Luanda - Luís Paulo Monteiro, bastonário da Ordem dos Advogados de Angola, refere desafios da classe e defende revisão da Constituição, que deveria ter ocorrido em 2015.


*Fernando Baxi
Fonte: Vanguarda

“A população está insatisfeita com a prestação da Justiça”

Quais são os principais desafios da Ordem dos Advogados de Angola (OAA), tendo em conta as transformações políticas verificadas nos últimos dois anos?

Estamos à frente da OAA há, sensivelmente, um ano e seis meses, tivemos que dar continuidade ao programa do mandato anterior e também introduzir algumas novidades, tendo em conta as circunstâncias actuais. Pela própria evolução que houve em termos sociais, económicos e políticos no País, definimos estratégias internas. A primeira das quais começou e já terminou, foi a implementação do novo regulamento de acesso à advocacia. Vai conferir maior dignidade a todos os que pretendam exercer advocacia. Implementamos, igualmente, o uso obrigatório da toga (modelo exclusivo da OAA), o juramento para quem receba a cédula profissional.

Também criámos, internamente, serviços para dar solução às principais preocupações dos associados. Por exemplo, em matéria de prorrogação, a OAA tem uma comissão de prerrogativas. Qualquer advogado que, durante o exercício da actividade, constate uma violação, restrição ou mesmo limitação, deve pedir a intervenção da OAA.

 

Como a OAA age em caso de violação dos direitos dos advogados?

Há uma comissão que tem um plantão formado que imediatamente vai ao terreno saber o que se passa efectivamente. Os principais órgãos vistos a violar as prerrogativas dos advogados são as Polícias, os Tribunais e algumas Administrações do Estado. Por via de regra, essa comissão funcionam em termos pedagógicos.

 

As transformações políticas verificadas no País reflectiram-se no exercício da advocacia?

A advocacia deve ser exercida com base nos diplomas que a regulam. É uma profissão que tem como características a independência e a liberdade, e assim deve ser exercida. Sucede que vivemos fases de transformações e de passagem de sistemas políticos. Em Angola, nasceu dependendo do Estado (Ministério da Justiça), a partir de 1996 saiu de um departamento público (Colectivo de Advogados) e foi instituída a OAA.

A partir daí nasce o pendor de liberdade e independência. Isto é, independente dos poderes económicos, políticos e sociais.

 

A OAA é uma instituição com autonomia financeira e patrimonial, a principal fonte de receita são as quotas dos associados. Têm tido apoio do Estado?

A OAA não tem recebido apoio directo do Estado. Este ano recebeu uma verba destinada especificamente a assistência judiciária, um mecanismo que existe constitucionalmente para apoiar as camadas mais desfavorecidas. Todo o cidadão que recebe, mensalmente, menos do que três salários mínimos tem direito de constituir um advogado e o Estado deve suportar esse mecanismo de acesso à Justiça. À luz da Constituição, quem deve regular, organizar e administrar todo esse processo é a OAA. A verba recebida nada tem a ver com o sistema de funcionamento da Ordem, está longe de ser como nos institutos públicos, que recebem dinheiro para realizar actividades, funções e atribuições estatutárias. São coisas totalmente diferentes.

Como está a relação entre os advogados e as demais instituições do Estado, principalmente a Polícia de Investigação Criminal, a julgar pela fase que o País atravessa? Sempre disse que a relação entre a OAA e outras instituições afins, os Ministérios da Justiça, Interior e Polícias, é boa. Mas em termos dos operadores é má, porque existem bons e maus profissionais em todas as profissões. Daí que por vezes surjam quezílias que obrigam a intervenção institucional.

 

Qual tem sido a posicionamento da OAA diante desta situação?

Na maioria dos casos, os advogados têm razão, porque existe abuso de autoridade. Já houve casos em que advogados no exercício da profissão foram detidos, o que é totalmente contraproducente. O advogado, quando está a exercer a actividade, fá-lo a favor de um cidadão. É bem verdade que se têm notado situações em que há, claramente, abuso de autoridade em relação às prerrogativas dos advogados, não só na província de Luanda, mas no Huambo e Benguela.

 

Em muitos casos, o advogado é tratado como o ‘parente pobre’ na relação com os magistrados, inclusive em Tribunal. Qual é a posição da OAA face a esta realidade?

A OAA tem estado a tomar conhecimento dessas questões e apela aos membros para que peçam a intervenção da Ordem sempre que ocorram tais situações. Em primeira instância quem deve ser informada é a própria OAA, para aparecer em defesa da dignidade dos associados. A advocacia é daquelas profissões liberais que aparece mais vezes mencionada na Constituição. A questão está na relação interpessoal. Por vezes, não se dá a devida consideração ao advogado.

 

Como avalia o estado da Justiça em Angola hoje?

A Justiça em Angola poderia estar em melhores condições em todos os aspectos, uma vez que foi dado um passo muito grande em termos da reforma legislativa. Falta a concretização. Há necessidade de se atender com mais proficiência à demanda de Justiça que vem do cidadão. A população está insatisfeita com a prestação e os resultados vindos da Justiça. É muito lenta e morosa, e quando assim acontece causa prejuízos. A morosidade tem que ver com vários aspectos, voluntários e involuntários, como a legislação existente e a desorganização nos cartórios dos Tribunais. Portanto, precisam de ser levados em consideração e corrigir-se para que a Justiça se torne efectiva.

 

A implementação dos Tribunais da Relação e de Comarca, no âmbito da reforma em curso, vai melhorar o sistema?

Os Tribunais são órgãos de soberania, deviam ser implementados conforme os outros, como por exemplo a Presidência de República e a Assembleia Nacional. Em termos de estrutura, um Tribunal deve ter mais dignidade.

Alguns, inclusive os que estão a ser inaugurados, não têm a dignidade de órgão de soberania. Daí vemos que não se está a dar a devida atenção à Justiça, incluindo os recursos humanos.

Continua-se com número muito ínfimo de magistrados e de oficiais de Justiça, não há meios. Dificilmente você vai a um Tribunal e o encontra equipado com sistema informático, de telex ou carro celular para movimentar os reclusos. Temos de apontar as falhas para serem corrigidas.

No âmbito do exercício da Justiça, a relação entre os operadores ainda é vista com suspeição, sobretudo depois da denúncia pública que dava conta da venda de sentenças.

 

Qual é a vossa opinião a respeito deste assunto?

Primeiro não me responsabilizo pelas declarações proferidas por outros bastonários. Cada um de nós é uma pessoa jurídica e é responsável pelo que afirma. Quem faz uma afirmação, deve prová-la. Existe um ambiente de suspeição generalizado, mas é preciso, sempre que se fizer uma declaração, fazer-se prova.

 

Na qualidade de bastonário da OAA, já tomou conhecimento da de possíveis casos de corrupção no sistema judicial?

Desde há um ano e seis meses que estou à frente da OAA e ainda não houve nenhuma denúncia de casos de corrupção no sistema de Justiça.

 

É normal um magistrado judicial ou do Ministério Público manter relações profissionais com escritórios de advogados, mesmo que antes tenha lá pertencido?

O exercício da advocacia impõe limites, impedimentos e também tem incompatibilidade com determinadas profissões. No fundo, quer dizer impedimentos absolutos. Quem for magistrado não pode ser advogado em circunstância alguma, nem ter escritório de advogados ou praticar actos da advocacia. São aspecto éticos que estão totalmente reportados na Lei e que devemos cumprir.

 

Mas, há informações de que existem juízes e procuradores que ainda estão vinculados a escritórios de advogados, pelo facto de terem sido os fundadores...

É preciso dizer quais são esses juízes e os respectivos escritórios de advogados. A OAA tem registados cerca de 140 escritórios e mais ou menos 50 associações de advogados. Também tem escritórios individuais em todo o País. 25% dos magistrados judiciais em Angola passaram pela OAA e pediram a suspensão da actividade para ingressarem na Magistratura. Devolveram as cédulas profissionais. Não recebemos nenhuma participação nesse sentido. As duas actividades possuem códigos de deontologia, ninguém os pode ferir.

 

Neste caso, pode o magistrado assessorar um escritório de advogados ou vice-versa?

Não pode. Até o funcionário do Tribunal está, igualmente, impedido por lei de ser advogado. Também goza de incompatibilidade.

 

Até que ponto o juiz de garantia é importante para a administração da Justiça?

O juiz de garantia é muito importante para a administração da Justiça, porque funciona como um decisor imparcial em termos de processopenal. Existem funções específicas dos operadores forenses. Por exemplo, a função do advogado é defender, do procurador, acusar, e a do juiz, aplicarmediadas e prender. Esta é a trilogia universal.

Sucede que, no nosso caso concreto, dado os sistemas políticos por que atravessamos, atribuiu-se aos procuradores uma função do juiz, que é de aplicar medidas de segurança e prender.

 

A OAA encara esta incongruência legal com normalidade?

Estamos a viver uma situação em que os procuradores, em vez de acusarem, também prendem e aplicam medidas de segurança. Esta função é de um juizde garantia. Felizmente é uma situação que a OAA, neste mandato, tem estado a levantar, porque a nossa Constituição prevê que exista essa figura jurídica.

Tomámos boa nota que, a partir deste mês, já se começou a recrutar magistrados do Ministério Público para fazerem parte do concurso para juízes de garantia. Brevemente farão parte do nosso ordenamento jurídico.

 

Este poder atribuído ao Ministério Público fere os princípios consagrados num Estado democrático e de direito?

A própria Constituição é clara nessa matéria. Diz que deve haver um juiz na instrução criminal. Não de instrução criminal, no fundo, o juiz na instrução é o de garantia. O que temos de fazer é adaptar o nosso modus operandià Constituição.

 

A fiscalização dos actos do Executivo é um temas candentes na política nacional. Para tal ocorrer deve revogar-se o acórdão n.º319/2013 do TC ou rever a Constituição?

Penso que o ideal seria a revisão constitucional, porque já se passaram cinco anos, tempo que se prevê revisões. Nessa matéria, deveria ser feita uma emenda. Deve levar-se em consideração que nas constituições não existem palavras vãs, todas têm um significado. Relativamente a este tema, a Constituição deveria ter uma relação com palavras mais claras dos actos de fiscalização das actividades praticadas pelo Executivo