Luanda - Nelito Soares, para muitos apenas nome de bairro luandense, combateu, de armas na mão, contra o jugo colonial, sem ter visto realizado o sonho da Angola independente, por, pouco antes, ter sido assassinado pela tropa portuguesa.

*Luciano Rocha
Fonte: JA

Feitos do combatente Nelito Soares são relembrados


Naquela altura, com 31 anos, Nelito Soares, acabado de regressar à Pátria, de onde saíra para lutar por ela, já tinha o nome inscrito na nossa História recente, com as letras inapagáveis com que se escreve heroicidade por, em 1969, numa quarta-feira de Cacimbo, ter protagonizado, com mais dois compatriotas, o desvio, para o Congo Brazzaville, de um avião comercial que seguia de Luanda para Cabinda, com passageiros a bordo.


A operação, única do género em Angola - baptizada com o nome de “Vitória ou Morte”, pois era disso que, realmente, se tratava - provou bem a determinação que o caracterizava. Foi ele quem entrou na cabina dos pilotos, para anunciar a presença com o disparo de dois tiros sem atingir alguém e disse ao que ia: “vamos para Brazzaville, se não deito isto abaixo”. Para que não restassem dúvidas, repetiu a frase. E nem o surgimento de um dos passageiros com uma granada na mão, preparada para explodir, fê-lo vacilar: “dê-me a granada ou mato-o já”.


O desvio do Dakota da DTA, Divisão dos Transportes de Angola, antecessora da TAAG, ganhou proporções tais, que nem a censura feroz do regime colonial fascista em vigor em Angola, como nos restantes territórios, incluindo Portugal, subjugados à ditadura colonialista, conseguiu sufocar.


Poucas horas depois de o aparelho aterrar em Ponta Negra, era tema de conversas sussurradas em tudo o que era sítio, principalmente, em Luanda e Cabinda. Mais tarde, a “boa nova” chegou a toda a colónia, graças, também, ao programa radiofónico do MPLA, “Angola Combatente”, transmitido a partir de Brazzaville.


Já antes e depois, muitos outros jovens nacionalistas tinham-se juntado no exterior aos compatriotas que combatiam, de armas na mão, contra as forças ocupantes, porém jamais servindo-se de um avião para lá chegar. A ousadia da operação teve o efeito de gargalhada de escárnio no rosto pasmado do regime fascista. Na altura tinha já um novo chefe, Marcelo Caetano, que substituíra Salazar, e meses antes, em Abril, viera a Angola, em mais uma jornada da propaganda do “Portugal, uno e indivisível, de Minho a Timor”, recebido com “banhos de multidão”.


No fundo, as habituais “manifestações espontâneas” promovidas pelo regime e protagonizadas maioritariamente por colonos reaccionários ou ignorantes, que gozavam de benesses que nunca tinham pensado ter. Embora, manda a verdade lembrar, nem todos afinassem pelo mesmo diapasão. Outros havia que também contestavam a ditadura, alguns deles, até, mandados para cá exactamente por isso.


Nas “manifestações espontâneas”, é bom igualmente recordar, havia fulanos que se diziam angolanos e que, a troco de vida melhor do que a esmagadora maioria do povo tinha, o que não era preciso muito, prestavam-se a elogiar a opressão e os opressores, bater-lhes palmas, dar-lhes vivas, entoar, afinadinhos e garbosos, o hino nacional do ocupante. Todos, contudo, eram sempre poucos para estas demonstrações de “amor pátrio”. E quem não o sentia era obrigado a sentir. Por isso, nestas jornadas de “fervor lusitano” havia camionetas carregadas de compatriotas honestos apanhados em rusgas policiais e levados para os locais de homenagem.


Neste ambiente é que o avião que devia aterrar em Cabinda foi desviado para Ponta Negra. Longe estava, então, Nelito Soares de imaginar que, menos de sete anos depois, num outro dia de Cacimbo, com a Independência à porta, havia de ser traiçoeiramente assassinado por elementos das forças ocupantes.


Na cidade que o nasceu, no bairro onde cresceu, estudou, sonhou a Pátria na qual os angolanos fossem livres de decidir os próprios destinos. Mas aconteceu. Um tiro certeiro no peito, na área do coração, cortou-lhe o sonho. Em frente à então sede nacional do MPLA, a cujos ideais aderiu, sob os quais e por eles conspirou. Eram tempos de clandestinidade, sem cartão de militante, nem discursos inflamados, muito menos promessas vãs. Tampouco em reuniões publicamente anunciadas. As combinas daqueles tempos faziam-se em falas surdinadas, bancos de jardins públicos, salões de baile, até em casa ou nos locais de trabalho. Sempre - condição indispensável - com vigilantes de confiança. Mas também feitas de falas de olhos.


Nelito Soares foi assassinado em pleno dia, envergando a farda dos combatentes do MPLA, um camuflado. Dos últimos camaradas de sonhos, porventura o derradeiro, com quem falou, já ferido de morte, prostrado no asfalto da rua, foi o médico Kassessa, que estava na sede daquele Movimento, ainda não partido, porque funcionavam ali os Serviços de Assistência Médica da organização política.

Últimas palavras


Com a sede do MPLA cercada por tropas portuguesas, o médico ouviu tiros e saiu. Na rua, ainda falou com um oficial das forças ocupantes sobre o que se estava a passar. Ambos procuravam saber o que se passava. Kassessa viu, entretanto, o corpo de Nelito Soares estendido no asfalto, ainda sem saber quem era. Rápido, percebeu tratar-se de um camarada de armas, que apenas reconheceu quando se debruçou sobre ele e ouviu: “levei um tiro, leva-me”.


Nelito Soares foi de imediato transportado em direcção ao Hospital Militar, mas não resistiu, sucumbiu no caminho. As forças ocupantes acabavam de fazer mais uma vítima mortal, já depois do derrube do regime fascista, mas não a última. Nessa mesma manhã, uma camioneta com destino à sede do MPLA foi atacada, mortos e feridos vários dos ocupantes. Neste último caso, conta-se Mawete João Baptista, então recem-regressado do Maqui. Mais tarde ocupou vários cargos e lugares de relevo na vida do país.


Pelo mesmo passaram civis indefesos, entre eles várias mulheres, de regresso a casa das compras de última hora para o almoço ou da missa dominical. Face ao tiroteio inusitado numa zona residencial, habitualmente calma, as pessoas desataram a correr, sem norte, à procura do primeiro abrigo que as poupasse dos tiros.

Tramóia e aproveitamento

Aquele domingo sangrento na Vila Alice começou na véspera, com uma tramóia, montada com o objectivo de descredibilizar o MPLA, que incluiu elementos de um dos vários “partidos políticos” sem passado, nem futuro, surgidos na altura. A maioria dos quais era apologista do neocolonialismo na versão rodesiana de Iam Smith.


Elementos de uma daquelas organizações, infiltrados nas forças armadas do MPLA, emboscaram um grupo de militares portugueses, ferindo vários deles. Como reacção, as forças ocupantes exigiram a entrega, até ao dia seguinte, dos autores do ataque.


A promessa do MPLA, feita em comunicado, da entrega dos autores da provocação, após a conclusão de um inquérito, de nada valeu. Poucas horas depois, no domingo, a sede da organização política angolana foi cercada por homens e viaturas das forças ocupantes, com as consequências que se conhecem, cobrindo de sangue e luto uma série de famílias. Foi há 44 anos. Não há tanto tempo para que o nome de Nelito Soares seja, para muitos angolanos, apenas nome de bairro.

Perfil

Manuel Soares de Silva, nome de registo de Nelito Soares, filho de Luís João Soares da Silva e de Isabel Severina da Silva, nasceu em Luanda, em 19 de Setembro de 1943, tendo falecido em 27 de Julho de 1975.


Os estudos secundários fê-los na antiga Escola Industrial de Luanda, onde funciona agora o Instituto Médio Industrial de Luanda (Makarenko), na Vila Alice. Foi também neste bairro que cresceu e viveu até deixar o país para se juntar, em Brazzaville, à Luta Armada de Libertação Nacional, protagonizada pelo MPLA. Era, então, funcionário da Imprensa Nacional.


Para sair do país, em 1969, com Diogo Fernandes de Jesus, falecido em combate antes da Independência, e Luís Neto Kiambata, desviou, para Ponta Negra, um avião comercial que seguia de Luanda para Cabinda.


A formação militar, a exemplo de outros camaradas de armas e sonhos, fê-la na Coreia do Norte. Antes de regressar a Luanda, foi representante do MPLA na Argélia.

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