Luanda - Ndaka Yo Wiñi é o músico angolano que consta no cartaz da 20ª edição da mais conceituada montra da música em solo africano: o Cape Town International Jazz Festival, na África do Sul. Nesta edição “Gold”, comemorativa há duas décadas de existência, junta-se a monstros que são seus ídolos, como é o caso de Richard Bona, com quem, a dar os primeiros passos, o sonho de partilhar o palco parecia uma ilusão. 

Fonte: JA
Mais breve do que alguma vez calculou, Ndaka faz parte desta constelação que, hoje e dias 29 e 30 toma as atenções deste que é considerado o quarto maior festival de jazz do mundo.

Confortável no seu Umbundu, que nos “toca a todos, mesmo os que não conhecem a língua em que canta”, como avisara Ismael Mateus, na apresentação do esperado álbum de estreia “Olukwembo”, é cultor das fusões rítmicas do Centro-Sul de Angola, tchianda e kilapanga, ao jazz e blues das paradas mundiais. Destemido, abraçou uma evolução constante e se vai aprimorando, tanto na performance vocal, quanto em palco. Nesta entrevista, mais do que apalpar este presente imediato, alonga-se palmilhando a estrada que o conduz ao futuro.

Quanto tempo de vida musical activa, Ndaka?
Para ser sincero, caso nos agarraremos ao conceito profissional, são 8 anos de vida musical pública. Conto desde o momento em que me instalei cá em Luanda, decidido a correr atrás das minhas aspirações. Começo a labutar muito mais à busca da identidade e conhecimento por via da música. Porém, é bem verdade que eu já fazia música espiritualmente, porque sempre acreditei que a música não é somente uma questão genética, mas também uma assunção missionária. Penso mesmo que há uma espécie de chamado, enquanto seres vibrantes.

Parece que foram oito anos “mágicos”…
Sim (risos!). Mas às vezes sinto uma dor, ao olhar para trás e perceber as coisas que eu abdiquei para me dedicar completamente à arte. Eu poderia ter sido um docente universitário, um engenheiro a trabalhar ou algo assim. Ou seja, o adjectivado “homem bem sucedido”. E a dor é precisamente por as pessoas tenderem a julgar o tipo de profissão que escolhi, infelizmente. Mas a arte é, para mim, um meio de construção do homem e propicia principalmente o seu renascimento. Foi muito difícil. Desde o momento em que cheguei cá em Luanda, vou-me firmando na senda musical com ânsia de pesquisa, numa luta indubitável pela busca dos nossos valores, resgatar a oratura e inseri-la na arte que produzo.

Mas, como produto do seu tempo, teve antes inclinação pelo hip-hop. Acha que foram simples fases transitórias?
Exacto! Na verdade, caso fosse buscar os anos de envolvimento com a música, acho que o cálculo daria outro número, o que não acho sério. Pelo que sei da arte, acho um bocado fictício. O músico deve calcular desde que se veja profissional e não de intermitentes negociatas ou ingénuas presenças. Envolvi-me com o hip-hop na febre do Tupac Shakur, isto na segunda metade da década de 90.

Já a morar em Cabinda?
À época já morava em Cabinda, para onde a guerra me empurrou. Cheguei a estar vinculado à Direcção Provincial da Cultura daquela província, onde eu tocava o “ngodji”. Voluntariamente, fui lá pedir um espaço onde pudesse praticar a minha arte. Lembro que quem me recebeu foi o actual pianista da Banda Chamavo, Alex. Mas, depois, a banda veio para Luanda e eu fiquei por lá. Confesso que me senti regionalizado.

Como sobreviveu ao “abandono”?
Paralelamente à música, na altura trabalhava como auxiliar de pedreira e simultaneamente frequentava uma formação de Pedagogia, com especialistas que vinham do Brasil e Portugal. Depois, comecei a ministrar, no bairro, aulas de Gestão Optimizada e Informática. E foi no bairro onde também convidava as pessoas a estudarem mais sobre África, tanto que cheguei a arrendar um aviário abandonado e o baptizei com o nome de “Afrika Bambaataa”.

Porém, não optou pela carreira como rapper e foi parar noutros sectores, como a banca e os petróleos?
Antes, estive a trabalhar numa aduaneira de um cidadão português. Em Cabinda, como é uma terra de petróleo, todo o mundo se via na obrigação de aprender inglês, na esperança de ser chamado a trabalhar a qualquer momento. Foi assim que tive a sorte de ser chamado por uma petrolífera para testes. Aprovei e, consequentemente, fui contemplado com uma bolsa de estudo para Bangkok (Tailândia). Hesitei ao ir, porque eu gostaria mesmo de ser antropólogo. Mas a situação de carência financeira da minha família obrigava a aceitar o que a vida me estava a dar. Fiquei a trabalhar nesta área, até completar 30 anos de idade, período em que já não aguentava mais adiar-me.

O que aconteceu de tão radical com a segurança dos 30 anos de vida?
Reuni toda a minha força interior e decidi vir para Luanda. Abandonei tudo. Lutei contra as características das grandes metrópoles, que não facilitam a vida de quem vem das províncias. Para me adaptar melhor a Luanda, decidi morar periodicamente em vários pontos. Lembro-me que, primeiro, fui parar no Cazenga; depois passei por Luanda-Sul, Ex-Congoleses e Rocha Pinto, de onde caminhava a pé até chegar ao Espaço Bahia. Media a distância com o olhar (risos!). Foi nessa altura que recebo um telefone da banca, onde fiz os testes e passei. O “cinto” já estava a apertar e naquela altura não via outra hipótese que me pudesse garantir sustento. Mas sabia que era temporário e que tarde ou cedo voltaria a abandonar.

E o nome Ndaka Yo Wiñi surgiu antes ou depois das circunstâncias que o levaram a tomar a carreira musical?
Sempre disse aos meus pais que aos 30 anos seguiria somente o caminho do meu coração e isso implicava uma transformação consciente. Era Ndaka Ye Sunga (a voz da razão). Mas Ndaka é nome familiar, da parte do meu pai, que sofreu alteração no acto do registo e ficou Dokas. Como eu fazia hip-hop underground, sempre vi a razão do povo como minha causa. Mas ao mudar para um género mais erudito, resolvi ser “a voz do povo” (Ndaka Yo Wiñi). Foi suficiente.

Por defender apaixonadamente um estilo pouco consumido e apresentar-se muito à sua maneira, alguma vez foi mal interpretado?
Mal interpretado, julgado e maltratado (risos!), sobretudo no princípio. Já ouvi algumas pessoas a dizerem: “Meu Deus! Mas não viram mais outro cantor! Logo esse, com estas sandálias de borracha, com essas roupas e missangas. Parece um atrasado mental”. E já ouvi coisas dessas enquanto cantava. É muito grave e desmotivador. Mas, como tenho uma causa, acho que poucas coisas me desmotivam.

E agora que já é uma figura aceite em círculos exigentes (e até mesmo elitistas) da nossa sociedade, ainda continua a ser alvo destes "pejorativos"?
De certo modo, sim. Enquanto o nosso povo não agir com sabedoria e não houver um trabalho a nível institucional, sobre a realidade e busca de factos culturais reais, é óbvio que vai-se reproduzindo mais gente que vai olhar suspeitosamente para a matriz da angolanidade, como fonte de feitiços e maldades similares.

Isso está associado à sua cabaça, que defende como marca identitária?
Antes fosse só isso (risos!). Está associado a toda a minha performance. Ainda recentemente, fui a uma entrevista e alguém chamou "brinquedo". Foi muito triste! Porque os nossos utensílios tradicionais acabam por ser uma marca. Eu tomo a cabaça num gesto de invocação da sapiência africana, que não precisou de copo de vidro ou algo assim. Pessoalmente, ela tem um significado muito grande para mim. Eu comecei a usar a cabaça quando fui ao Huambo visitar a minha avó, que já estava nos últimos dias. Num dos dias encontrei algumas cabaças em casa e tomei a liberdade de pegar numa delas e beber o líquido que nela continha. Algumas pessoas pediram para que não bebesse naquilo, mas a minha avó, em tom de gozo, disse-me: “Então, não digas o que está aí dentro”. Foi assim que intuitivamente decidi levar aquela cabaça.

Só foi isso?
(risos!) Sim! Mas como precisava de criar a minha imagem e desenvolver uma metáfora pragmática que me representasse enquanto africano, tomei ela como meu utensílio. A tudo isto, vou aprendendo que é bom falar mal dos outros, mas a melhor forma de o fazer é contar verdadeiramente a nossa própria história. E quando eu me visto daquele jeito e uso a cabaça, sei que estou a contar a minha história.

O líquido que nela contém permanece num grande segredo…
(Muitos risos!) É verdade. E assim será, porque tenho de honrar os meus antepassados. É uma ordem.

“A visão sobre a música africana deve estar em constante mudança e os ouvidos devem adaptar-se a novos contextos”

É óbvia a percepção da convergência de influências que passa por Gabriel Tchiema a Lokua Kanza. Nunca quis fugir a isso?
Nunca. Lokua Kanza, Richard Bona, Gabriel Tchiema, Wyza, Filipe Mukenga e tantos outros desbravaram um terreno que vamos seguindo. Apesar de ter os meus projectos, estas pessoas acabaram por me influenciar. Eu me sinto honrado por ter surgido numa hora em que estes já tinham deixado marcas a serem desenvolvidas.

Parece que, aos poucos, surge sempre uma nova lufada de ar na nossa paisagem musical, a exemplo da violinista Maria-Gracia Latedjou e de outros nomes que despontam. É uma geração com algum privilégio?
Por um lado, é uma geração privilegiada, mas muito dificultada. Outrora, havia mais abertura, sobretudo, em termos de patrocínios e concertos internacionais. Era bom ouvir que um outro artista foi para Zâmbia, Camarões, Tanzânia ou Zimbabwe. É uma geração que tem estado a fazer tudo e tínhamos muitos festivais. Agora, o movimento quase que parou, até os espaços pequenos desapareceram, e isso sujeita os artistas a recuarem a espaços onde os garfos também servem de percussão.

A música contemporânea africana vai tendo novos públicos e espaços, embora ainda se recinta do dilema entre passado e futuro. Sente-se confortável nos rótulos?
Eu sempre vejo a música como um corpo funcional e quem ouve alcança as suas funções. Mas, em parte, temos que perceber que a adaptação ao contexto musical, nas suas mais variadas formas de manifestação, conta muito para amadurecer a diversidade. É preciso perceber que a visão sobre a música africana deve estar em constante mudança e os ouvidos devem adaptar-se a novos contextos. Nós somos criativos e apresentamo-nos como propostas. É preciso inovar e ousar uma vontade que não se compadeça com cercos.

Foi um pouco essa necessidade de compreensão que o levou a montar a meio do percurso uma banda a dedo?
Sim! E eu me considero o músico mais arriscado do mercado (risos!). Foi remando contra a maré que cheguei a montar a banda. Se virmos bem, eu comecei a fazer um estilo cuja base era o tradicional e precisava de produzi-la com uma linguagem que tivesse aceitação internacional. Mas, para isso acontecer, não tive que obedecer ao que já existia e precisava de propor o tradicional aqui, no asfalto. Logo, não é um simples acto, é um processo. Um músico já talhado ganha uma percentagem egocêntrica e corre o risco de seguir o comodismo da sua linha de conforto. Mas um músico decidido a criar ou reavivar sentimentos é óbvio que está ali para trabalhar. Eu tive de escolher a dedo meninos crus que tocavam nas igrejas ou em bairros como Mabor, Sambizanga, Golfe e outros, mas que não tinham nome no mercado. Optei por eles e fiz-lhes entender a minha proposta.

Preferiu correr o risco de passar dificuldades que o levariam ao descrédito?
Bem vistas as coisas, até agora ainda tenho dificuldades. Vezes há que, resultado de muita pesquisa, proponho algo à banda e esta responde que não se enquadra academicamente. Mas eu passo por cima, defendendo que se enquadra tradicionalmente, porque existe o seu género. Para mim, a vida é reflexa no contratempo e a música não fica de parte. E é nesse superar de fricções que acabamos por formar uma escola.

É a banda que vai consigo à África do Sul?
Sem sombra de dúvidas! Ainda no princípio, fui premonitório quando lhes dizia que teríamos de trabalhar para frequentar grandes festivais. Uns olhavam para mim como se fosse um louco. Mas, com o passar do tempo, as coisas começaram a fluir e hoje tenho-os como os melhores músicos que praticam a minha musicalidade. Já cometeram muitas falhas em palco e tolerei, porque sabia que precisava de uma equipa que me compreendesse. Fiz "vista grossa" a muitas críticas e hoje já me sinto vitorioso, estando com eles.

“Sofro algum preconceito, quando sou convidado a cantar em português ou inglês”

O público pode apegar-se a “Olukwembo” como padrão ou virão transformações muito mais diferenciadas?
Todos nós corremos esse risco. Mas defendo que os artistas devem ter um nome que traduza um projecto. Tudo começa pelo nome. Eu sou um projecto e como tal defendo-me. Para mim, o internacional é Catete ou Sumbe, é sempre depois da minha porta. O meu país é dentro da minha casa. E quando falo em projecto, falo dos meus ciclos de evolução. Este primeiro álbum satisfaz o ciclo de campo, onde rendo homenagem à minha mãe, com quem divido o registo que dá o título ao álbum. O segundo álbum vai ser florestal, renderei uma homenagem ao meu avô da parte paterna, um grande caçador. Só depois virá o ciclo montanhoso, onde avaliarei a minha maturidade musical, para depois viver mais dois ciclos: mar e universo.

É a sua meta para a satisfação?
Sim. Já tenho tudo desenhado e muitas composições vão surgindo. Exigirá de mim uma disciplina rigorosa, tanto que estou consciente da disposição em imaterializar a minha carreira. Sofro algum preconceito, quando sou convidado a cantar em português ou inglês, mas nego por perceber que as nossas línguas são a nossa alma. Eu não sou uma pessoa fácil de ser influenciada.

Mas foi no conforto do seu umbundu que conquistou o Brasil, num aclamado show em Niterói?
Até ao momento, foi o melhor concerto internacional da minha carreira. Acho que até agora eu respiro aquele público. Foi muito lindo! Agradeço por a Fundação Sindika Dokolo me ter incluído no alinhamento e apostado em mim naquele momento. O espectáculo aconteceu numa casa histórica e todo mundo presente cantou comigo.

Agora, dia 30, um sonho se realiza na África do Sul. Agitado ou sereno?
(Risos!) É um sonho de longa data. Primeiro, hoje faremos uma actuação livre e depois, na noite do dia 30, terei a minha actuação oficial nesta edição de ouro. Vem-me, naturalmente, um sentimento de surpresa. Achava que demoraria mais. Não é bem uma emoção, mas um pesado sentimento de responsabilidade. Evoluo e vou conhecendo pessoas e ritmos. Sempre foi o meu sonho estar junto desta gente. Espero que o público angolano esteja em massa, será confortante.

Perfil

Ndaka Yo Wiñi. Nascido Adriano Dokas, em 5 de Janeiro de 1981, no município do Lobito (Benguela).
Filho de dois músicos tradicionais, Ndaka provém de uma família de vasta ramificação, espalhada pelo Huambo, Uíge, Cabinda, Congo Democrático e Guiné-Bissau. Foi durante a sua vivência em Cabinda que este investigador cultural aproveitou a intimidade geográfica com o Congo e se deixou influenciar pelos ritmos deste país. Assistiu regulamente a concertos de artistas como General Defao e conheceu o movimento cultural de cidades como Libreville. Em Agosto do ano passado, estreou-se na discografia com “Olukwembo”, tendo, antes, em 2016, arrebatado o prémio de "Melhor Afrojazz" do Top Rádio Luanda.