Washington  - Victor Silva, amigo de várias décadas, um dos meus mestres quando abracei o jornalismo e actual director do Jornal de Angola, convidou-me a escrever um artigo sobre a chegada dos primeiros escravos africanos à América, que se julga serem angolanos. Aqui vai o que li e aprendi a este respeito.

Está na edição de 23 de Agosto do Jornal de Angola
Rainha Njinga, a soberania chegou à Virginia

Fonte: Jornal de Angola

Se Angela (assim está escrito em documentos de 1625) está entre os escravos africanos mais estudados da história dos EUA, a rainha Njinga também está entre os soberanos africanos do seu tempo, mais estudados neste país.


A preocupação de alguns académicos norte-americanos em relação a estas duas figuras - a primeira ausente nos manuais angolanos e a segunda venerada por causa do seu impacto na História - está explicada naquilo em que se converteram Point Comfort e Jamestown, Virginia, a meu ver, as localidades americanas mais tocadas por Angola.

Há na história americana factos relevantes ligados a Angola: Jemmy, uma corruptela de Jaime, entrou para a história em 1739 por ter liderado a chamada Revolta do Stono, na então província britânica da Carolina do Sul. Esta contestação custou a vida a 25 cidadãos brancos e entre 30 a 50 escravos africanos.


Originário de territórios do antigo Reino do Congo, Jemmy era um escravo letrado. O domínio que ele e escravos do seu grupo tinham da língua e de costumes portugueses leva alguns estudiosos a pensarem que eles eram originários de territórios que hoje constituem Angola.


Algumas sugestões apontam Cabinda como sendo de onde terão partido para a América do Norte.


A Enciclopédia de Humanidades do Estado de Virginia indica que nada disso teria sido possível se o navio negreiro português, São João Bautista, que tinha partido de São Paolo de Luanda, em 1619, com 350 escravos, com destino a Vera Cruz, hoje México e antigamente Nova Espanha, não tivesse sido tomado pelas embarcações britânicas, White Lion e Treasurer. Sem meios para proteger o que tinha adquirido em São Paulo de Luanda, o capitão Manuel Mendes da Cunha, comandante do São João Bautista viu serem-lhe apreendidos 50 escravos dos quais Angela fazia parte.


O Treasurer, seguiu viagem para Point Comfort, colónia de Virgínia, onde, de acordo com a mesma enciclopédia chegou em finais de Agosto de 1619, com um grupo de negros, os quais se tornariam nos primeiros escravos a chegarem à América do Norte. Nancy Egloff, historiadora ligada ao Centro Histórico de Jamestown, diz que depois de vendidos a terceiros, Angela e outros escravos acabaram levados para Jamestown, que dista 59 quilómetros de Point Comfort.


"Point Comfort, actualmente Fort Monroe, foi a porta de entrada. Jamestown foi para onde depois foram levados e onde viveram o resto das suas vidas", registou a historiadora.


Dados do censo de 1624, detidos pelo Arquivo Nacional da Grã-Bretanha e emprestados ao Centro Histórico de Jamestown especificamente para esta celebração, tem Angela como sendo uma "mulher negra que chegou a bordo do Treasurer". Por força do efeito dado à última letra do seu nome, Angela, a mim pareceu-me ser um "ô" em alguns documentos é tratada como Angelo, com a ressalva de que é sempre identificada como alguém do sexo femenino.

É à volta da sua saga que decorre a celebração da chegada, há 400 anos, dos primeiros escravos africanos a esta parte do mundo, um processo que colocou Jamestown e Point Comfort nos anais da história dos EUA.


A relevância que este detalhe tem no contexto histórico norte-americano é significativa, mais não seja porque os EUA são um país que debate a sua história e o seu passado até à exaustão. Pouco diferença faz o facto de, no contexto do comércio de escravos, a América do Norte ter recebido uma pequena fração das pessoas compradas em África e vendidas nas Américas.


Em 2014, o académico Henry Louis Gates Jr, uma das principais autoridades nessa matéria, citou passagens de uma base de dados inspirada nos manifestos de navios usados no comércio transatlântico de escravos a qual dizia que, entre 1525 e 1866, 12 milhões de africanos foram enviados para o chamado novo mundo, "as Américas" e que destes, 10.7 milhões sobreviveram à travessia, desembarcando na América do Norte, Caraíbas e América do Sul.


"Quantos destes 10.7 milhões de africanos foram mandados directamente para América do Norte? Apenas 388 mil. (...) Isto é uma percentagem ínfima", diz Henry Louis Gates Jr.


A circunstância dos Estados Unidos da América terem na sua história uma cicatriz chamada escravatura eleva a relevância destas duas pequenas localidades, situadas a 254 quilómetros de Washington, sede do governo federal. Porém como muitos outros casos da história dos Estados Unidos , as causas da guerra civil americana são um exemplo, este também viu a sua narrativa posta em causa. O grande debate a este respeito pode estar apenas no começo.


A edição desta semana da revista Time diz que os primeiros escravos teriam chegado à St. Augustine, Florida, ao tempo um colónia espanhola, em 1565, a bordo de um navio negreiro espanhol.


Um artigo de Setembro de 2017, do historiador Michael Guasco publicado pelo Smithsosian, um dos maiores centros de conhecimento do mundo, põe em causa as reivindicações que partem de Jamestown e de Point Comfort. Ele diz que trazidos em 1565, rebelaram-se em Novembro desse ano num acto que inviabizou a construção de um colonato na actual Carolina do Norte.


A Time diz que apesar disso, alguma coisa mudou em 1619. " Quando se falar do papel das colónias inglesas na história americana, tem que se falar da introdução de comércio transatlântico de escravos em Virgínia, pois este aspecto é um elemento incontornável ".


A Time acrescenta que o sistema eclavagista que se veio a solidificar nos séculos que se seguiram , é coisa única na tragédia americana.


O tratamento que Jamestown e Point Comfort dão à chegada dos primeiras escravos africanos à America não só incomensurável como ninguém ai acredita que não sejam angolanos.

Há mais de 5 anos que Jamestwon tem no seu Centro Histórico uma galeria dedicada à rainha Njinga e ao reino que ela liderou.


Em Maio último visitei Jamestwon pela terceira vez. Comigo iam um irmão, a esposa e um sobrinho. Fechada para reparações que tinham em vista as celebrações que esta semana têm o seu apogeu, a galeria foi aberta exclusivamente para nós. Ciosos da aspiração dos meus acompanhantes em ver como Jamestown tinha "abraçado" a saga da chegada dos primeiros escravos à América, Nancy Egloff e Peter Armstrong, director principal do Centro Histórico de Jamestown, proporcionaram um tour privado.


Construída com recurso a fundos públicos e a doações, esta galeria tem um pequeno auditório no qual é exibido um documentário que oferece uma reconstituição de como se vivia no local de onde Angela era originária. A isto juntam -se painéis, com narração em kimbundo, de aspectos da vida da população local naquele tempo.


O que mais me tocou ao ouvir novamente esta narração foi o mesmo que me tocou das duas vezes que lá estive. Resultado de um trabalho que envolveu, entre outros, a historiadora Linda Haywood (autora do livro, “Njinga of Angola, Africa's Warriors Quenn”) e Thomas Davidson, ao tempo curador sénior daquele centro, a narração é feita num kimbundo que me remete para a kimbundo que ouvia na rádio na minha infância.

Não o falo, mas a melodia da narração faz-me lembrar o kimbundo que ouvia na Voz de Angola, há cinquenta anos. Era algo diferente do kimbundo de Malanje de que era originário o meu pai, sendo mais próximo do kimbundo falado pela minha mãe, cuja raiz está na Ilha de Luanda.


As celebrações em curso esta semana em Virginia incluem uma conferência que a Voz da América promoveu esta quinta-feira na Universidade de Norfolk, Virginia , e o início no fim de semana em Point Comfort de uma vaga de eventos.


Point Comfort, que compete com Jamestwon na reivindicação da preponderância à volta da chegada dos primeiros escravos à América, era suposto ver concluído o Centro Histórico que vai dar tratamento a esta questão. Questões de força maior provocaram atrasos na conclusão da obra.


Luís Costa*


Washington, 19 de Agosto de 2019
* Produtor Multimédia da Redacção Central da Voz da América.