Lisboa - Excerto do livro Notícias do Palácio - O Primeiro Ano de Mandato do Presidente João Lourenço, da autoria do angolano Luís Fernando - que era jornalista e, desde a posse do atual presidente de Angola, passou a ser seu secretário de Imprensa. Um relato, de bem perto, que é uma nova forma de fazer política que João Lourenço inaugurou no seu país.

Fonte: DN

Quando o Presidente João Lourenço se instalou no Palácio da Cidade Alta em Luanda, no mês de setembro de 2017, na sequência da vitória eleitoral de agosto desse ano, encontrou entre o pacote dos dossiês amargos um particularmente escabroso: as relações de Angola com Portugal, abaladas por um caso que corria na justiça portuguesa e que envolvia Manuel Domingos Vicente, ex-vice- presidente da República.

 

É uma história fácil de resumir: em fevereiro de 2017, o Ministério Público português acusou Manuel Domingos Vicente, vice-presidente de Angola, em pleno exercício de funções, de corromper o procurador português Orlando Figueira com o valor de 760 mil euros, para que este arquivasse dois inquéritos, um deles relacionado com a aquisição de um imóvel em 2008. Sobre o dirigente angolano recaíam, em concreto, os crimes de corrupção ativa, branqueamento de capitais e falsificação de documento. Eram os passos iniciais da Operação Fizz, que viria a conhecer desdobramentos dramáticos algum tempo depois com o anúncio de que o político e antigo gestor principal da petrolífera Sonangol passara à condição de arguido.

 

Uma mão-cheia de elementos relacionados com o processo incomodou, desde logo, as autoridades angolanas, a começar pela maneira pouco ortodoxa como as matérias do processo pulavam olimpicamente do campo do segredo de justiça para a praça pública. Parecia existir uma deliberada intenção de expor a classe política angolana por via de Manuel Vicente, humilhá-la, sustentando em terreno do judiciário o que há anos se transformara em moda nos palcos da imprensa: olhar para Angola como um caso endémico e generalizado de cleptomaníacos que um dia se fizeram ao poder.

Em janeiro de 2018, com pouco mais de três meses no cargo, o Presidente João Lourenço dispôs de uma excelente oportunidade para tornar públicas as suas posições em relação ao tratamento que Manuel Vicente e Angola andavam a merecer no âmbito do processo a decorrer em Portugal. Foi na primeira entrevista coletiva realizada nos jardins do Palácio Presidencial, em Luanda, quando os jornalistas levantaram o tema. José Levy, da RTP, questionava o acordo vigente no âmbito da Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa (CPLP) ao abrigo do qual se poderia ponderar a transferência do processo Manuel Vicente para Angola, mas que em Lisboa parecia não colher qualquer simpatia. "Dizia, e bem, que existe um acordo judiciário no quadro da CPLP que permite que este e outros processos a decorrer em Portugal possam ser transferidos para a jurisdição de Angola. Esse procedimento foi feito por Angola, mas Portugal, lamentavelmente, não satisfez o nosso pedido, alegando que não confia na justiça angolana. Consideramos isso uma ofensa, não aceitamos esse tipo de tratamento e, por esta razão, essa é a nossa posição. Vamos aguardar pacientemente o desfecho deste caso em Portugal. Não temos pressa. (...). Temos paciência suficiente para aguardar", comentava, a propósito, o chefe de Estado angolano.

 

Nessa mesma ocasião, o Presidente João Lourenço transmitia publicamente a garantia que se revelava ultracara ao poder judicial luso, considerado por uma grande franja de angolanos indignados como um feudo irredutível com pouca compreensão do que efetivamente estava em jogo. Afirmava o estadista: "Não queremos e nem estamos a pedir que ele seja absolvido. Não estamos a pedir que o processo seja arquivado. Não somos juízes. Não temos competência para dizer se o engenheiro Manuel Vicente cometeu ou não cometeu o crime. Isso que fique bem claro! A intenção não é livrar o engenheiro Manuel Vicente, a intenção é que o processo siga os seus trâmites - que pode chegar até à fase de julgamento, e pode chegar - mas que isso seja feito aqui pela justiça angolana e aqui em Angola".

 

Foi depois desta declaração de uma limpidez absoluta feita pelo Presidente João Lourenço que muito do lirismo que povoava os corredores da política em Portugal começou a minguar. Entendeu-se, finalmente, que era caminho perigoso o que andava a ser trilhado induzidos pelo caso MV, como também a ele se referia, amiúde, a imprensa.

 

Mantenho fresca uma empolgada conversa no escritório de um amigo à Baixa pombalina em pleno apogeu do braço-de-ferro entre Lisboa e Luanda, em que dois convictos defensores de relações normais entre Portugal e Angola criticávamos, de modo áspero, o conjunto de passos descuidados que ameaçava o futuro da cooperação entre duas nações ligadas por laços tão privilegiados entre eles, a língua comum. Era eu de um lado - muito mais na condição de homem com interesse profundo nas Letras e nas Artes do que a exercer o papel de secretário de Imprensa do Presidente de Angola (para o qual, de resto, não tinha qualquer mandato específico nesse encontro informal) - e, do outro, Jorge Coelho, uma das figuras portuguesas com notoriedade pública mais merecedoras da minha admiração e respeito, pelos anos de vida conhecida de coerência e sobriedade. Ter assumido a responsabilidade política na tragédia de Entre-os-Rios, em março de 2001, demitindo-se do cargo de ministro do Equipamento Social foi, para mim, o gesto fundador de um percurso de densa dignidade que se manteve incólume o tempo todo, com a aresta mais visível, o equilíbrio e a sensatez dos seus pronunciamentos no programa televisivo em que é comentador residente, Quadratura do Círculo.

 

Tínhamos ficado horas a exprimir o que nos ia na alma, na verdade tristes e desiludidos com a maneira leviana como um património tão valioso quanto sensível acumulado por séculos de uma relação entre povos andava a ser alvo de devassa e era aniquilado aos poucos. "Essa gente terá noção do que realmente liga os angolanos aos portugueses e vice-versa?", perguntou-me Jorge Coelho, antes de querer saber de mim, atendendo à minha sensibilidade de homem da escrita e amigo de intelectuais portugueses, se não achava que a reaproximação entre Angola e Portugal deveria ser deixada à responsabilidade de pessoas fora da política, talvez homens das Artes, da Cultura, das Letras, do Cinema...? Achei interessante a abordagem mas tinha a convicção plena de que nunca conseguiríamos, em pouco tempo de conversa e não detendo nós os segredos - existirão? - da alquimia da Diplomacia do século XXI, chegar ao ansiado grito eureka!

 

Seja como for, aquela manhã da nossa preenchida conversa, de olhar para o castelo de São Jorge e para milhares de turistas que cruzavam indiferentes os roteiros da Praça do Rossio, abriu um caminho que continuamos os dois a fazer, com inefável prazer, o de debater o que a todo o tempo pode vir a ser aperfeiçoado nas relações entre Angola e Portugal.

 

Percebeu-se, ao longo da marcha, que o caso Manuel Vicente tinha sido uma enrascada monumental criada pelo setor da Justiça para os homens da Política desembrulharem, pese todo o discurso e folclore à volta da consabida separação de poderes. É evidente que Angola não cairia no logro de se limitar a lamentar a impotência dos poderes de Belém e São Bento face à aparente intransigência dos homens da investigação e dos tribunais, de maneira que as ações que de forma pública ou discreta entendesse desenvolver na tentativa de ajudar a vencer o impasse teriam sempre como destinatário o poder político. António Costa, o primeiro-ministro português, foi a um mesmo tempo interlocutor, vítima e ator de primeiríssima linha, com dois momentos cruciais - encontros com o presidente João Lourenço - o primeiro em Abidjan, na Cimeira África-União Europeia nos finais de 2017 e, o segundo, no começo de 2018 na estância nevada de Davos, no Fórum Económico. Bateu-se estoicamente para remover o "irritante" nas relações do seu país com a antiga colónia, Angola, nação independente há mais de quarenta anos mas que muitos, pelas margens do Tejo e não só, continuam sem poder "enxergar".

 

Embora Luanda nunca tenha assumido publicamente uma relação causa-efeito no que pareceu ter sido o primeiro amuo depois de ter desencadeado caso Manuel Vicente, certo é que uma visita a Angola da ministra da Justiça portuguesa, Francisca van Dunem, agendada para a última semana de fevereiro de 2017, acabou adiada sine die e a aguardar um "reagendamento" que nunca se efetivou. Terá começado ali, ainda com José Eduardo dos Santos no Palácio da Cidade Alta, o caminho que depois João Lourenço consolidaria, o de não permitir visitas de dirigentes de topo entre Luanda e Lisboa enquanto as nuvens negras que poluíam o eixo não se desvanecessem. O poder político angolano insistia, com firmeza, no respeito do acordo judicial livremente assumido por todos no contexto da CPLP, o tal instrumento que permitia que a parte concernente a Manuel Vicente na Operação Fizz pudesse ser transferida para Angola e, nesse país, a justiça local desse continuidade ao caso.

 

Mas uma coisa é a suspensão de visitas oficiais e outra completamente diferente foi sempre a ação discreta da diplomacia, os movimentos que fora dos holofotes da imprensa procuram refazer o que nalgum momento se danificou. É de justiça e de todo relevante que, no rescaldo do mau momento porque passaram as relações bilaterais entre Angola e Portugal nos últimos dois anos, se assinale que Luanda nunca adotou qualquer política de portas fechadas ao diálogo. Abundam os factos que provam que as autoridades angolanas e, muito particularmente, o Presidente João Lourenço estavam na melhor disposição de tratar com as entidades governamentais lusas tudo o que fosse possível ao seu nível. Para memória futura ficou, por exemplo, uma viagem a título individual feita a Lisboa pela primeira-dama da República, Ana Dias Lourenço, no decurso da qual aceitou, de bom grado, um convite para um pequeno-almoço com o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa no Palácio de Belém, numa altura em que o ambiente era de cortar à faca devido ao caso MV.

 

As próprias reuniões do Presidente Lourenço com o primeiro-ministro António Costa, quer na Côte d´Ivoire quer na Suíça, tiveram sempre um ambiente de notável cordialidade a envolvê-las, com sorrisos e cumprimentos afetuosos que não pareciam ser, aos olhos comuns, hábeis gestos ensaiados dos bastidores da diplomacia. A imagem que sobressaiu sempre desses momentos é a de um político - António Costa - mais na condição de vítima de uma embrulhada do que de seu causador.

 

Guardo particular memória dos desenvolvimentos finais do processo que levou ao degelo nas relações bilaterais, digamos a porta derradeira que se abriu até António Costa tomar o avião rumo à capital angolana em setembro de 2018. Uma quinta-feira à tarde - 10 de maio de 2018 -, trabalhava com o diretor de gabinete do Presidente numa sala no rés-do-chão do Palácio, em matérias ligadas à presença para breve em Angola do então ministro da Defesa de Portugal, José Azeredo Lopes, quando fomos surpreendidos com uma informação de última hora a passar em rodapé numa estação de TV a emitir a partir de Lisboa: Tribunal da Relação de Lisboa decide enviar para Angola processo do ex-vice-presidente Manuel Vicente. Interrompemos imediatamente a nossa atividade, viramo-nos para o aparelho de TV preso a uma parede larga que delimita com o corredor, depois de uma ordem urgente de Edeltrudes Costa: "Nazaré, aumenta o volume da televisão, rápido por favor!"

 

O Presidente foi alertado pouco depois sobre este dado novo do conturbado dossiê e não transmitiu, no imediato, qualquer orientação específica aos seus colaboradores mais próximos. Prosseguimos todos a nossa jornada, cuidando de inúmeros outros assuntos que constituem a rotina do Palácio e, ao início da noite, dispersámo-nos. Fui para casa, a dez minutos da Cidade Alta, preparado para saber mais acerca da reviravolta ao longo dos serviços informativos da noite, os emitidos em Portugal e os produzidos nas plataformas domésticas, rádios e estações de TV em Luanda.

 

Regressámos ao Palácio na manhã seguinte, cedo como sempre, e pouco tempo depois de ligar o computador para ler os e-mails e passar um olhar pelos principais jornais online, recebi de uma das assistentes em serviço no gabinete do Chefe do Estado, Aurélia Viegas, uma chamada telefónica pelo "interno" para me dirigir rapidamente à sala do Presidente. Peguei na esferográfica e na agenda de notas como acontece sempre que devo trabalhar na sala do chefe do Estado, por razões óbvias. No rés-do-chão e tomando a mesma direção, ou seja, chamado também para a mesma tarefa (que ainda não sabíamos qual era, em concreto), cruzei-me com o secretário para os Assuntos Diplomáticos e de Cooperação Internacional, Victor Lima, e subi com ele o lance de escadas que conduz ao gabinete do presidente.

 

Aguardámos durante alguns segundos no espaço reservado a esse fim até que uma das secretárias do chefe do Estado, a Paula Mainsel ou a Austelina de Carvalho (eclipsou a memória no turbilhão dos mil assuntos de cada dia no Palácio...), chegou-se a nós para avisar que o Presidente aguardava. Dirigimo-nos à sala e logo depois dos cumprimentos da praxe, já sentados, o Presidente João Lourenço foi direto ao assunto: "Ponham-me a falar com o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa."

- Agora, senhor Presidente? - perguntou, em tom de espanto, o embaixador Victor Lima.

- Sim, sim, agora! - reafirmou o Presidente.


Do seu telemóvel, Victor Lima fez as ligações concernentes até obter o número do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Passaram curtos minutos, o tempo suficiente para o Chefe do Estado português ser informado pelos serviços do seu gabinete de que o seu homólogo angolano desejava falar-lhe, e o contacto estabeleceu-se. O Presidente João Lourenço retirou-se para uma sala contígua para conversar com Marcelo Rebelo de Sousa e, transcorridos aproximadamente cinco a sete minutos, regressou ao ponto onde permanecêramos os dois secretários. Transmitiu-me o que entendia ser relevante fazer chegar à imprensa como resenha da sua conversa com o Chefe do Estado luso e abandonámos o gabinete do Presidente João Lourenço.


Com o "irritante" de fora, ou seja, ultrapassado o impasse na justiça em torno da figura de Manuel Domingos Vicente, ex-vice- presidente da República de Angola, a viagem a Luanda do primeiro-ministro António Costa levou pouco tempo a ser anunciada: chegada a 17 de setembro e encontro com o Presidente João Lourenço, no Palácio da Cidade Alta, no dia seguinte, terça-feira 18.

 

No Palácio, em Luanda, a nível do comité que se ocupa dos preparativos deste tipo de missões de Estado, a visita do primeiro-ministro luso foi organizada em dois tempos. Era como se o estivesse desde sempre, ao estilo de uma ementa prática ou de um prato pré-elaborado que se reaquece à velocidade do micro-ondas caseiro.

 

Em poucos dias, na verdade, estavam preparados e prontos para assinatura vários acordos de cooperação nos mais diversos domínios - onze no total -, instrumentos jurídicos que conferiram peso e substância a uma visita que teve o condão de rapidamente fazer esquecer a tormenta que havia sacudido a nau do entendimento entre as duas nações. Foi de tal ordem o à-vontade no reatamento da normalidade das relações que o primeiro-ministro António Costa desembarcou em Luanda de calças de ganga e mocassins, certo de que o dia da chegada era apenas um feriado dedicado a Agostinho Neto e sem, por isso, compromissos de agenda que exigissem rigores de protocolo. Porém, algum detalhe terá falhado na correnteza de elos que unem os muitos pontos de um programa oficial de visita ao nível que se tratava, porque ao contrário do que imaginou antes de a aeronave da TAP se fazer à pista do Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro, António Costa encontrou em terra tudo menos informalidade: a recebê-lo, estava o ministro angolano das Relações Exteriores, Manuel Augusto, de fato e gravata, e uma composição militar no maior dos aprumos e afinação.

 

Curiosa foi a interpretação que de um e de outro lado da fronteira se fez do episódio: a imprensa angolana ignorou olimpicamente a história dos jeans e do blazer do primeiro-ministro reduzindo-a à condição de não assunto; em Portugal, os jornais, as rádios e as televisões elevaram o facto a assunto de primeira prioridade, fazendo emergir, em vários círculos, velhos fantasmas ligados à cobertura noticiosa do tema Angola.

 

Por fortuna, o dia da visita propriamente dita - terça-feira, 18 de setembro - foi de uma riqueza de acontecimentos e sensações que os desalinhos da véspera se transformaram, de maneira rápida, numa pálida e obscura lembrança em que mais ninguém ousou investir na procura por vezes paranoica de audiências e casos.

 

Com todos os salamaleques do protocolo em dia, António Costa fez-se ao Palácio da Cidade Alta por volta das onze horas. Recebido à descida da viatura pelo Presidente João Lourenço, percorreu a seguir os poucos metros de calçada até ao palanque de onde as entidades que visitam a sede do poder político em Angola escutam o hino nacional do respetivo país mais o do país hóspede. Terminado esse momento, vieram as honras militares com a passagem em revista às tropas em parada, a fotografia oficial logo depois e, por último, a apresentação das respetivas delegações oficiais, após o que foi conduzido ao interior do Palácio, no primeiro andar, onde o polivalente Salão Nobre tinha sido transformado em espaço ideal para abertura formal das conversações bilaterais.

 

"Em representação do povo angolano e do executivo que encabeço, recebo Vossa Excelência de coração aberto. (...) As relações entre Angola e Portugal são históricas, seculares e com uma profunda carga afetiva, de amizade e solidariedade entre os seus povos (...)", foram as palavras de boas-vindas de João Lourenço ao primeiro-ministro de Portugal, pronunciadas perante os membros das delegações de que os estadistas se faziam acompanhar e de um numeroso grupo de jornalistas.

 

António Costa chegara, na verdade, muito animado à Cidade Alta, absolutamente convencido de que, se dias tempestuosos foram vividos na relação bilateral entre Angola e Portugal - como se viveram, de facto! -, a fonte primária desse mau clima nunca foi o Palácio em Luanda nem, muito menos, o seu inquilino, João Lourenço. Horas antes, em palavras aos jornalistas já na capital angolana, tinha deixado isso muito claro: "Aguardo esse encontro com uma grande expectativa. Conheci João Lourenço antes de ele ser Presidente da República de Angola, ainda na qualidade de candidato. Neste ano em que assumiu a Presidência da República de Angola, tive a oportunidade de estar três vezes com ele [Abidjan, Davos e ilha do Sal]. Ao longo deste ano, penso que construímos uma relação de grande confiança."

 

Somado a esse notório clima de cordialidade estava a certeza - pelo menos na avaliação do primeiro-ministro socialista - de que não existia mais a pedra no sapato criada pelos salpicos da Operação Fizz. "Completamente ultrapassado", diria António Costa aos repórteres, num passeio descontraído pela baía de Luanda, na companhia do ministro angolano das Relações Exteriores, Manuel Augusto. "Havia um pequeno "irritante" que estava a complicar a vida e o nível de relacionamento e esse "irritante" era "irritante" para ambos os países na mesma proporção", observou. Bem-disposto, até se permitiu arrancar uma sentença moral do "irritante", citando uma tese do cicerone Manuel Domingos Augusto: "Disse-me que há males que vêm por bem e que as dificuldades por que passámos neste ano ajudaram muito a reforçar a confiança mútua. Agora que o "irritante" desapareceu, penso que Portugal e Angola têm todas as condições para que a cooperação avance de uma forma que corresponda à responsabilidade que a nossa geração tem de se centrar no futuro."

No interior do Palácio, o discurso que proferiu como resposta à intervenção inicial do Presidente da República de Angola, António Costa erigiu como questão central a compreensão - que por vezes parece faltar em alguns círculos em Portugal, valerá dizer - de que as relações, as parcerias, o diálogo, entre Angola e Portugal terá sempre de ser "entre iguais". Vincou a reciprocidade e a igualdade de tratamento numa relação entre dois Estados soberanos, cujas sociedades estão "unidas" por "laços históricos e afetivos".

Sem nunca lançar farpas na direção dos que parecem não ter noção do que verdadeiramente está em jogo na relação entre Portugal e Angola, o primeiro-ministro lembrou que mais de mil empresas portuguesas de capitais mistos operam em Angola e que mais de cinco mil firmas nacionais exportam para o mercado angolano, um dos dez maiores destinos de produtos portugueses.


Na mesma senda, António Costa abordou o conceito de "válvula de segurança" que interliga os dois países, dizendo que os portugueses procuram Angola em situações de crise no seu país, assim como os angolanos contam com Portugal nas suas conjunturas de dificuldade. "Agradeço a forma como Angola tem acolhido os nacionais e as empresas portuguesas. Nos anos de crise profunda, quando os portugueses precisaram de uma terra para encontrar trabalho, ou puderem investir, encontraram em Angola esse destino. Também quando Angola enfrentou dificuldades as empresas portuguesas não saíram, resistiram e escolheram continuar em Angola os seus projetos", referiu.

 

Do lado de Angola, o Presidente João Lourenço aproveitou a presença em Luanda do líder do governo luso para sublinhar que, para os objetivos pretendidos de uma relação proveitosa entre os nossos dois países, é fundamental que "prevaleçam sempre o bom senso, o pragmatismo e sentido de Estado". É essa postura que assegurará que as relações bilaterais "se robusteçam continuamente e possam fazer face e vencer as visões pessimistas que de quando em quando procuram afirmar-se".

 

"Há entre Angola e Portugal uma relação entre dois Estados independentes e soberanos que se respeitam e cujos governos têm a responsabilidade de traçar políticas que garantam uma cooperação sólida em variados domínios e o estreitamento dos laços de amizade e de cooperação económica", sublinhou.


A festiva retomada da boa onda nas relações entre Angola e Portugal ficaria marcada também pelo grande número de instrumentos jurídicos assinados, onze no total, entre acordos, memorandos, aditamentos, programas, protocolos, adendas e convenções. Na imprensa fizeram furor o Programa Estratégico de Cooperação 2018-2022 e a Convenção para Eliminar a Dupla Tributação em Matéria de Impostos sobre o Rendimento e Prevenir a Fraude e a Evasão Fiscal, que deram, indiscutivelmente, "solidez e substância" à visita de António Costa, como o previra, na sua alocução a abrir as negociações, o Presidente João Lourenço.

 

Na sequência da missão de António Costa, ocorreu a extensão em mais quinhentos milhões de euros da linha de crédito COSEC de Portugal para Angola. Mas o capítulo informal, ou, se se preferir, lúdico, da agenda do primeiro-ministro em Luanda foi igualmente uma nota saliente das 48 horas passadas na cidade da Kianda. O fascínio de se caminhar à beira-mar na baía de Luanda é algo a que se rendeu o político português, tal como o fizera Marcelo Rebelo de Sousa em setembro de 2017, na viagem para testemunhar o ato de investidura do Presidente João Lourenço e, num passado mais afastado, José Sócrates, enquanto primeiro-ministro luso. No Twitter, a nota de satisfação resume o tom do reencontro: "Agradável passeio pela renovada baía de Luanda na companhia do amigo e ministro das Relações Exteriores de Angola. É um prazer regressar a Luanda. Caminhamos juntos para um futuro de progresso e amizade entre os dois povos"

 

Na segunda-feira da descontraída caminhada por um dos mais icónicos recantos da geografia luandense, véspera da ida à Cidade Alta para o encontro com o Presidente João Lourenço, António Costa reservou a noite para mais horas de espairecimento, afastando-se do frenesi por vezes esmagador do hotel que escolhera a sua comitiva para se hospedar, o central Epic Sana, localizado a curta distância do largo da Mutamba, da Marginal de Luanda e do Palácio Presidencial. Tomou o caminho da Ilha de Luanda.

 

Em companhia dos amigos António Quaresma e Jorge Coelho, chegados expressamente de Lisboa para o Fórum Económico Empresarial Angola-Portugal, que se achou por bem organizar no âmbito da visita de António Costa, larguei na mesma noite a quietude do meu quintal, onde, por aqueles dias, me desdobrava pelos retoques finais do livro dedicado ao primeiro ano de governação do Presidente Lourenço e os cuidados à volta das frágeis mudas da minha fruta de eleição, o maracujá gigante. Rumo: Ilha de Luanda.

 

Sem que nada o pudesse prever, tanto a caravana do primeiro-ministro português como o trio que formávamos, acabámos por confluir para um mesmo sítio, uma marisqueira que tem fama de ser um bom lugar para se perder na paixão do futebol enquanto vagas atlânticas enfurecidas rebentam sobre as pesadas rochas que se avistam ao longe. À mesa dos comensais há, quase sempre, deliciosas lagostas dos mares de Moçambique, caranguejo do Namibe e camarão de diferentes águas. No meu prato, invariavelmente, é peixe robalo o que se tem para derrotar, por me recusar, faz tempo, a outras escolhas.

 

Na noite deste relato, como já se sabe, tinha estendido sobre a loiça um exemplar do meu peixe-fetiche, que "marchava" serenamente com a ajuda de um fino da mais antiga das cervejas angolanas, a CUCA. Falávamos de política, em concreto das relações entre Angola e Portugal, como era pouco provável que não ocorresse. Divertia-me à grande com a experiência de um jovem com todos os sinais físicos de ter nascido em Katalambanza, Huambo ou Lumbala Nguimbo, sentado à nossa mesa, mas que afinal era tão português como qualquer dos cinco outros que nos acompanhavam ao jantar. Nascido em Viseu, o menino de tez morena e sotaque das Beiras!

 

Entrementes, juntou-se a nós .... quem? Nada mais nada menos do que António Costa, primeiro-ministro de Portugal, que ao cruzar na diagonal a sala para um qualquer expediente, reconheceu a figura de Jorge Coelho mesmo que de costas. Tive a honra de ser apresentado ao estadista luso e com ele aproveitei para conversar sobre quase tudo que merecesse a pena ser abordado, como a experiência memorável daquela noite em Davos quando teve de aguardar horas a fio pelo Presidente João Lourenço, numa cidade com a mobilidade sequestrada pelas montanhas de neve e um frio de afugentar pinguins.


- Este processo de normalização das relações entre Angola e Portugal foi realmente trabalhoso! - comentei, como quem descobre a pólvora com mil anos de atraso. Na verdade, pretendia apenas homenagear António Costa pelo seu estoicismo.

- A quem o diz, amigo, a quem o diz!...