Luanda - José Eduardo Agualusa está em Angola a convite do Goethe-Institut Angola em parceria com a Pés Descalços para participar de 'Histórias Kambutas' e outras actividades, e também para fazer a apresentação do seu livro 'Sociedade dos Sonhadores Involuntários'. Em entrevista ao Vanguarda falou da 'deslocalização do medo' da sociedade civil para o interior do partido do poder, de Savimbi e de como o país mudou.

Fonte: Vanguarda

Começamos pela actualidade e pelas suas declarações sobre Moçambique (“não é ajudar, é indemnizar pelos danos causados”).

Aquilo que eu disse, parece-me absolutamente consensual, não entendo a polémica e não tenho nenhuma explicação, a não ser que a estupidez é muito popular no mundo. Moçambique foi atropelado por um desastre no qual não tem participação directa, e falo do ponto de vista ambiental, segundo dos os especialistas, o que se passou em Moçambique é consequência directa do aquecimento global. Isto não tem qualquer polémica. Não temos que agradecer a ajuda, mas responsabilizar os países que mais contribuem para este tipo de desastre, como, por exemplo, a China ou os Estados Unidos. Os portugueses ficaram todos excitados, mas Portugal não conta. Portugal é irrelevante, até em Angola, Portugal é irrelevante. Estou preocupado com a China. A China sim, tem interesses relevantes em Angola e Moçambique e tem políticas ambientais desastrosas. E a mesma coisa para os Estados Unidos, que tem um presidente que nega o aquecimento global.

 

E quanto à questão dos portugueses…

… estou a falar do clima, está a ver? Eu estou a falar do clima. A sua leitura é que é outra.

 

Ficamos esclarecidos. Mudando de assunto, o que é regressar a Angola, agora, com 18 meses de um novo presidente?

Angola mudou muitíssimo, e do ponto de vista político, a mudança é muito perceptível. Em primeiro há uma situação que é muito clara, que é a situação do medo. As pessoas viviam com medo, a sociedade civil vivia com medo de se expressar. Isso desapareceu. O medo deslocalizou-se, mudou de lugar. Hoje o medo está dentro do partido no poder. Quem tem medo, hoje, são os militantes e os membros do partido do poder que estão à espera, alguns de seres presos, outros de terem problemas com a justiça. Na sociedade civil esse medo desapareceu e isso é uma mudança abissal. E outra coisa que eu acho, que o Presidente João Lourenço conseguiu, foi apaziguar a sociedade angolana, que era uma sociedade muito dividida, como está hoje a sociedade brasileira, as pessoas estavam em guerra permanente, e essa situação acalmou, de facto.

E relativamente à questão da reconciliação nacional?

Ainda há muito por fazer, diria que está quase tudo por fazer. O fim da guerra não é o fim do conflito. Mas, mesmo aí, acho que se está a avançar.

 

Qual é, na sua opinião, o lugar do Savimbi na história de Angola.

Eu conheci o Savimbi, entrevistei o Savimbi. E não tenho dúvida nenhuma sobre quem foi o Savimbi?

 

E quem foi?

Um psicopata, um perigosíssimo psicopata. Não tenho a menor dúvida. Era um homem interessantíssimo, inteligente, cultivado, que poderia ter sido o Nelson Mandela de Angola, que poderia ter utilizado a sua energia no sentido positivo, mas que a utilizou no sentido negativo, começou por destruir a própria UNITA, algumas das figuras mais relevantes, que poderiam hoje conduzir os destinos de Angola, foram destruídas pelo próprio Savimbi. E isso eu não esqueço. Branquear a figura do Savimbi, como branquear a figura do primeiro presidente de Angola, o Dr. Agostinho Neto, não faz bem para Angola. É preciso dizer as coisas.

 

Não será pedir demais?

Não sei porquê. A UNITA tem de se afastar da família do Savimbi. Se se quer democratizar realmente, tem de se afastar da família do Savimbi. Depois as pessoas não são uma identidade só, são identidades complexas, e Savimbi era uma identidade complexa, era um homem corajoso, tem de se reverenciar essa coragem, foi um homem que ficou sempre ao lado do seu povo, tem de se reverenciar isso, mas a UNITA atrasou o processo democrático em Angola, muito claramente. Se não tivesse havido guerra, Angola poderia ter avançado mais cedo para um processo democrático, como aconteceu em Cabo Verde.

 

Mas Angola, em 1975, é o país do partido único?

E Cabo Verde também. O MPLA tinha uma ala crítica muito forte, desfez-se dela, é certo, mas parte dessa ala crítica foi impedida de participar num outro processo, porque começou a guerra e a guerra justificava tudo. Toda a repressão política…

 

O ‘27 de Maio’, por exemplo?

Por exemplo. É um problema interno do MPLA, com implicações gravíssimas, que poderia não ter acontecido se não houvesse já aquele envolvimento e toda a violência resultante da guerra. Se o Savimbi tivesse dito, como, aliás, o Holden Roberto fez – e eu não tenho particular simpatia pelo Holden Roberto, mas reconheça-se isso -, ele disse: ‘não vou fazer uma guerra civil’, o Savimbi não…

 

E havia homens do MPLA disponíveis para negociar…

… e, provavelmente, sem guerra, teríamos tido uma democracia mais cedo, e, provavelmente, Savimbi teria sido presidente de Angola, e, digo-lhe, que teria sido importante ter alguém como Savimbi como presidente de Angola. Lamento é que ele tenha sido o pior inimigo dele mesmo. Utilizou de forma errada o seu potencial. Há pessoas em que as suas melhores qualidades são os seus piores defeitos, é o caso do Savimbi. Era um homem que tinha grandes qualidades, que utilizou para o mal em vez de as utilizar para o bem.

 

Falando dos homens enquanto luz e sombra, e o José Eduardo dos Santos?

Falando de luz e sombra é uma figura apagada, comparando-o com o Savimbi. Savimbi era de uma força imensa, foi das pessoas que eu conheci, até hoje, com mais força, que mais me impressionou. Com uma força imensa.

 

O típico líder carismático?

Podia ter sido o Mandela de Angola. Podia ter sido o presidente de todos os angolanos, e não foi por culpa do MPLA, foi por culpa dele. E ele destruiu a UNITA, e essas coisas têm de ser ditas.

 

E a UNITA ainda anda…

… a UNITA está, até hoje, confusa, sem saber onde se situar. Aliás, a oposição toda em Angola é um desastre.

 

Houve, recentemente, um certo desconforto na sociedade angolana relativamente à ausência do antigo presidente José Eduardo dos Santos nas cerimónias da Batalha do Cuito Cuanavale, na sua opinião, e o Agualusa sempre foi um crítico de Dos Santos, qual é o legado do antigo presidente?

O José Eduardo dos Santos é outra pessoa que podia ter saído melhor. Mas tem a seu favor, historicamente, factos que os seus próprios defensores, quando ele tinha defensores, não usaram.

 

Acha que José Eduardo dos Santos não tem defensores?

Não, não tem, está completamente isolado. Eu sempre elogiei o presidente José Eduardo dos Santos por pôr fim à pena de morte e por ter terminado com a repressão que se seguiu aos acontecimentos do 27 de Maio.

 

Qual é a leitura que faz da transição democrática no país, de poder?

Transição de poder ou transição democrática?

 

Tem razão, são coisas diferentes, falemos da transição de poder entre José Eduardo dos Santos para João Lourenço?

Acho que era uma transição complicada, porque se o Presidente João Lourenço quer combater a corrupção, tinha de começar por dentro, porque o cerne da corrupção estava – está, ainda – dentro do partido.

 

Atingindo a família Dos Santos?

Não tinha como não. Não tinha alternativa. Essa é família que está no centro da corrupção. E isso é pacífico, todos os angolanos estão de acordo com isso.

 

Mas não acha que o foco nesse núcleo…

… não é nesse núcleo, esse núcleo é o núcleo. Não há outro, aquilo é o núcleo à volta de que tudo gira.

 

Há hoje uma maior disponibilidade da sua parte para se envolver em projectos em Angola?

Acho que tem tudo a ver com esta descompressão que vive o país. A determinada altura as pessoas tinham medo de serem vistas comigo.

 

Era uma figura tóxica?

Sim, sim, e isso desapareceu. Hoje, provavelmente, as pessoas tem medo de ser vistas com o Zenu ou com a Isabel dos Santos (risos). As coisas mudaram.