Luanda - O petróleo baixou para menos do que o estimado no Orçamento Geral do Estado que rege a programação dos gastos públicos do próximo ano, a ‘Operação Resgate’, depois de ter instalado o caos entre ambulantes e comerciantes, está em balanço e, finalmente, o tema Matias versus Salu remeteu-se à sua insignificância pública. Os assuntos na ordem do dia, e que lhe trazem as páginas do seu NG, alguns até histórias que ajudam a renovar a fé na humanidade entre nós, como a do comandante que está a fazer o que pode para melhorar a vida de 300 crianças e idosos no Bengo, até essas, empalidecem e perdem relevância, se qualquer um de nós se puser, por um momento, no lugar dos pais da menina de sete anos tornada doente pelo nosso sistema de saúde.

Fonte: Nova Gazeta

Dois minutos desse exercício de nos colocarmos na pele de pais de uma criança de sete anos que entrou com um problema de dentes no hospital público e saiu infectada pelo vírus VIH, sujeita agora a um sem fim de tratamentos médicos que lhe vão condicionar a infância e todo o estigma associado a uma das doenças mais discriminadas, são suficientes. Bastam para imaginar a frustração, os medos com relação ao futuro e a sensação de profunda injustiça e injúria infligidas a um inocente que devíamos proteger. Se pensarmos que, por qualquer infelicidade, por motivo de acidente, por exemplo, podia de facto acontecer a um filho nosso ir parar a qualquer unidade hospitalar onde erros como estes e variados outros geralmente custam a vida a quem lá entra, o arrepio na espinha é inevitável. Dependemos todos muito da sorte no que toca a cuidados de saúde no nosso país.

 

É verdade que erros médicos acontecem em todo o mundo. Nos EUA, um estudo de há cinco anos apontava para que cerca de 12 por cento das mortes se deviam a erros médicos reportados, sendo que a estimativa dos erros por reportar poderia chegar ao dobro, para mais de 440 mil mortes anuais. Trata-se da terceira causa de mortes naquele país. Administração de medicamentos ou dosagens erradas, diagnósticos errados e outros como administração de cuidados fragmentada ou com falhas procedimentais ou de comunicação são muitas as possibilidades de erro que podem custar a vida aos utentes.

 

Nas palavras do autor do estudo “o panorama nos países em vias de desenvolvimento será certamente muito pior”. Angola, onde estamos longe de conhecer o panorama estatístico, não obstante ter passado à categoria de país de rendimento médio, no que toca a cuidados de saúde, certamente se insere na categoria do atraso, a única onde pode caber um sistema que permite falhas consecutivas ao ponto de sangue contaminado chegar às veias de crianças. Digo crianças, plural, porque este infelizmente não é caso único. O NG reportou no passado a mesma situação de contaminação com o vírus VIH de uma criança de apenas quatro anos, sendo que a Rede Angolana das Organizações e Serviços da Sida (ANASO) garante que estes casos são recorrentes.

 

O facto de metade do sangue recolhido (e que é sempre insuficiente) ter de ser descartado por contaminação, como divulgou o Instituto Nacional de Sangue, é mais um reflexo deste subdesenvolvimento profundo no sector. De resto, o sangue, que, nas nossas unidades hospitalares, é pouco, mal testado, vendido e comprado, devia ser alvo de estudo sério e de definição de estratégias concretas e urgentes.

 

Nas redes, a comoção e os pedidos da cabeça da ministra da Saúde vão-se empilhando à velocidade das partilhas. Diz-se que na ‘Nova Angola’ não pode haver espaço para erros desta natureza sem responsabilização de dignatários. É compreensível a indignação pública, mas e agora pergunto eu: a demissão da ministra nesta fase ia, de facto, ser mais do que o assar do bode expiatório para efeitos de satisfazer a opinião pública? Mais do que populismo? Pergunto-me o que uma demissão iria mudar no sistema de Saúde que sabemos estar enfermo há muito, antes da assumpção de responsabilidades por parte de Silvia Lutucuta. A verdade é que a cabeça da ministra não vai reparar o dano à vida da menina e que a metamorfose por que tem de passar o sistema de saúde dificilmente se opera em pouco tempo como tem o da dita ‘Nova Angola’. Isto porque, além dos erros de incompetência administrativa, que são muitos, existe um problema anterior e mais grave de ocultação da realidade que é cultural.

 

A tentativa de abafo do caso relatada pelo condoído pai da criança, essa sim (e não tanto o erro em si), seria merecedora de reprovação da conduta do Ministério. Isto porque este aproveitamento da fragilidade dos mais vulneráveis para a imposição de silêncio é sistémico e dificulta a percepção da dimensão dos problemas reais do sector. Sem a percepção da dimensão dos problemas, é impossível combatê-los com eficiência.

 

Com ou sem demissão, vamos continuar a depender de muita sorte no que diz respeito a cuidados de saúde entre nós. A mudança tem de ser bem mais profunda.