Luanda - Nunca tivemos formalmente uma monarquia constitucional, mas a nossa dependência de um “Rei”, que brilhava sem sombras, e de uma “Corte”, que imperava com plenos direitos, era tão atávica que, de tão subserviente e doentia, lá dentro, todos se vergavam aos seus pés e ninguém dizia nada…

Fonte: NJ

A censura não estava oficialmente instituída mas a Televisão Pública parecia ter os olhos vendados, a Rádio Nacional os microfones selados e o “Jornal de Angola” estava proibido de veicular certas “veleidades” informativas.

 

Robotizados, os jornalistas, vestidos alegremente com o sobretudo da autocensura, exaltavam, de cócoras, a indigência, mas, lá dentro, ninguém dizia nada…

 

A propaganda não era publicamente assumida como “farol” do sistema de comunicação social, mas era tão intensa, e ao mesmo tempo tão perversa, que, a dada altura, os seus promotores, ao convencerem-se de que a verdade era mentira, se transformaram em criminosos. No final da boda, algumas vozes surdas fingiam protestar contra a profusão de tão indigesta manipulação, mas, lá dentro, ninguém dizia nada…

 

Amante de desportos motorizados, o “Rei”, para utilizar uma bela imagem do meu amigo Celso Filipe do “Jornal de Negócios”, aos olhos de uma multidão embriagada e eufórica, apresentava-se como um exímio condutor.

 

Acontece que os pneus da carcaça estavam há muito carecas, enganava-se cada vez mais a meter mudanças e, nos últimos tempos, já não respeitava as placas de sinalização. Mas, lá dentro, todos assistiam, triunfantes, à deriva e ninguém dizia nada…

 

E ninguém disse nada porque, afinal, dominada por uma consciência colectiva sonâmbula, a manada sucumbia a uma abastança tão traiçoeira que, ao atingir a soberba, levou a irracionalidade a tomar conta do curral…

 

Tão sonâmbula que a loucura financeira, no inicio do novo século, aterrou triunfalmente no Kwanza –Sul com a importação para a Aldeia Nova de velhos “kibutz”, que destaparam uma cratera israelita de mais de 150 milhões de dólares…

 

O dramaturgo alemão Bertolt Brecht, com décadas de antecedência, bem alertara que os pagantes da factura acabariam por ser os “miseráveis”, mas, como os animadores da festança não eram “miseráveis”, ninguém disse nada…

 

O festival estender-se-ia a Malange com uma nova “combustão financeira” amparadas por duas garantias soberanas que alimentaram bolsos de angolanos e de brasileiros com a chegada desse outro horroroso escândalo do regime que foi o ruinoso negócio da Biocom, mas, como o dinheiro desperdiçado sairia do bolso dos “desempregados” e os promotores da fandanga “não eram desempregados”, ninguém disse nada…

 

Incontroláveis e insaciáveis, um dia, os donos da “corte”, fazendo orelhas moucas as especialistas indígenas em matéria de aviação civil, acordaram com um mega-aeroporto na pança, que, em doze anos, consumiu mais recursos financeiros do que todos os aeroportos, aeródromos e portos contruídos em Angola antes e depois da Independência…

 

O encenador alemão há mais de 80 anos também havia antevisto que aquele “elefante branco” não haveria de levantar voo e que o derrame de recursos entulhados no Bom Jesus estava destinado para ser suportado pelos “bobos da corte”. Mas, como os promotores do festim não eram nada “bobos”, ninguém disse nada…

 

O bando não se importaria ainda em drenar centenas de milhões de dólares para distribuir “o ópio pelo povo” com a construção de estádios de futebol para o CAN, que haveriam de se converter em esqueletos no armário do despesismo nacional.

 

Brecht previra o faraónico descalabro daquelas obras, mas, como o futebol servia na perfeição para anestesiar “os operários” e os prejuízos dessa loucura estavam contabilizados para penalizarem apenas os “operários”, ninguém disse nada…

 

Depois veio uma Constituição autodenominada de “atípica” e toda a gente, a começar pelo alfaiate, reparou que as mangas do fato eram mais compridas do que os braços, em vez de sugerirem um modelo menos concentracionista, preferiram apostar na teimosia e mandá-lo ajustar ao corpo do “soberano” até servir de maca para hoje o acolher em estado moribundo…

 

Brecht riu-se com o espectáculo e, ao avisar que o feitiço pode sempre virar-se contra o feiticeiro, alertava para o perigo do excesso do poder gerar insanidade mental, mas, como toda a gente só se preocupava em agradar ao antigo proprietário do trono, ninguém quis reconhecer como são “violentas as margens que comprimem o rio”…

 

Sonambulizados com o crescimento do nosso prostíbulo financeiro, mas com medo de dar um murro na mesa perante o avanço da catástrofe, a manada idolatrava a nepótica entronização dos “herdeiros da corte” que se besuntavam de petróleo, soberanos fundos e bonecos animados e ninguém disse nada.

 

Fabricaram e montaram em várias tendas judiciais um “golpe de estado” e, com isso, enviaram para os calabouços 15+2 autoconvencidos de que a segurança do Estado, ameaçada de alto a baixo, poderia a qualquer momento ser raptada por inofensivos consumidores de leituras perversas.

 

Foram aconselhados a arrepiar caminho mas a imbecilidade política fê-los ignorar, mais uma vez, aquele poeta germânico do século XX e, por isso, a sua maior obsessão acabaria por se consumar ao tentarem transformar Angola num “miserável país que precisa de heróis” e, mais uma vez, ninguém disse nada…

 

Agora, a maldição parece estar de volta. Os condimentos até são outros, mas as mudanças operadas na liderança dalguns governos provinciais podem levar-nos a acreditar que estamos condenados a repetir os mesmos erros de costume.

 

Com a chegada de novas caras, o olhar crítico sobre o seu percurso não pode ser confundido com a ideia da perseguição política. Porquê? Porque não se pode governar permanentemente com a incerteza e a dúvida. Porque ninguém está disposto a perder tempo com a incompetência e a mediocridade.

 

Incompetência e mediocridade que, na Huíla, deram lugar a uma deriva governativa absolutamente insustentável. Depois da palhaçada do antigo “soba” do Lubango que “andou aos papéis” diante do Presidente, só lhe restava ser corrido e bem corrido de uma poltrona à qual, “sem saber ler, nem escrever”, nem ele próprio sabe como lá foi parar…

Seguiu-se-lhe um empresário que até pode estar a higienizar a cidade. Nada de extraordinário. Pior do que estava era impossível.

 

Mas, sendo esse empresário o maior vendedor e prestador de serviços ao estado na província, não vale a pena tentar transpor para aqui o caso de Trump, uma vez que nos Estados Unidos os instrumentos de contrapoder não se leiloam.

 

Ora, não havendo por aqui, como há naquele país, freios e mecanismos de controlo e uso indevido dos recursos públicos, a colocação ali de mais uma “raposa dentro do galinheiro” num processo eivado de um aberto conflito de interesses, antevê a abertura de espaço para um travo muito promíscuo…

 

O que se passou, por outro lado, no Kwanza-Sul foi surreal e só poderia ter tido o (tardio) desfecho trágico que teve. E, ao tentar lavar as mãos como Pilatos, para se apartar da mistura de negócios do Estado com negócios da família, o Eusébio de lá marcou o maior autogolo da sua carreira.

 

Abandonou o campo de jogo apupado por uma população que já não o suportava. A manifestação de júbilo dos habitantes do Sumbe pela sua exoneração é, para o MPLA, um sério aviso à navegação autárquica.

 

Pena é que o cavalheiro que lhe sucedeu tenha uma folha de serviços pinchada com provas muito sofríveis. Coitada da população do Kwanza-Sul, que não merecia tamanho castigo.

 

Motivo mais do que suficiente para nos lembrarmos do que nos legou Eça de Queirós: “As coisas em segunda mão ficam-nos curtas nas mangas”…

 

E, se rebobinarmos o carnavalesco espectáculo recentemente proporcionado pelo governador do Moxico, sob o delirante descompasso de policias e militares, facilmente detectaremos os efeitos anabolizantes gerados pela promoção de produtos (mal) reciclados…

 

Mas, se antevimos e criticamos o desfecho desastroso que acabaria por ter a indicação, para Presidente do Fundo Soberano, de um “gestor” imaturo em tudo, menos numa malandrice financeira de contornos criminosos, também não podemos continuar a fazer da capital do país um laboratório de experiências juvenis.

 

A dúvida e a incerteza estão aqui instaladas. Rascova é um fruto demasiado verde e Luanda um “matadouro” de excelência. Em todos estes casos, o Presidente até pode ter os seus trunfos mas os anticorpos que alguns dos novos governantes transportam não prenunciam nem uma governação eficaz nem uma convivência saudável com os governados.

 

E o Presidente não se pode esquecer que só controla o regime olhando para dentro e não negligenciando o apoio daqueles que, no interior, representam o interesse colectivo e não apenas o interesse partidário.

 

Ler com atenção Eça de Queirós faria bem aos nossos políticos. E, pelo meio, que não se esqueçam também de Bertolt Brecht…