Luanda - Carta aberta aos deputados sobre os critérios de selecção dos municípios para a primeira fase das autarquias em Angola.

Fonte: Club-k.net

Caros deputados à Assembleia Nacional


Há exactamente um ano, no dia 1 de Maio de 2018, dirigi ao senhor ministro da Administração do Território uma carta em que apresentei uma proposta para a definição de critérios de selecção dos municípios para a primeira fase.


Um ano depois, tomo a liberdade de endereçar esta carta aberta para explicitar a ideia de “Gradualismo de base alargada” , apresentada na altura. Antes de mais, caros deputados, permitam-se o atrevimento de falar em nome de muitos concidadãos nossos que esperam que os senhores saibam estar à altura deste momento histórico, que tenham uma atitude acima das convicções politicas; que pensem, em primeiro lugar, no país, no seu desenvolvimento equilibrado e sustentável, no combate às assimetrias e decisam, com o vosso voto consciente, colocar uma pedra no futuro. Não queiram ficar na história por não terem sido suficientemente patriotas ou por terem perdido uma oportunidade soberana de decidir o futuro.


A ideia de um gradualismo de base maioritária assenta no raciocínio de que a implementação das autarquias decorre de uma opção constitucional clara do legislador quanto ao modelo descentralizado como a base do nosso ordenamento administrativo a nível local. A Constituição da Republica define no no 1 do seu art 213 que “A organização democrática do Estado ao nível local estrutura-se com base no princípio da descentralização político-administrativa” devendo ser esse articulado a chave mestra para a compreensão do espirito do legislador neste e nos postulados subsequentes


Demanda pois da própria CRA as seguintes leituras:

Em primeiro lugar, A opção inequívoca do legislador constitucional pela descentralização político-administrativa como base da organização do Estado sublinha a necessidade de criação de novas entidades que, não tendo uma relação de subordinação ou de supremacia em relação ao Estado, coexistam e coordenam a actuação na busca de interesses distintos, sendo, por um lado, nacionais e, por outro, locais.

A "descentralização" não se confunde com a “desconcentração”. Resulta evidente que o legislador decreta o fim do modelo desconcentrado em favor de um modelo descentralizado.


Em segundo lugar, são as eleições autárquicas que efectivam o princípio da descentralização ao concretizar a aceitação, de facto e de jure, da existência de um poder local autônomo e independente do Estado. É a descentralização que faz nascer a autarquia como seu instrumento administrativo. No seu conjunto, o número de circunscrições em que se criarem autarquias vai determinar se a coluna vertebral da organizaçao administrativa do estado angolano a nível local passa ou não a ser a descentralização. Mais autarquias mais descentralização, mais desconcentração menos descentralização.


Em terceiro lugar, a ideia do gradualismo igualmente consagrada na CRA não é, em si, impeditiva da consagração do modelo descentralizado (autarquias) como a opção para a organização do nosso Estado. A ideia de organização do Estado pressupõe uma competência territorial e material. Territorialmente, significa que na grande maioria das circunscrições do país o modelo de decisão, os serviços a prestar, os órgãos de governação e de escolha dos governantes será na base da descentralização. Se o numero de municípios que passarem para autarquias estiver abaixo dos 75-80% do total, não haverá clara e inequivocamente maioria do modelo descentralizado e não estaremos a alterar o modo de organização do Estado a nível local, como diz a CRA..


Em quarto lugar, a eventual coabitação numérica e procedimental entre os modelos desconcentrado e descentralizado pode decretar uma falência do processo autárquico, já que o novel modelo descentralizado pode sucumbir ao contagio e à manutenção de quarenta anos de vícios do modelo centralizado.


Uma eventual cohabitação dual de um sistema de planeamento nacional, que nunca funcionou correctamente, e de um sistema descentralizado nunca implementado, levanta obviamente reservas sobre competências técnicas humanas e organizativas para a coordenação e articulação entre os dois modelos. É grande o risco de falência do modelo descentralizado, se os digníssimos deputados não tomarem uma decisão que afirme, clara e inequivocamente, a supremacia do modelo descentralizado, com pequenas excepções particulares, que se venham a manter sob o modelo anterior. É o que chamamos de

Caros deputados

Entendemos que a ideia de um gradualismo de base mioritaria oferece muito mais garantia de sucesso do que a cohabitação dos dois modelos em paridade ou numa relação dual de ligeira supremacia. É um risco absolutamente desnecessário.

Nestes termos, os critérios de escolha e toda a linha comunicativa do debate actual não deve ser o gradualismo em si, mas antes, o o grau de implantação do modelo descentralizado. O “gradualismo de base maioritaria” permite implementar as autarquias na maior parte dos 164 municípios do país, definindo-se, isso sim, critérios específicos para justificar as razoes e condições objectivas que impedem que uns (poucos) municípios não sejam incluídos nesta fase.

É uma alteração de toda a estrutura do raciocínio:. A excepção não são as autarquias mas sim os municípios que não integram a primeira fase e a reforma da organização do Estado.

II CRITÉRIOS DE SELECÇÃO DOS MUNICÍPIOS QUE NÃO SERÃO AUTARQUIAS


Num cenário de um gradualismo de base maioritária estaremos a falar da NÃO inclusão nesta fase de 10 a 20% do total de municípios existentes no país, ou seja menos de 30. Essa é minoria de municípios que devem ter tratamento excepcional porque neles, muitos os cidadãos não usufruem de benefícios públicos mínimos oferecidos à generalidade dos seus compatriotas, como habitação, escolaridade, assistência médica e alimentação, estando por isso submetidos a uma situação de tratamento desigual e discriminatório. Seja por inacção, incapacidade do Estado ou outra razão, o Estado não consegue honrar com as suas responsabilidades mínimas para assegurar um crescimento do desenvolvimento humano e social dessas populações e isso é um impeditivo da sua própria condição de cidadania.

2-1 Primeiro Critério: Discriminação Positiva por fraco índice do Desenvolvimento humano


Lá onde os resultados ficam muito aquém da média nacional do índice de desenvolvimento humano, já de si baixo, há necessidade de um tratamento diferenciado, uma discriminação positiva.


Embora todos sejam iguais perante a lei, o Estado tem faltado ostensivamente a este grupo de cidadãos onde nem os mínimos de que a grande maioria beneficia é garantido. A discriminação positiva desses cidadãos é uma tentativa de correcção das diferenciações arbitrárias e conjunturais a que foram expostos.


Ao mesmo tempo que o princípio da igualdade não permite distinções do ponto de vista substancial, o princípio deve ser materialmente proporcional baseando-se em determinados factores. Essa igualdade proporcional impede um tratamento igual a situações provenientes de factores e realidades desiguais.


Um tratamento diferenciado desde que assente em critérios razoáveis e justificativos são compatíveis com o princípio da igualdade, no pressuposto de que as pessoas colocadas em situações diferentes sejam tratadas na exacta medida dessas desigualdades. É fundamental uma actuação de discriminação positiva do Estado para reabilitar o princípio da igualdade junto desses cidadãos e, cumprido esse desígnio, eles possam, num futuro breve não superior a dez anos, exercer como os seus restantes concidadãos, os seus direitos de escolher quem querem que os governe.


Um município em que o índice de desenvolvimento humano seja tão baixo é MUITO POBRE e não meramente POBRE como aqueles que muitos que integrar a primeira fase, deve ser objecto de uma discriminação positiva. Cabe aos deputados definir o limite que separa um município POBRE do MUITO POBRE, sendo recomendável neste caso que permaneça sob controlo da administração local até as condições mínimas para caminhar por si próprio. Alguns exemplos meramente ilustrativos: Buengas, Curoca, Lubalo, Marimba, Ngonguembo etc, etc.


2.3 Segundo Critério: selecção em função prevenção de conflitos


Um outro critério a ter em conta provem da avaliação da posição geopolítica de cada município, que permite relacionar os processos políticos com a sua localização, território, posse de recursos naturais e população. Decorrente da sua localização, dos seus recursos ou até dos processos políticos que os envolve, determinados municípios necessitam de uma atenção particular para que não se transformem em focos de conflito. Os potenciais conflitos que se vislumbram estão relacionados com os seguintes temas:

 Conflitos intracomunitários entre membros por disputas étnicas ou de afirmação identitária

 Conflitos entre membros de uma comunidade e imigrantes ou por disputas comerciais e supremacia nos negócios.

 Conflitos entre as comunidades rurais e empresários por disputas relacionadas com a propriedade de terras ou com os acessos à água e mobilidade humana e animal.

Exemplos meramente ilustrativos: Cuango; Cuvelai; Gambos, Nharea, Quela; etc etc...


2.2 Terceiro Critério: selecção em função localização geoestratégica.


As autarquias destinam-se a dotar as regiões de novas estruturas administrativas de defesa dos seus interesses, mas tal não obsta que o Estado deva continuar a velar pelos grandes interesses nacionais.


Independentemente do seu direito a escolher os seus representantes ou a promover directamente as suas particularidades económicas e culturais, alguns municípios situam-se em pontos geoestratégicos de grande referência para o desenvolvimento mais equilibrado do país. São áreas que podem servir de placas giratórias do desenvolvimento regional ou intra-municipal, através do desenvolvimento de actuais ou futuras rotas de produtos, vias de mais fácil acesso para outras regiões ou uma futura instalação de investimentos públicos de grande monta para usufruto regional ou nacional. São actuais ou futuros entrepostos do desenvolvimento económico local e regional que ao abrigo do planeamento nacional estratégico nacional. “statebuilding”.


Recomenda-se, pois, que antes de antes de serem transformadas em autarquias locais, o Estado se encarregue de efectuar um estudo de viabilidade económica e de projecção estratégica, ou seja, o Estado deve conservar provisoriamente a sua gestão afim de estudá-los, projectar o seu papel estratégico no futuro e, alcançados esses objectivos, inseri-los no processo de autorização em estreita cooperação com a visão estratégica nacional que se vier ou não a definir. Alguns exemplos: Mussende (C. Sul-Bié-Malange); Cuemba (Cuito-Cuemba-Luena); Bembe (Nzeto- Bembe-Uíge ou Ambriz-Bembe-Damba); Xa-Muteba (Malanje-Xá-Muteba-Cacoco; Malanje- Cuango); Savate (Santa Clara-Savate-Cuangar)

Caros deputados

Aproveito, ao terminar. Para pedir que reflictam sobre a necessidade de uma revisão pontual da CRA para a alteração do papel dos governadores provinciais que devem passar a ser meros representantes do governo central, sem qualquer poder executivo ou na sua, pura e simples, eliminação, criando-se os governadores regionais, mantendo esse perfil de mera representação num espaço geográfico de três províncias.


Este é o momento. Façam a nação orgulhar-se de vocês.


Luanda, aos 01 de Maio de 2019