Bonga é mais forte e hoje estou a colher os frutos do meu trabalho.

Temas como “Camacove”, “Cabomborinho”, “Marimbondo”, “Macongo”, “Homem do Saco”, “Frutas de Vontade”, “Diakandumba”, “Maria Casputo” têm uma história, uma mensagem muito distinta. O que procurou, realmente, transmitir ao público com estas músicas?
Quando estas músicas foram produzidas, eu não podia usar uma linguagem directa. Não podia usar palavrões, como acontece com alguma juventude hoje. São músicas cujas mensagens transmitem o sentimento da grande maioria dos angolanos naquela altura. São músicas cujas letras retratam o dia-a-dia dos angolanos, as suas malambas.

Música angolana do passado, actual e do futuro. Que avaliação faz?
A música angolana para futuro tem que ser a música angolana deste povo. Não pode ser a música de imitação. Não sou obcecado pelos jovens (nossos neto), jovens (nossos filhos). Temos que os educar, mas quando já são maiores de idade temos de ter uma palavra a dizer em relação ao seu comportamento, derivado da nossa experiência, da vivência e das tradições.

A música para o futuro é o que mais me preocupa, pois é no dia seguinte que temos de ter a capacidade de conservar as tradições e puder dizer que este, por exemplo, é o semba e está bem representado e não está sofisticado. Temos de definir o que é nosso, o que faz parte de nós angolanos. Temos de valorizar o nosso e tratar de mostrar ao mundo o orgulho de sermos angolanos.

Aos 76 anos de idade, o Bonga continua versátil nos palcos. Qual é o segredo para esta desenvoltura?
O segredo está na disciplina de vida. Defendo o meu corpo sem entrar em igrejas, sem frequentar o mundo obscuro (feiticismo). Quando fiz desporto era necessário ter o físico em dia e isto fez com que fosse obrigado até hoje a seguir um ritmo de vida muito bem regrado. A manutenção física do corpo e do espírito é muito importante. É necessário cuidado com os alimentos e com o que bebemos.

Já pisou vários palcos no país e no estrangeiro. Que espectáculo mais marcou a sua carreira artística?
São 46 anos de carreira. São muitos espectáculos que marcaram a minha vida e que fizeram de mim o que sou hoje. A recepção que tenho quando subo a um palco fora ou dentro do país dá-me imensa satisfação de continuar a representar Angola no mercado internacional. Levar o semba, uma música que era considerada folclórica, satisfaz-me. Mas a minha satisfação prende-se com o facto de levar os angolanos em palcos estrangeiros.

Sente-se realizado?
Não. Ainda tenho muitas coisas para fazer. Comecei a cantar por razões de intervenção sócio-política. Tenho um pequeno sonho: realizar um espectáculo com vários artistas angolanos, como forma de dar o que de melhor temos ao nosso povo.

O que significa a música para si?
Tudo. Sem música não vivo. Mas atenção… Música não é animação exótica. Aquela coisa que alguns fazem, misturando os instrumentos para dar um ar de modernismo... Aquela melodia, arranjo musical, harmonia, aquela voz com um timbre, isto sim pode ser nacional ou estrangeiro.

Se tivesse que escolher, começar do zero: atletismo ou música?
O atletismo é limitado. Praticamos durante algum tempo e depois paramos, porque o corpo já não consegue reagir. A música pode ser feita até onde for possível. Olha que mesmo com os meus 76 anos de idade ainda subo com mais frequência a um palco que muitos jovens. E como tenho uma disciplina de vida, que me obriga a não exagerar no álcool, sou obrigado a preparar-me muito bem antes de subir a um palco. Em conversa com colegas, gosto de aconselhar para se olhar com seriedade a vertente profissional. Temos que ser profissionais no verdadeiro sentido da palavra. Mas só podemos ser profissionais quando temos empresários sérios, que paguem os artistas pelo trabalho feito.

Tem alguém na família a seguir os seus passos?
O Bonga Kwenda Barceló de Carvalho, meu filho. Apesar de não fazer da música a sua profissão, ele toca e canta. Sei que está a preparar uma pequena surpresa para o mercado muito brevemente. Infelizmente, também não foi bem compreendido, pois os seus primeiros rebentos musicais não saíram a público, porque a pessoa com quem tratou do assunto engavetou o projecto, sem qualquer explicação.

Que conselhos deixa à nova vaga de artistas angolanos?
Trabalho sério, profissional e responsável. Saber fazer as coisa, criar composições com letras cujas mensagens não firam a dignidade das pessoas. Fazer-se rodear de pessoas que o possam ajudar positivamente, conselheiros que tenham moral para educar, saber dirigir. Se queremos combater o preconceito que existe no estrangeiro contra a música angolana, uma componente importante é a formação. Não adianta pensarmos que basta segurar num instrumento musical ou abrir as cordas vocais. Não é porque tem um ou dois discos no mercado e já pode considerar-se um grande músico. Temos que apostar na formação, dedicar-se muito.

O que falta para que o semba penetre em mercados mais alargados?
A intervenção de todos os músicos angolanos. Com todos os músicos a produzirem semba, a cantarem semba, como fazem os argentinos com o tango, os brasileiros com o samba. Todos os dias as rádios e as televisões a tocarem o semba, a promoverem o semba, vamos poder atingir um maior número de consumidores a nível mundial. A minha música passa todos os dias, mas todos os dias nas rádios francesas e em Angola não. É uma brincadeira. Quando há eventos de misses e outros o que se toca nestes locais é, maioritariamente, música estrangeira. Temos que acabar com este comportamento que lesa a cultura nacional e coloca em causa a identidade do povo angolano. Deve haver uma mobilização geral em prol da cultura nacional para que possamos vincar a nossa personalidade sócio-cultural.

PERFIL

José Adelino Barceló de Carvalho nasceu em Quipiri, na província do Bengo, a norte de Luanda, em Angola. A família tratava-o carinhosamente por Zeca. A infância foi passada em bairros como os Coqueiros, Ingombota, Bairro Operário, Rangel e Marçal. Sempre viveu num ambiente intimista de preservação das músicas e tradições angolanas, marginalizadas pela dominação colonialista presente na época.

O folclore dos musseques (bairros pobres) cedo fascinou o pequeno Zeca e, por isso, começou a frequentar e a participar das turmas dos bairros típicos de Angola, onde iniciou a actividade musical.

Foi no bairro Marçal onde fundou o grupo Kissueia. Bonga resolveu, depois, criar o próprio estilo musical, afirmando-se a especificidade da cultura angolana, numa época muito conturbada.

Carreira musical

Em 1972, na Holanda, lança o seu primeiro álbum "Angola 72", no qual canta a revolução e o amor à pátria. É por esta altura que Barceló de Carvalho passa a chamar-se Bonga Kwenda. Adopta um nome africano que significa "aquele que vê, aquele que está à frente e em constante movimento".

Bonga actua pela primeira vez nos Estados Unidos, em 1973, na celebração da independência da Guiné-Bissau, integrado num espectáculo de homenagem à cultura lusófona.

Em Abril de 1974 lança "Angola 74". Nos anos 80 torna-se no primeiro artista africano a actuar a solo, dois dias consecutivos no Coliseu dos Recreios (Lisboa), símbolo da música portuguesa. É o primeiro africano “Disco de Ouro” e de “Platina”, em Portugal.

O sucesso estende-se para lá das fronteiras lusófonas e Bonga actua no Apolo, em Harlem, no S.O.B. de Nova Iorque; no Olympia de Paris, na Suíça, no Canadá, nas Antilhas e em Macau.

Marca Bonga

Bonga cria uma fusão entre a sua pessoa e a música de Angola, tornando-as indissociáveis e tendo como maior estandarte o semba, um ritmo tradicional angolano correspondente ao samba brasileiro, mas precursor deste. Também interpreta géneros musicais cabo-verdianos, sendo responsável pela roupagem da coladeira “Sodade” para uma morna, 18 anos antes de Cesária Évora a tornar mundialmente famosa.

Prémios

Bonga recebeu vários prémios de popularidade e homenagens, além de outras distinções, nomeadamente medalhas e discos de ouro e de platina. Em 2010 foi galordoado com o Prémio Nacional de Cultura e Artes, na categoria de Música.

Em 2014 foi condecorado, pela Embaixada de França em Angola, com a insígnia de Cavaleiro na Ordem das Artes e Letras, e em 2018 o Estado angolano condecorou-o com a Medalha de Bravura e do Mérito Cívico e Social, 1.ª Classe, no âmbito das celebrações do 43º aniversário da independência nacional.

Tem manifestado a sua solidariedade e altruísmo, dando concertos de beneficência para instituições como a MRAR, a Amnistia Internacional, FAO, ONU e UNICEF.

Para além disso, tem participado em CDs como "Em Português Vos Amamos" dedicado a Timor, "Paz em Angola" ou ainda "Todos Diferentes, Todos Iguais", um marco na luta contra o racismo.

Tem mais de 300 composições da sua autoria, 32 álbuns, mais de 60 video-clips, sete bandas sonoras de filmes, e álbuns com inúmeras reedições em todo mundo.

Suas músicas têm sido interpretadas por outros artistas, com destaque a Martinho da Vila, Alcione e Elsa Soares (Brasil), Mimi Lorca (França), na República Democrática do Congo, Bovic Bondo Gala, no Uruguai, Heltor Numa de Morais, e muitos angolanos da nova vaga.