Luanda - Um Estado de Direito, como é ensinado nas Faculdades, e segundo a herança de Charles-Louis de Secondant, o aristocrata que entra nos dicionários da História em M de Montesquieu e que escreveu Do Espírito das Leis, é tripartido em três poderes: Executivo, Legislativo e Jurisdicional. Independentes entre si e que sustentam o tripé de qualquer Estado Democrático e de Direito. Porém, também se ensina que apesar de independentes deve, e bem, existir uma interdependência funcional e garantir o sistema de freios e contra-freios – ou simplesmente check and balance.

Fonte: Club-k.net


E o que Montesquieu escreveu no século XVIII ainda hoje faz sentido quando se lê ou se ensina – ou mesmo quando se reflecte sobre -, é também evidente que é muito difícil – e a História está plena de exemplos de como têm sido – a sua aplicação na prática, e quanto mais frágeis as democracias e cínicos os poderes menor é a probabilidade de se verificar, não só o check and balance, como a própria independência entre estes órgãos, esta ausência e/ou dificuldade de se efectivar, na prática, esta independência diminui na proporção inversa em que aumenta a promiscuidade entre os órgãos e os seus actores. É o que sucedia e sucede na nossa jovem Pátria e que acaba de ser desenhada, com contornos ainda mais vergonhosos, no julgamento do Conselho Nacional de Carregadores (CNC).


Neste julgamento, aliás, desde a introdução em juízo deste processo e a respectiva formulação do Despacho de acusação que imensos juristas, não só os de cá, mas os de lá - que não têm nenhum interesse na causa, muito menos conhecem ou privam com as pessoas – teceram criticas por inexistência factual de nexo causal entre o comportamento, os danos e os arguidos, mais propriamente o ex-ministro Augusto Tomás. Quando se pensava que a Justiça, chamada neste momento crucial do País, viria afirmar-se como desinteressada, freio e pilar último da defesa de um julgamento justo e conforme, e por isso mesmo garante e guardiã da Democracia e dos fundamentos constitucionais de um Estado Democrático e de Direito... é a estupefação geral!


Basta ler-se o acórdão com bastante atenção e percebe-se que apesar de o Tribunal ter, e muito bem, afastado a “gula moderna” do Ministério Público (MP) em aplicar de forma precipitada e antecipatória a Lei n.º 15/18, de 26 de Dezembro, em relação à liquidação dos bens, situação que o Juiz da Pronúncia deveria ter acautelado e não o fez - vai-se lá saber onde é que aprendeu a “cumprir ordens do MP” e a não considerar o comando da lei e afastado de igual modo um número recheado de crimes de que os arguidos iam pronunciados, situação que também poderia ter sido expurgada, não só pelo juiz da Pronúncia, como pelo Juízes que julgaram o recurso do Despacho de pronúncia e não o fizeram.


Entretanto isto obedece a uma lógica própria de um seguimento do MP que aproveita, e bem, o frete dado pelo Tribunal: é que para a “euforia popular”, apadrinhada pelo predito segmento do MP, faz toda a diferença que o(s) arguido(s) tidos como Pessoas Politicamente Expostas (PEP’s) estejam indiciados, acusados, pronunciados e julgados por vários crimes, mesmo que uns estejam amnistiados, outros desadequados e outros ainda num claro concurso aparente de normas ou protegendo o mesmo bem jurídico, isto não importa, o importante é que a “maldade dele(s)” sejam demonstrada não pelo facto em si mas pela quantidade de crimes que é dada à estampa.
Dito isto, é fácil, como dizia acima, perceber que entre a quantificação do dano patrimonial constante do relatório do acórdão e os resultados a que o Tribunal chegou não há diferença alguma, mesmo que todos os arguidos, uns mais e outros menos, tenham sido absolvidos de alguns crimes de que vinham pronunciados e de que foram julgados, e isto leva a uma simples conclusão: a produção da prova foi, para o Tribunal, “desnecessária”, ou seja, a Pronúncia já ia “carregada” de razão e de elementos bastantes para a condenação dos arguidos naquelas quantidades e tudo o resto era show on como daqueles que existiam no Coliseu de Roma no tempo Cesaer!


O Tribunal fez um esforço em apresentar as motivações, aliás, o acórdão está muito bem estruturado e formalmente bem redigido, porém, é só ler as adjectivações que o Tribunal atribui à defesa e aos peritos e fica-se logo com esta ideia. A dada altura diz o acórdão: A defesa em “desespero de causa…” e em “a Perita não poderia ter sido mais clara (...) e até classificou de ‘descalabro’”...


Quem leu ou lê o acórdão, na página 42, sob o título: “Motivação da Decisão”, depara-se com este parágrafo: “em desespero de causa procurou a defesa de um dos réus, atrair o Tribunal para supostas irregularidades, trazendo à colação situações já resolvidas em sede própria, como é o caso do Relatório da IGAE e de eventuais situações ocorridas durante a Instrução Contraditória, numa manobra de diversão que não logrou êxitos, porquanto, o Tribunal tão logo identificou o ‘nó górdio’ preocupando-se na identificação, com evidência solar, da posição que cada um dos réus ocupou no descalabro que sofreu o CNC, à época dos factos”! Esta evidência cristalina, é um dos méritos deste acordo, sublinhe-se... não sem ironia, claro.


Ler esta introdução a matar da motivação da decisão e a sentir convicções por suposição e conjecturas, tais como: “quem beneficiou da ausência da Comissão Fiscal é o…!; claramente sabia do programa de…!; quem beneficiou foi a Direcção do CNC e o ministro de tutela…!; quem mais retirava vantagens de um Instituto Público sem o Conselho Fiscal…!; foi com olhar contemplativo do…!, tudo isto ocorria sob o olhar impávido e sereno do…!: tal olhar delapidativo deste réu…!” E mais adiante, na página 67 - de resto, lembrar que sendo cada caso um caso, na verdade, olhando para as cambiantes sociais que se verificam no nosso País, não repugna uma sanção exemplar, já pelo maior protagonismo que do novo ciclo socioeconómico se vive em Angola -, dizia, ler estas partes do acórdão rapidamente chego a uma situação de profunda desolação e angústia e um sentimento de desilusão, porque o Poder Jurisdicional, e mais uma vez, tomba aos pés do “único Poder” que se assume e exerce como tal, tomba também às veleidades daquele seguimento já conhecido.


Apesar do esforço feito pelo Tribunal, tudo isto se aproxima mais do folclore e pouco ao direito, porque as conjecturas, as insinuações e imaginações interpretativas deviam ficar de fora do acórdão. Por outro lado, vários argumentos estão deslocados e inquinados porque as premissas (maior e menor) não casam com as conclusões, estas e na sua maioria, saíram, infelizmente, da interpretação criativa do Tribunal e não dos factos que o próprio tribunal carreou ao processo. Vai-se lá saber em parte do artigo 34.º do Código Penal está a circunstância agravante: condição económica do arguido? Entretanto quem fizer um link com o despacho do juiz de turno neste processo (que por feliz coincidência foi o relator deste acórdão) a condição económica também serviu de fundamento para não alterar a medida de coação!


Ao Tribunal, um dos poderes que administra a justiça em nome do povo, exige-se, imparcialidade, equidistância e um dever de fundamentação. Entretanto, o dever de fundamentação não se confunde com acórdãos extensos, nem com motivações a matar. «O dever de fundamentação enquanto exigência constitucional do princípio da fundamentação das decisões jurisdicionais e obedece a três partes lógicas:


a) A enumeração dos factos provados e não provados;

b) A indicação e exame crítico dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal;

c) A indicação, interpretação e aplicação aos factos das normas jurídicas em que se baseia a decisão.

Na verdade, como bem salienta Michele Taruffo, a fundamentação tem uma função “endoprocessual” e uma função “extraprocessual”, permite o controlo da decisão dentro e fora do processo. Com efeito, a fundamentação potencia o controlo crítico e racional da decisão, desde logo, pelos próprios decisores, pelas partes do processo e pela comunidade jurídica como um todo. Dizia Bentham, numa frase repetida pela nossa jurisprudência constitucional, que “boas decisões são decisões para as quais podem ser apresentadas boas razões”. Pois bem. Os decisores e as partes do processo só podem estar convictos de que se chegou a uma boa decisão se encontrarem boas razões de facto e de direito para essa mesma decisão. Ao fundamentar, os juízes formam a sua convicção sobre a bondade e a justiça da decisão. Se não conseguirem encontrar suficientes razões de facto e de direito é porque a sua decisão “não é boa e não é justa”».


E é com esta sensação de que fiquei. Não é pelos factos ou ausência deles, não é por ter um feeling da inocência ou culpa dos arguidos (alguns ou todos), foi por perceber que o silogismo judiciário vertido no acórdão sobre vários factos é insuficiente, para tendencioso, pretensioso e ousado que chega a ser - para usar utilizar o termo repetido neste acórdão - um “descalabro”. Pelo que é fácil chegar à conclusão que é uma decisão adaptada “ao novo ciclo socioeconómico que se vive em Angola e por isso a decisão não repugna”, justamente, por agradar a quem manda ou vai-se lá saber porquê. Das poucas coisas que sei é que, por exemplo, o crime continuado não está previsto na parte geral do Código Penal de 1886 e por isso mesmo não deve ser usado para agravar ou fundamentar a responsabilidade penal dos arguidos. Sei, também, que a exegese do Direito Penal coloca o “crime de peculato e o crime de violação de normas de execução do plano e orçamento” na linha do mesmo bem jurídico protegido e por isso com a mesma finalidade protectiva …enfim!


E olhar pelos factos excluindo a questão prisão, em relação ao dano patrimonial e por isso reparável, o Tribunal de Contas, aliás, entidade impulsionadora deste dossier, não está (estaria) em melhores condições para julgar muito dos factos constantes deste processo? Não daria assim maior e melhor segurança e certeza jurídica? Não fica de facto a sensação de que há um partido e seus membros que beneficiou e cresceu à sombra do erário público? E fica-se por isso mesmo?


É necessário que não se confunda e se clarifique a diferença entre uma gestão errática que dá origem à responsabilidade financeira reintegrativa e uma gestão danosa que pode dar origem à processos crimes, o que não podemos é misturar alhos com bugalhos por causa do maior “protagonismo que nesse novo ciclo sócio económico que se vive”, quase que me apetece perguntar ao Tribunal: e porque só agora? Andaram à espera de ordens superiores?


Será, então, que são “subordinados trasvestidos em poder”…? Prefiro calar-me, diante deste ‘Carregador’ do novo ciclo, é bom que os gestores de ontem e de hoje estejam preparados para que a(in)justiça seja para todos, que sejam abertos os inquéritos todos da IGAE dos últimos 15 anos e apenas alguns! Por agora temos, na sociedade angolana, uma história triste com três palavras: Conselho Nacional de Carregadores.


Carreguemos juntos o espirito do bem servir e bem fazer!