Luanda - De fora, a imagem atira-nos a memória para a travessia do rubicão feita pelo Imperador Júlio César. Uma imagem que destapa a revolta das águas de um rio outrora em falso sossego.

Fonte: NJ

A cambalear, o seu caudal, resoluto, lamacento e nauseabundo, nunca se assemelhou ao livro aberto que se apregoava na catequese.


Quem, a seguir, veio a tomar conta do leme do barco acabou, afinal, por se deparar com um bojo abarrotado de páginas em branco…


Antes de mergulhar nas suas profundezas, o novo marinheiro disse ao que vinha e teve o cuidado de lançar vários avisos à navegação, mas não foi levado a sério.


Entalados numa porta giratória, que aconchegava a chafurdice da política com os negócios, os promotores do baile de máscaras decidiram prosseguir a sua marcha triunfal com a “percepção” de que tudo se podia “continuar” a fazer porque nada “haveria de lhes acontecer” porque o Altar estava ao serviço “da impunidade”…


Parecia que estávamos hipnotizados por um ser “ungido à condição de entidade sobrenatural”. O comboio em que seguia avançava ao ritmo de uma marcha tétrica mas ninguém ousava travá-lo.


Na cabine “Vip”, completamente lotada, viaja a cleptocracia reinante. Recheada de mordomias, arrotava caviar e mijava Moet & Chandon, sob o olhar pálido de esquelética criadagem.

Lá dentro, seguia uma sociedade secreta que só ela julgava saber descodificar as senhas que assombravam as regras do seu sinistro jogo. O que o maquinista dizia “independentemente da forma, a despeito do conteúdo, era lei”.


Cá fora, a manada, submissa, cega e muda, estava ali para obedecer às ordens até dos minimonarcas que saíam em série da fábrica.


Levitando em silêncio, o mestre da orquestra, manejava com soberba as rédeas do poder com um sofisticado controlo remoto em volto em mãos protegidas com luvas de coro.


Dominado pela “húbris”, não conseguia, porém, perceber é que estava ali a criar o “Polvo” que haveria de ser a principal causa da sua autodestruição e do desmoronamento do seu oligárquico império…


Antes de tomar posse, aquele por quem poucos esperavam havia dito ao que vinha, mas, como vinha da mesma escola, aprendera o mesmo idioma e absorvera a mesma lábia, não foi levado a sério. O que disse na altura, para a soberba da casta mandante, estava, portanto, condenado a cair em saco roto.


Mas, ao primeiro comício da campanha eleitoral, ao anunciar o prenúncio de uma ruptura com o passado, logo tocaram os sinos. E o antigo patriarca, sem perder tempo, pôs-se, de imediato, em alerta máximo. Mesmo assim, para o resto da tribo, o homem continuou a não ser levado a sério…


Indiferente à jactância alheia, depois de tomar posse, sem soluçar, o homem confirmou ao que vinha. E então, a partir daí sim, passou, aos poucos, a ser levado a sério.
Muito a sério.


Sem pestanejar, desembainhou a espada e desencadeou uma cruzada sem precedentes na nossa história contra a corrupção. A escolha, errada para uns, fora, afinal, a escolha certa para outros. Graças a Deus, para a maioria da nação…


Com a cruzada em andamento, não faltou quem, de imediato, se apressasse a acusá-lo de ter enveredado por um processo de caça às bruxas. Falso. À falta de outros argumentos, colocaram-no na pele de um justiceiro. Também falso.


Tão falso quanto errado e perigoso é resvalar para esse tipo de interpretação. Errado e perigoso porque essa catalogação pode levar muita gente a pensar que o homem é quem detém a chave das prisões, como se tratasse de um carcereiro com poderes para prender, mandar prender, soltar ou mandar soltar quem quer que seja. Não, não tem esses poderes, isso é coisa do passado.


Errado porque essa interpretação é susceptível de levar algumas pessoas a verem nele a reencarnação do outro. Perigoso porque essa interpretação é susceptível de levar algumas pessoas a acreditar na extrapolação de poderes, que, em democracia, são, afinal, obrigados a partilhar o mesmo casamento mas… com separação de bens.


Pondo-se em campo, o homem rapidamente percebeu que no combate à corrupção tinha de alargar o espectro da retaguarda sob pena de puxar um pêndulo em que se não escaparia um só governador provincial, conta-se pelos dedos de uma mão o número de governantes do poder central, que saíram ilesos da purga.


Ao agir com sensatez, para arrumar alguns dossiers políticos mais problemáticos, tratou de separar as águas. O homem enraizara, porém, a convicção de que não era possível evitar a aplicação de medidas profilácticas fulcrais para estancar o derrame do sangue.


Com estas medidas, apontou o dedo onde estava a gangrena ao mesmo tempo que alertou a sociedade sobre a dimensão da metastização do cancro. O resto foi endossado ao poder judicial.


É por isso que em campo temos, por um lado, o Ministério Público e, por outro lado, os advogados de defesa dos acusados, que, até prova em contrário, gozam do princípio de presunção de inocência.


Do primeiro espera-se que observe rigoroso respeito pela observância das liberdades individuais dos cidadãos abrangidos com medidas cautelares enquanto não forem criados os juízes de instrução preparatória.


E ainda que aja com contenção na exposição mediática de alguns casos em segredo de justiça. E que não caia na tentação de fabricar “heróis da justiça”.


Dos segundos, espera-se, por sua vez, que não actuem com uma deliberada intenção de desacreditar o Ministério Público, respeitando a intervenção dos tribunais a quem em última instância, caberá pronunciar a sentença.


Não dependendo, nem podendo depender da boa ou má disposição de um homem, é assim que a justiça funciona num Estado de Direito e Democrático.


Com a chegada do homem ao poder, anda meio mundo atordoado, mas apesar de, a dada altura da sua carreira militar, ter sido educado em e por Moscovo, o homem não come criancinhas ao mata-bicho, nem anda a espiolhar ou a mandar espiolhar a vida dos cidadãos.


Atordoado deveria andar sim o próprio homem depois de ter feito o diagnóstico do presente envenenado herdado da antiga gerência.


Confrontado com a fria realidade dos números, foi ao fundo do baú e acabou por encontrar um baú com um fundo cheio de nada!

O homem que não foi levado a sério sabia ao que vinha mas, obrigado a jogar no escuro, não sabia o buraco em que fora metido.


Sabia ao que vinha mas, obrigado a jogar no escuro, não sabia o que (não) encontraria: um país subjugado por uma gestão toxicomaníaca, roubado até ao osso, atolado em dívidas e literalmente drogado!


O problema não era nem nunca foi de ideologia. Era e continua a ser de contabilidade, que nas lides políticas, por aqui, fabricou muitos “peritos”.


Controladas as operações aritméticas, as contas de somar saíam sempre certas. As de multiplicar, porém, passaram a ter zeros a mais. E as de subtrair ao Estado, a menos.


O mal passou depois a estar nas contas de dividir. E, por fim, instalou-se até fazer escola, na (des)ordem da distribuição…


Não espanta, por isso, que, apanhados com o rabo de fora, portadores de estrabismo petrolífero tenham agora à pressa tentado transformar o apagão registado no Tesouro Nacional na Luz que iluminou a fanfarra de trombeta e rufares instalada durante anos nos cofres das Reservas Internacionais Líquidas à guarda do BNA…


Não espanta, por isso, que, perante a expressão intrigada de um retrato sem rosto, esta semana tenhamos sido agraciados com a reencarnação da impoluta figura do “Rei Sol”, que, por aqui, voltou a confessar que, mesmo investido de poderes absolutos, não tinha culpa de nada, o orçamento era matéria do Ministro das Finanças e a política cambial do Governador do BNA, mesmo sabendo-se, como toda a gente sabe, que um e outro e o resto da antiga alcateia não mudavam uma vírgula sequer sem a sua suprema autorização…


Tão patética foi a confissão, que deu para perceber que a perda da noção do tempo passou a ser cada vez mais proporcional ao desgaste dos neurónios.


E a obsessão pela reconquista de um poder mal gerido, esfrangalhado e definitivamente perdido, fez saltar para o Altar uma munição desprovida de pólvora: a manipulação.


Interrompido o jejum e impulsionado pelas sobras da Corte, a farsa foi montada mas a salva de canhões, dada com tiros de pólvora seca, recomendava uma língua presa sem ser, todavia, vigiada pelos tradicionais olhares de escuta sinistra.


Evitar-se-ia a trapalhada na exposição de uma caricatura de si própria cobrindo uma figura trémula, envergonhada, sem brilho e sem convicção, refugiada numa fúnebre liturgia: a defesa, a qualquer preço, de uma causa – o dinheiro – que não une, mas apenas (e temporariamente) junta os infiéis. Tudo por causa de um homem que não foi levado a sério…


Gustavo Costa