Luanda - Quarenta e dois anos mais tarde, os eventos do 27 de Maio de 1977 permanecem despertos, embora ainda envolvidos da inscrição "delicado". O Jornal de Angola preparou uma edição especial que procura trazer alguma luz sobre o assunto, dentro da ideia de "lembrar para prevenir", sem, portanto, pretender reabrir feridas, fazer renascer polémicas, acirrar ódios ou estimular mágoas.

Fonte: JA
Afinal, o momento aconselha a reflexão sobre as dramáticas ocorrências, para referência futura, na certeza de que a compreensão de contextos e fenómenos potenciam a prevenção e o diálogo.

Sequência cronológica

No primeiro dia do mês no qual o 27 ficou conhecido como a data da purga histórica no seio do MPLA, tinha o país um ano e seis meses de Independência, o Presidente Agostinho Neto admitia que o “fraccionismo” era um mal que dividia o povo e o partido, num comício no Largo 1º de Maio, em Luanda. Até àquele dia, Agostinho Neto reconhecia que o “fraccionismo” no seio do partido era assunto “especialmente por razões objectivas”, mas a “florescer” dentro do MPLA.

Nos pedidos de unidade nacional, Agostinho Neto lembrava que era preciso não dividir “nem por raças, nem segundo tendências políticas ou religiosas nem segundo as regiões” o partido. Mas era o receio do “fraccionismo” o maior inimigo do partido que tinha proclamado a Independência Nacional, a 11 de Novembro de 1975. “O fraccionismo é um mal que divide a organização, o povo e nós”, admitia Neto no comício no Largo 1º de Maio, hoje Praça da Independência, nas comemorações do Dia Internacional do Trabalhador.

A cronologia dos acontecimentos regista que, 17 dias depois, a 18 de Maio, num comunicado, o MPLA reconhecia que “todas organizações se depuram”. “Os que entram animados por entusiasmo passageiro ou por interesses perfeitamente particularizados, geralmente afastam-se com as primeiras dificuldades ou acabam por ser expulsos ao constatar que se comportam revolucionariamente”, lê-se no comunicado, que não faz uma única referência ao “fraccionismo”, mas considera “um ponto basilar e inalienável” da condição de militante a fidelidade à linha do partido.

No comunicado há ainda espaço para criticar “camaradas” chamados a desempenhar funções no aparelho de Estado, mas que não são militantes. O MPLA considera que estes burocratas evidenciavam “zelo excessivo” e representam um “travão ao dinamismo que deve ser apanágio da organização partidária”. No dia 20 e 21 de Maio, o Comité Central do partido reúne-se, em Luanda, especificamente para analisar “problemas decorrentes da actividade fraccionista”, segundo o comunicado do encontro.

Nesta reunião, a Comissão de Inquérito criada para o efeito apresentou um relatório sobre a problemática do “fraccionismo”. Entre as conclusões: “a existência, de facto, do fraccionismo”. O partido admitia que este “fraccionismo” se apresentava “com uma capa aparentemente revolucionária e visava realmente dividir o MPLA, desviar consequentemente o povo dos verdadeiros objectivos da etapa da luta: a reconstrução nacional e a defesa da integridade territorial contra o imperialismo”.

Estava formalmente anunciado, que os “fraccionistas pretendiam difundir ideias erradas no seio dos militantes e do povo, e o fomento de actividades agitadoras contra os membros do Comité Central, organismos do Estado e do MPLA, tais como a DISA e o Bureau Político, com objectivos de abalar a coesão do MPLA e a unidade da Nação”.

Nesta reunião, os nomes de militantes acusados de dirigir actividades “fraccionistas” são revelados: Alves Bernardo Baptista (Nito Alves) era o primeiro no relatório da Comissão de Inquérito, criada pelo III Plenário do Comité Central. José Jacinto Vieira Dias Van-Dúnem (Zé Van-Dúnem), o segundo.

No dia 21 de Maio, num discurso à Nação, o Presidente Agostinho Neto apelava à necessidade do “cumprimento rigoroso” da palavra de ordem: “Fazer um combate contra todos os fraccionistas que encontrarmos no caminho”.

A cronologia dos factos publicados no Jornal de Angola tem uma “branca” sobre o 27 de Maio, depois do dia 21. O registo imediato data de 5 de Junho de 1977. Já a purga tinha acontecido a 27 de Maio. E o registo de 5 de Junho é apenas um comunicado do Comité Central. O partido apresentava aquilo que considera as “características” dos participantes da “intentona criminosa de golpe de Estado”: “São provenientes da clandestinidade e de prisões coloniais. O comunicado acentua que aos “Chipendas” coube a tarefa de destruir o MPLA da guerrilha”.

O partido revelava que foram necessários oito meses para preparar o golpe. Cheio de triunfalismos, apesar da chacina que vitimou mais gente inocente, o partido alerta em comunicado: “Que os últimos acontecimentos sirvam de exemplo para reforçar a disciplina militar”, e fala de uma lição “dura e dolorosa” dada a Nito Alves e Zé Van-Dúnem.

O partido aproveita a ocasião para associar à tentativa de golpe o nome de Viriato da Cruz que, na história que recupera no comunicado, é acusado também de, em 1963, antes da sua expulsão do MPLA, em Leopoldeville (Kinshasa), a tentar contra a liderança do partido. Outra tentativa de golpe, segundo o partido, aconteceu em 1972, protagonizada por Daniel Júlio Chipenda.

Luto Nacional

No dia 8 de Junho, o MPLA declarava luto nacional de três dias em homenagem às vítimas do 27 de Maio. Assinado por Lopo do Nascimento, então Primeiro-Ministro, o comunicado suspendia espectáculos públicos naqueles dias. O partido rendeu homenagem aos comandantes “Dangereux”, Nzaji, Saydi Mingas, Eurico, Bula Hélder e Garcia Neto.

Detenção de Zé Van-Dúnem e Sita Vales

O anúncio da detenção de José Jacinto da Silva Vieira Dias Van-Dúnem (José Van-Dúnem) e Sita Vales aconteceu a 18 de Junho pelo Ministério da Defesa, por via de um comunicado emocionado. “Já foi capturado um dos principais cabecilhas do fraccionismo”, lê-se na nota. O documento assinalava que os dois “fraccionistas” foram encontrados escondidos num celeiro. numa lavra de mandiocas.

Comissão de Lágrimas

No rescaldo do 27 de Maio, foi criada a denominada “Comissão de Lágrimas”, talhada, segundo relatos, para ouvir as pessoas directa ou indirectamente ligadas aos acontecimentos. Até hoje, está por conhecer o resultado do trabalho do grupo, constituído por cerca de uma dezena de pessoas. Aliás, sequer se sabe se a Comissão chegou mesmo a iniciar a tarefa que lhe foi confiada. Daí, o Jornal de Angola ter tentado, junto de alguns dos seus (ao tempo) membros, apurar o assunto. Não houve quem se mostrasse disponível, pelas mais diferentes razões, o que é normal.

Na insistência, a repórter ouviu, de um dos então membros, um almanaque de ameaças, com tribunais e processos à mistura. Mas eram desnecessárias. Quer as intimidações, quer a arrogância que as condimentou.