Luanda - Representante da UNITA nos EUA até à morte de Jonas Savimbi, Jardo Muekalia, ainda residente nas terras do Tio Sam, aborda ao Vanguarda os momentos determinantes para a derrota da UNITA. “A aliança com a África do Sul custou caro sobretudo no princípio”, diz.


*Félix Abias 
Fonte: Vanguarda

Na sua obra “Angola – A Segunda Revolução: Memórias da luta pela Democracia”, a determinada altura, escreve que o departamento americano pretendia expulsá-lo dos Estados Unidos, tendo perguntando se também iriam fazê-lo inclusive na condição de residente com cartão passado, com exclamações à mistura. Pode-se dizer que os EUA foram importantes na estratégia contra o seu partido e concluiu que a UNITA tinha sido derrotada?

É verdade que desde 1980 que os EUA foram manifestando o seu apoio à UNITA. Chegamos em 1986, passou a ser apoio material, político e diplomático. Quando chegamos em 1997, Bill Clinton emite a ordem para encerrar o escritório. Em 1998, os EUA decidiram passar a apoiar completamente as sanções das Nações Unidas (contra a UNITA). Até aí contribuiam, votavam, mas não os faziam cumprir. A partir da altura em que passaram da letra à prática, isso deu azo a outros, como Portugal, que passou praticamente a cilindrar a UNITA. Quase todos os países do Ocidente começaram a aplicar as sanções.

E a partir daí...

Claro que a partir aí a vida tornou-se mais difícil, com os representantes. Fomos andando, mas já era um esforço enorme procurar contacto com esse ou com aquele. Ainda em 1998, numa conferência que houve lá, os EUA decidem claramente apoiar o esforço do governo (angolano), que na altura se chamava “guerra limitada”, contra a UNITA. Os EUA saíram de garantes da paz, deixaram de ser a força que procurava o diálogo, passou a ser contra a UNITA, passando a ser apoiante do governo. Lembro-me bem nessa altura, quando se falava de abandonar o doutor Savimbi e apoiar os esforços da guerra do governo, a seguir debate-se como é que os EUA podiam ser o maior impulsionador do crescimento do mercado de gás natural em Angola. Não é à toa que as duas coisas ficaram ligadas. A partir do momento em que os EUA decidiram apoiar o esforço do governo, claro que a coisa passou a ser mais difícil.

 


A aliança com a África do Sul (racista) também custou caro à UNITA.

A aliança com a África do Sul custou caro sobretudo no princípio. Porque quando se sabe que havia sul-africanos do lado da UNITA – legitimou o MPLA e começou o reconhecimento, a ponto de a UNITA ser forçada a ir para as matas, por um lado. Por outro lado, nos primeiros anos, era difícil quebrar do ponto de vista diplomático, criar alianças ao nível desejado, porque a aliança com a África do Sul era sempre utilizada contra nós. Mas eu diria que a partir de 1980, começou-se a esbater esse elemento. Primeiro, houve a invasão Shaba, em 1977 e 79, e em política e diplomacia todos esses elementos têm utilidade.

 

Para convencer a comunidade internacional

Se há esta tentativa, perguntava-se o que mais haveria de acontecer. E como havia na altura o contexto da Guerra Fria, e havendo cubanos no País, podia indiciar a expansão da União Soviética. Isto, a dada altura, esbate um pouco a questão sul-africana e começa a criar maior interesse na luta da UNITA. As pessoas começaram a fechar os olhos à questão sul-africana porque pensaram no interesse maior– a grande ofensiva de 1984, com o envolvimento de soviéticos. E como na altura já tínhamos a capacidade de fazer diplomacia, de monstrar ao mundo o que se passava, com imagens, a questão da África do Sul passou a ser menos importante.

 

E depois entram os EUA

E depois em 1986, quando a América entra com o seu apoio diplomático, esbate a questão. A partir dali o nosso aliado era América, e a África do Sul continuava a ajudar mas já era em segundo plano. E fomos andando assim até 1992. A aliança com a África do Sul foi difícil do ponto de vista político-diplomático, mas foi importante do ponto de vista material e da resistência. Porque naquela altura, pela primeira vez, a UNITA tinha sido abandonada por todos, com excepção de Kaunda e Mobuto. Mas estes não tinham capacidade de apoio para aquilo que era necessário.

 

Em termos de legado do líder fundador da UNITA. As pessoas vão se digladiando entre o positivo e o negativo de Jonas Savimbi, que também não é pouco, basta falar dos assassinatos e das famosas fogueiras da Jamba. Podemos apenas dizer que Savimbi é o homem do seu tempo?

Homens como o doutor Savimbi são raros. Não sei se em 100 anos ainda teremos mais um Jonas Savimbi. É o que diz, é homem do seu tempo. Aliás, é necessário saber que os homens também são forjados nas circunstâncias em que vivem. Em termos de legado, claro que todos os grandes da história hão de ter um lado negativo e outro positivo. No caso dele, por um lado, foi muito bom que ele próprio tivesse incentivado o partido a assumir o seu passivo. E é importante que se reconheça que ele assumiu. Reconheceu que na condução do esforço que fez, cometeu erros. É importante que se reconheça que ele assumiu, no fundo é a única coisa que nós humanos podemos fazer. Olhamos ao passado e reconhecemos. Os aspectos positivos são nesse momento mais importantes, porque, no fundo, o que acaba por ser legado é o positivo. Para ser legado tem que ser positivo.

 

Nomeadamente...

O primeiro legado é exactamente a existência da UNITA. O segundo legado mais importante é a transformação do País, ou melhor, do quadro jurídico-constitucional do País, de República Popular de Angola para República de Angola. É importante mencionar aqui que, até 1989, o Executivo do ex-Presidente (José Eduardo dos Santos) dizia que a democracia não era um conceito africano, que isso não era para nós, e que esses (a UNITA) estão metidos com o Ocidente. E ainda fez o chamado “último assalto” a Mavinga e a Jamba, para acabar com a espinha dorsal da UNITA, com o objectivo de impor o seu projecto de sociedade. Nessa altura os cubanos e sul-africanos já se tinham ido embora, a dimensão internacional do conflito tinha sido eliminada.

 

Mas o conflito continuou.

Então José Eduardo dos Santos entendeu que era preciso quebrar a espinha dorsal da UNITA. Porque se o “último assalto” tivesse sido bem sucedido, não teríamos Bicesse. Angola teria caminhado, mas seria outra coisa. Isto permitiu a pluralidade de partidos e a adopção da economia de mercado contra a economia centralizada. E tem outro legado importante, que é a existência de certos quadros que deixa para o País. Tivemos o Geraldo Satchipengo Nunda, que chegou a Chefe de Estado-Maior das FAA. Nunda pode dizer o que quiser, claro que continuou a sua formação, mas é um dos legados de Jonas Savimbi, tal como Jorge Chicoty, por exemplo. As próprias forças armadas têm mais elementos que têm servido o País. Por outro lado, talvez menos importante, mas a própria inserção de Angola na comunidade internacional acabou por ser importante. Angola é importante pelos seus recursos, mas o facto de ter havido este conflito entre a UNITA e o governo, e a procura de alianças, fez com que se elevasse o nome de Angola a nível do mundo. E tudo isso também é benefício.

 

Como está a recepção da obra Memórias da luta pela Democracia?

Em termos de recepção, está boa, já vamos na quarta edição.

 

Não pretende traduzi-la em outras línguas?

Tenho a intenção de traduzi-la em Inglês, é só uma questão de encontrar tempo, até já dei início.

 

Em termos materiais, será mais proveitoso?

Claro, o mundo inglês é mais amplo.

 

Pensa em novas obras?

Estão na forja, o problema é o tempo. Mas vai acabar por ser mais fácil, porque os filhos já estão formados e começamos a ter mais tempo e a ficar mais sozinhos. Tenho a intenção de escrever mais obras e deixarmos o nosso testemunho. Ler mais na edição em papel.

 

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