Lubango - A comunicação social tem-se referido com grande destaque à seca na província do Cunene e no Sul do país em geral. Nesse âmbito, o Presidente da República, João Lourenço, deslocou-se nos dias 3 e 4 de Maio de 2019 às províncias do Cunene e Namibe para uma visita de trabalho no sentido de serem tomadas medidas governamentais concretas no sentido de fazerem face à situação vivenciada na região. Nessa altura, orientou o reforço do Programa de Emergência de Combate à Seca (PECS).

Fonte: Angop

Segundo o Chefe de Estado, os milhões de angolanos devem continuar solidários, para salvar vidas nas comunidades atingidas. “Seja solidário, doe o que pode”, escreveu o Presidente da República na sua conta Twitter. A ANGOP, em notícia datada de 24 Julho de 2019, realça que na província do Cunene um total de 857 mil 443 pessoas estão a viver os efeitos da seca estando um milhão e 100 bovinos em risco de morte. Também, em finais de Julho de 2019, a vice-governadora do Cuando Cubango para o Sector Político, Económico e Social clamava que esta província necessitava com urgência de um milhão de toneladas de bens alimentares para mitigar a fome de mais de 350 mil pessoas que foram assoladas pela estiagem severa, havendo revelado que nos municípios do Cuangar, Calai, Dirico e Mavinga populares estão a migrar para outros pontos da província e para localidades fronteiriças da Namíbia e Zâmbia em face da penúria alimentar. Ainda segundo a mesma agência noticiosa, para além do Cunene, a província mais afectada, as populações das províncias de Cuando Cubango, Huíla, Namibe, Benguela e Cuanza Sul sentem, igualmente, os efeitos da seca. Na sua generalidade, os pregões feitos aos vários níveis por instituições governamentais, igrejas e organizações da sociedade civil solicitam ajuda de emergência, sobretudo de natureza alimentar, e circunscrevem-se fundamentalmente a acções assistencialistas. Uma preocupação central que se deve ter em conta neste tipo de actuação, é o facto de os apoios distribuídos durante um episódio de seca poderem minar a preparação das comunidades para futuros eventos idênticos assim como a sua adaptação, a longo prazo, às mudanças climáticas. Outra preocupação é a narrativa simplista do “camponês como vítima” apresentada pelos meios de comunicação social. Exagera-se o número de famílias e rebanhos atingidos e esconde-se a verdade de que a maioria dos agregados familiares em meio rural se prepara para a seca e consegue gerir o evento mesmo sem assistência externa embora estejam quase que completamente abandonados nos locais mais inóspitos e sem acesso aos necessários serviços. A cobertura, por vezes sensacionalista, dos mídia prejudica a reputação dos camponeses como produtores de alimentos. Transforma-os em agentes incapazes que não sobrevivem sem doações. Imagens de campos ressequidos, gado depauperado e famílias desesperadas transmitem sinais errados a fazedores de políticas, parceiros comerciais e população em geral das capacidades de adaptabilidade e de resiliência das populações locais assim como do seu importante papel no desenvolvimento económico do país.


Os eventos de seca no Sul vão-se agudizando ao longo dos anos perante a passividade da generalidade das estruturas governamentais. A propósito do ciclone IDAI, que fustigou Moçambique outros países vizinhos, escreveu o jornalista moçambicano Lázaro Mabunda que aquele evento «veio descobrir a nossa pobreza, expor a nossa incompetência, despir o nosso orgulho e escangalhar o pouco que restava da nossa reputação.» Esta afirmação quase pode ser transplantada para o que se está a passar no Sul de Angola. Efectivamente, a situação aqui prevalecente expõe a pobreza, vulnerabilidade e falta de resiliência das comunidades locais, resultado do abandono a que estão devotadas e da vontade de se ‘escangalhar’ um sistema de produção e estratégias de meios de vida que demonstraram, ao longo dos tempos, estarem perfeitamente adaptados aos ecossistemas locais e serem produtivos. Seria de esperar que talvez o despertar do Presidente João Lourenço contribuísse para que o poder político encarasse o desenvolvimento do país de outra forma e olhasse o campesinato como parceiro nesse desenvolvimento e não tomasse as populações rurais como inaptas e simples receptoras de actos ‘caritativos’. Infelizmente, o evoluir da situação vem demonstrando que erros e estratégias que se desejariam abandonadas continuam a fazer escola.


Lembramos que situações de seca constituem um evento recorrente no Sul de Angola e países vizinhos, designadamente Namíbia e Botswana. O chefe da missão da ONU em Luanda, Pier Balladeli, alertara, em Agosto de 2018, na abertura do Seminário Nacional Sobre a Redução de Riscos de Desastres, organizado pelo Serviço de Protecção Civil e Bombeiros (SPCB) e pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que o ciclo recorrente das cheias e das secas que afectam negativamente as populações do Sul do país podem comprometer as metas dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) tendo realçado que o ciclo afecta sobretudo o crescimento económico. Efectivamente, ao longo dos tempos, várias secas impeliram a situações de grandes fomes como aquelas de 1877-79, 1896-1898, 1907-1908, 1915, 1920, 1929-1931, havendo sido algumas destas situações também acompanhadas por pragas de gafanhotos. A história recente dá-nos vários exemplos. Em 2013, FEWS NET (Famine Early Warning System) repertoriou que as colheitas no Cunene estiveram 50 a 70% abaixo da média. Depois, durante três anos consecutivos (2014–16), a região da SADC (Southern African Development Community) esteve exposta a uma seca intensa que, durante a estação pluviosa de 2015/16 foi exacerbada por um dos episódios mais fortes registados do El Niño Southern Oscillation (ENSO) (SADC, 2016). Segundo a FAO, a seca de 2015/16 teria sido a pior que afectou a região desde que existem registos, há mais de um século, tendo conduzido à morte de cerca de 643.000 cabeças de gado em consequência da falta de pasto e água. Numa região onde mais de 60% dos meios de vida dependem da agricultura, os impactos da referida seca foram tão severos que mais de 40 milhões de pessoas ficaram em situação de insegurança alimentar, requerendo ajuda internacional (SADC, 2016). Em Angola, e relativo ao ano de 2015, a Comissão Nacional de Protecção Civil (CNPC) avançou o número de 1.553.894 pessoas afectadas nas províncias de Benguela, Namibe, Huíla, Cunene, Cuando Cubango e Cuanza Sul. Esta mesma Comissão publicou, com o apoio do PNUD, União Europeia e Banco Mundial o documento intitulado: “Seca em Angola 2012 – 2016 - Avaliação das Necessidades Pós-Desastre (PDNA)”. Dada a sua importância, no Relatório Social de Angola de 2015, publicado pelo Centro de Estudos e Investigação Científica da Universidade Católica de Angola, o seu capítulo 7, da autoria de Adriano Gomes e Guilherme Santos, foi inteiramente dedicado à agricultura familiar e segurança alimentar face aos constrangimentos climáticos na província do Cunene.


Nos mídia tem havido ampla referência ao actual episódio de seca, desde reportagens, artigos de opinião, entrevistas, etc. Infelizmente, a maioria das análises peca pela sua superficialidade e pouco adianta sobre a compreensão do fenómeno e sua abordagem. Exceptuam-se, pela sua qualidade de análise, a entrevista concedida ao Novo Jornal pelo cineasta e fotógrafo Sérgio Guerra (edições 581 e 582) e a crónica assinada por Fernando Pacheco, estampada também no Novo Jornal, edição 586. Para quem pretenda conhecer as principais linhas de actuação do Executivo e sua leitura da situação na província do Cunene, pode ler a entrevista concedida à ANGOP pelo respectivo governador, Vigílio Tyova, a 5 de Maio do corrente ano. Como é habitual, o tema ‘seca’ fica em evidência quando há uma crise, mas uma vez restabelecida a situação normal a atenção dos órgãos de comunicação social volta-se para outros assuntos. A informação é muito importante na prevenção de novas catástrofes. Os meios de comunicação não apenas devem informar sobre a seca, mas sobre todo o processo de planeamento e mitigação deste evento. Ao contrário dos especialistas, os jornalistas conseguem transmitir as mensagens de uma maneira mais compreensível para o grande público.

 

Das diversas intervenções de dirigentes e não só, difundidas pelos órgãos de comunicação social e das medidas propostas vindas a público transparece a falta de conhecimento geral da problemática da seca e da realidade no terreno por parte de muitos governantes. Para além da continuada insistência na adopção de medidas exógenas baseadas fundamentalmente no ‘macro’ e esquecendo-se do nível ‘micro’, é também olvidada a importância da participação das populações locais e construção de medidas com base no conhecimento local. Adicionalmente, e como já vem sendo habitual, envereda-se pela opção por projectos sobre dimensionados para as capacidades locais. No final, a sensação com que se fica é de que muitas das instituições que deveriam ter um papel fulcral estão perdidas e sem estratégias bem definidas nem convenientemente alicerçadas em conhecimento técnico e científico sendo, muitas dessas estratégias, inadequadas às realidades locais. As distintas actividades deveriam estar direccionadas para objectivos específicos, previamente definidos, baseados em estudos credíveis e haver uma forte interligação entre as mesmas, quiçá um órgão superior de coordenação a nível regional1. Enfim, o problema da seca, com seus múltiplos e profundos impactos sobre as populações locais, continua a ser tratado de uma forma pouco profissional e demasiado superficial.

 

É evidente o abandono a que foram submetidas as populações rurais em Angola. Durante décadas e, o que é deveras gravoso, depois da obtenção da paz, a palavra‘ desenvolvimento’ vem sendo entendida como antónimo de ‘rural’, de ‘camponês’. Carências na provisão de água para as comunidades e seus gados não acontecem apenas na província do Cunene. Na estação seca, estas carências constituem um problema transversal em toda a região sul, incluindo até áreas a norte da linha de caminho de ferro Lubango-Menongue, de maior pluviosidade, mas sendo particularmente graves a sul desta linha. Isto mesmo considerando que a pluviosidade ocorrida na estação de chuvas se tenha situado dentro dos parâmetros normais. Grande parte das famílias rurais não tem acesso a água potável e aquelas que possuem gado têm imensa dificuldade em o abeberar regularmente. Em anos mais secos a situação torna-se dramática. A presente seca não é apenas uma crise alimentar. É, sobretudo, uma crise de meios de vida. Não apenas falta o que comer agora. Se não se actua, se não se mudam estratégias e formas de abordagem tão pouco restará com que se viver amanhã. Enquanto se assegura o acesso à água e ao alimento para os meses seguintes, tem de se garantir que as produções pecuárias e agrícolas possam ser retomadas. Caso contrário, cada vez mais a população ficará dependente do assistencialismo e a provisão de apoios tornar-se-á incomportável para o Estado e seus parceiros.

 

A província do Cunene, tal como a do Namibe e grande parte das províncias de Huíla, Cuando Cubango e Benguela, estão integradas no que podemos designar, para maior facilidade, de semiárido angolano, embora muitas áreas possuam características áridas, sobretudo na província do Namibe. Toda esta região é caracterizada pela imprevisibilidade da chuva e muita variabilidade no crescimento vegetativo, conduzindo a ambientes altamente dinâmicos. O clima, a partir dos seus diferentes elementos, em associação com factores físicos como o solo e a orografia, determina os calendários agrícolas, hidrológicos, vegetativos e de pastoreio que, entre outros, condicionam em última instância o dia-a-dia das populações. Quando se fala em semiárido, uma questão assoma de imediato: a água, a chuva e a seca. É comum afirmar-se que não chove o suficiente, que há falta de água e que este é o maior problema da região sul. Essa é uma verdade relativa, pois existem diferenças marcantes do ponto de vista da precipitação anual de uma área para outra. Em alguns locais a pluviosidade pode atingir 800 milímetros por ano, enquanto em outros a média é de pouco mais de 300 milímetros anuais. Ademais, embora se saiba que a pluviosidade se concentra em apenas um (curto) período do ano, não existem processos adequados de retenção/armazenamento de água a nível familiar e de comunidade. Ou seja, desperdiça-se quase toda a água das chuvas.

 

É nesta região de Angola, de características áridas e semiáridas, com grande variabilidade climática, que se concentra o maior efectivo pecuário (bovinos, caprinos e ovinos) do país e o mais equitativamente disperso. No seu conjunto, as províncias de Huíla, Cunene e Namibe concentram cerca de 77% do efectivo bovino do país, 69% do caprino e 83% do ovino, fundamentalmente em mãos de pastoralistas2. A criação de gado constitui parte importante da cultura das populações locais, detentoras de um efectivo numeroso que, ao longo de décadas, tem constituído a base para o povoamento de outras regiões de Angola, tanto com gado para reprodução como com bois para tracção. Aquando do alvor da paz, em 2002, eram visíveis, para quem percorresse o interior do país, vastas regiões despovoadas de gado, praticamente sem bovinos. Contudo, rapidamente essas regiões foram repovoadas com animais provenientes do Sul, mormente gado de tracção, embora o Sudoeste angolano também tivesse sido fortemente 2 Dados do ISV (Instituto dos Serviços de Veterinária) referentes a 2018, estimam para a província da Huíla um efectivo de 1.243.073 bovinos, 1.127.099 caprinos e 261.700 ovinos, para a província do Cunene um efectivo de 1.100.000 bovinos, 2.205.031 caprinos e 75.000 ovinos, e para a província do Namibe 634.600 bovinos, 1.253.500 caprinos e 570.000 ovinos. O efectivo total do país está estimado em 3.847.302 bovinos, 6.658.057 caprinos e 1.089.696 caprinos.


fustigado pela guerra. Isto, para além dos animais que daqui saem para abate, direccionados para vários centros urbanos do país. Estes factos são demonstrativos das capacidades adaptativas e de resiliência dos sistemas de produção praticados pelas sociedades pastoralistas do Sudoeste.

Um sistema de produção eficiente e resiliente

Há lugares em que se sente a injustiça. Um deles é o meio rural do Sul do país, região que, no entanto, tem um potencial extraordinário, sobretudo no domínio agro-silvo-pecuário. Evidências e estudos diversos mostram que o pastoralismo/agro-pastoralismo aí praticado constitui um sistema de uso de terra apropriado e produtivo. É a forma mais adequada do ponto de vista ambiental e mais viável economicamente para exploração do semiárido e contribui significativamente para a economia nacional. Sistemas de produção no semiárido estão sujeitos a grande variabilidade temporal e espacial da pluviosidade, pelo que os criadores-pastores procuram tirar partido da heterogeneidade do coberto vegetal. Nestes ambientes altamente incertos e de alto risco, os criadores maximizam a produção nos tempos favoráveis e limitam as perdas nos tempos maus. Ao se considerarem opções para estas regiões deve-se ter em conta a resiliência como um factor-chave dos meios de vida e um objectivo primário de desenvolvimento.

 

O Sudoeste é constituído basicamente por ecossistemas de savana cuja cobertura vegetacional sofre uma coevolução dinâmica com o pastoreio a que é submetida pelo gado, sobretudo por bovinos, caprinos e ovinos, mas também por herbívoros selvagens. Os rebanhos movimentam-se no espaço em busca de água e forragem. Esta mobilidade é planeada cuidadosamente com base no conhecimento vernáculo das populações pastoris, fundamentalmente na sua esfera consuetudinária, de forma a fazer a utilização óptima da variação de recursos no tempo e no espaço. Pluviosidade e consequente desenvolvimento e distribuição da cobertura graminosa são factores importantes na gestão da mobilidade dos rebanhos. Adicionalmente aos factores ecológicos, direitos de acesso e controlo sobre territórios de pastoreio são igualmente considerados nos processos de tomada de decisão. Assim, os criadores-pastores necessitam optimizar diferentes factores – o ambiente em mudança, as necessidades dos diferentes usuários de recursos naturais, os constrangimentos sociais, culturais e políticos – para acederem aos pastos, um processo que é suportado por arranjos sociais baseados na flexibilidade e reciprocidade. Contudo, o contexto da mobilidade pastoril no país tem vindo a deteriorar-se radicalmente na última década. Fazendas e outros projectos infra-estruturais em grande escala vêm criando sérios obstáculos à continuidade dessa mobilidade, acrescentando-se à fragmentação dos territórios, marginalização dos pastoralistas e conflitos de diversa natureza.

 

Tomando como critério a sua relação com a natureza, podemos apelidar as sociedades rurais do árido/semiárido angolano de ‘povos dos ecossistemas’, já que estabelecem uma estreita simbiose com os ecossistemas e na sua vivência fazem uso sustentado dos recursos naturais de determinado ecossistema ou de ecossistemas contíguos. Estas sociedades distinguem-se dos ‘povos da biosfera’, que são sociedades interligadas a uma economia global, de alto consumo e poder de transformação da natureza, causadora de grande desperdício de recursos naturais. O meio rural da região árida/semiárida de Angola é habitado por diversos grupos etnolinguísticos cujos meios de vida assentam no pastoralismo (essencialmente na província do Namibe) e no agro-pastoralismo. Estas populações desenvolveram estratégias próprias para reduzirem a sua exposição à seca assim como para enfrentarem este evento. Para isso, diversificam as culturas agrícolas e o efectivo pecuário, possuem um excedente de animais que podem ser comercializados/permutados rapidamente durante uma crise no sentido de obterem os alimentos necessários, sobretudo cereais, adoptam esquemas de pastoreio baseados na mobilidade de forma a melhor explorarem a forragem disponível no espaço geográfico e seguem práticas de pastoreio oportunistas com base nas quais o tamanho dos rebanhos e taxas de lotação das pastagens são ajustadas à condição destas, variando à medida que as chuvas permitam usufruir de melhores recursos forrageiros e de outras áreas de pastoreio. Nestas condições, a mobilidade do gado, vulgarmente apelidada de transumância, é vista como a estratégia mais eficaz para sustentar tanto os meios de vida das populações locais bem como a preservação do ambiente e sua biodiversidade. Basicamente, transumância pode ser definida como «um sistema de produção animal caracterizado pela migração, sazonal e cíclica, em variados graus entre áreas ecológicas complementares e supervisionado por alguns membros do grupo doméstico, permanecendo os restantes sedentários.» É uma forma de adaptação às condições áridas e semiáridas do Sul que permite fazer uso das complementaridades entre vários ecossistemas e regiões. Adicionalmente, os pastoralistas mantêm acordos de reciprocidade com outras comunidades, reforçam redes de solidariedade e diversificam para estratégias não da agricultura, mormente a migração sazonal. Em Angola, as atitudes destas sociedades têm sido muitas vezes consideradas, por parte de agentes externos e decisores políticos, como sendo conservadoras e retrógradas ao desenvolvimento. Esta forma de pensar reflecte, isso sim, a má compreensão por parte daquelas entidades de um sistema de produção complexo e de múltiplos objectivos que vem demonstrando a sua eficiência ao longo de décadas não apenas em Angola, como também em África e no mundo em geral.

 

As sociedades rurais que habitam o árido/semiárido angolano têm de fazer face a um conjunto de riscos socio-ecológicos como: (i) variabilidade da pluviosidade, que se manifesta por atrasos no início e/ou final precoce das chuvas, irregularidade destas, períodos secos curtos ou mais ou menos longos, impactos na produção agrícola de sequeiro, segurança alimentar e recursos aquíferos; (ii) seca: evento frequente e muitas vezes de longa duração, agravada por altas temperaturas e taxas de evaporação, com impactos severos na segurança alimentar e na saúde e provocando substancial erosão dos meios de vida; (iii) eventos de cheias: as cheias que por vezes ocorrem, particularmente na bacia do Cuvelai, na província do Cunene, podem causar desastres humanos e destruição de meios de vida; (iv) degradação de recursos: mudanças ambientais na região incluem degradação das terras de pastoreio, aumento da erosão dos solos, salinização dos cursos de água, exposição a espécies invasivas, factos que deterioram a base de recursos naturais que serve os meios de vida; (v) conflitos sobre recursos: o aumento da competição e conflitos sobre recursos naturais entre comunidades, empresas e outras formas de utilização de terras ameaçam os meios de vida e segurança física dos membros dos agregados familiares camponeses; (vi) insegurança alimentar: crises a nível de produção de alimentos, sua distribuição e acesso conduzem à insegurança alimentar generalizada, com consequentes impactos na nutrição, saúde e desenvolvimento humano associados a uma gama de factores ambientais, económicos e sociais; (vii) aumento de patologias no homem e animais e de pestes nas plantas. Apesar de todos estes constrangimentos, as estratégias de gestão de riscos adoptadas pelas sociedades pastoralistas do Sul do país provaram ser eficazes na gestão do risco de seca e têm-lhes possibilitado sobreviver à hostilidade do ambiente.

Combate à seca: as falácias de um paradigma

As secas estão presentes como metáfora do castigo divino nas mitologias grega e romana e na generalidade dos textos sagrados, desde a Bíblia ao Corão. Na antropologia não faltam os exemplos de civilizações primitivas que celebravam cerimónias específicas para pedir a chuva depois de longos períodos sem ela. Estes rituais, que reflectem a realidade das sociedades rurais, completamente dependentes dos recursos naturais, ainda hoje são extensamente praticados. De uma forma simples, a seca pode ser definida como sendo o fenómeno que ocorre naturalmente quando a precipitação registada é significativamente inferior aos valores normais, provocando um sério desequilíbrio hídrico que afecta negativamente os sistemas de produção dependentes dos recursos naturais. Situações de seca podem arrastar a conjunturas de desastre, podendo paralisar a produção agrícola, esgotar as pastagens, provocar instabilidade nos preços dos alimentos, colocar em perigo a segurança alimentar e, nos casos mais extremos, conduzir à inanição e morte de pessoas e animais.

 

A seca difere de outros desastres naturais como cheias, ciclones tropicais e terramotos, em vários aspectos. Em primeiro lugar, tanto o início como o fim de uma seca são difíceis de serem determinados porque os seus efeitos acumulam-se lentamente ao longo de um tempo considerável e podem persistir durante anos depois do evento haver terminado. Um segundo aspecto é a ausência de uma definição, precisa e universalmente aceite, de seca, o que conduz a confusões em termos de reconhecimento e avaliação do seu grau de severidade. Finalmente, os impactos da seca são não estruturais e difundidos por áreas geográficas mais amplas comparativamente àqueles de outros desastres naturais, característica que dificulta o desenvolvimento de estimativas precisas, confiáveis e atempadas da sua severidade e, consequentemente, a formulação de planos de contingência apropriados.

 

Consideram-se quatro tipos de seca (meteorológica, agrícola, hidrológica e socioeconómica), todos associados com o défice de precipitação durante um período continuado. A seca meteorológica resulta de um prolongado período seco. Caracteriza-se pelo aumento da temperatura do ar e ausência prolongada de chuva acompanhada de uma redução da humidade relativa, o que aumenta a evapotranspiração. É a precursora dos restantes tipos de seca. A seca agrícola afecta sobretudo o sector da agricultura definhando as culturas em consequência de períodos prolongados de défice de humidade no solo. Associada a ela ocorre uma redução substancial da produção das culturas agrícolas. A seca hidrológica está relacionada especificamente com baixos níveis hídricos (armazenamento e fluxo de água) que conduzem a deficiências no suprimento de água. Trata-se de um processo lento de seca que acontece quando o suprimento de água das distintas fontes aquíferas (lagos, cursos de água e aquíferos) cai abaixo do seu nível normal. Por seu lado, a seca socioeconómica está associada a perdas económicas e afecta aspectos sociais da vida humana. Conduz a impactos socioeconómicos graves, à fome, à inanição e mesmo à morte.

 

A seca tem tanto componentes naturais como sociais. O risco associado à seca para determinada região é o produto da exposição desta ao evento (isto é, probabilidade de ocorrência e níveis de severidade) e da vulnerabilidade das comunidades locais ao mesmo. A exposição à seca varia no espaço geográfico e pouco, ou mesmo nada, pode ser feito para impedir a sua ocorrência. Em contrapartida, a vulnerabilidade é determinada por factores humanos e sociais como características demográficas, práticas de produção, políticas de desenvolvimento, comportamento social, etc. Estes factores variam ao longo do tempo, pelo que a vulnerabilidade das populações pode aumentar ou diminuir em resposta a essas variações. Secas subsequentes na mesma região podem ter diferentes impactos conforme as mudanças que, entretanto, possam ter ocorrido nas sociedades locais. Quando a resiliência é alta, o sistema é robusto (não vulnerável). Realce-se, contudo, que uma coisa é a percepção e outra a realidade. Ao falarmos com camponeses que ultrapassaram um evento de seca e que conseguiram manter a sua base de activos, ficamos com a noção de que são resilientes, porque sobreviveram. Ora, tal pode não ser verdade, pois tudo gira sobre como quantificar essa resiliência. Quantificação esta também importante para identificar quem mais necessita de ajuda e que tipo de apoio será mais efectivo.

 

As acções governamentais para mitigação dos impactos da seca em Angola têm privilegiado fundamentalmente aspectos emergenciais e assistencialistas, enquadrados no denominado ‘combate à seca’, faltos de um planeamento estratégico bem estruturado. As diversas acções aparecem como actos de bondade, mantendo as comunidades locais sem vez e sem voz, dependentes. A ausência de uma estratégia abrangente de gestão da seca a longo prazo faz com que todos os esforços se baseiem na entrega de ajuda de emergência pós- desastre e não na construção proactiva de resiliência. Para além deste tipo de ajuda deve ser colocado ênfase em tornar as comunidades locais resilientes e sustentáveis. Para se atingir isso é necessário mudar o paradigma das actuais abordagens, essencialmente reactivas, para um paradigma direccionado para a construção e reforço da resiliência a nível local. Efectivamente, muito pode ser feito para reduzir a vulnerabilidade das comunidades à seca através de um planeamento proactivo de preparação e resposta ao evento.

 

A cada período de forte estiagem, centenas, senão milhares de famílias que vivem no Sul não conseguem satisfazer as suas necessidades de acesso à água e a alimentos básicos. Contrariamente ao que é vulgar afirmar-se, as causas desta realidade não podem ser creditadas apenas às contingências do ambiente e das populações locais. Elas são, sobretudo, de natureza política e estrutural. Em lugar do modelo emergencial-assistencial que vem sendo seguido, deve- se optar por um paradigma de ‘convivência’ com o semiárido, de promoção do desenvolvimento sustentável desta importante região do país, no sentido da melhoria das condições de vida e promoção da cidadania, por meio de iniciativas socioeconómicas e tecnológicas apropriadas, compatíveis com a preservação e renovação dos recursos naturais. Essa convivência com o semiárido deve articular diversas dimensões de intervenção social, cultural, ambiental, económica e política. A dimensão cultural deve valorizar os saberes locais e contextualizar os processos de ensino-aprendizagem à realidade local. À dimensão económica compete priorizar alternativas de produção apropriadas às condições edafoclimáticas da região. As iniciativas de produção e distribuição das riquezas devem ser sustentáveis e inclusivas, com a democratização do acesso aos meios necessários à produção. A dimensão ambiental implica a recuperação e conservação dos ecossistemas presentes devendo as tecnologias e práticas de gestão dos recursos naturais serem apropriadas e terem em consideração as potencialidades e fragilidades ambientais. Adicionalmente, a convivência com o semiárido requer o fortalecimento da sociedade civil e a participação do cidadão na formulação de políticas públicas apropriadas que contribuam efectivamente para o desenvolvimento das comunidades locais.

O que existia, mas que já não existe e deveria existir

Em 1962 foi criado o Plano de Coordenação de Abastecimento de Água às Regiões do Sul de Angola que, sob a dependência da então Secretaria Provincial de Fomento Rural, tinha por objectivo a aprovação e coordenação da execução das obras respeitantes ao abastecimento de água às populações rurais e seus gados, com excepção do abastecimento de água aos centros populacionais. A intervenção deste órgão era feita através de brigadas de estudo (Brigadas de Meteorologia e Geofísica) e de construção e conservação das obras (brigada de Construção e Conservação dos Serviços de Geologia e Minas e Brigada de Engenharia da Junta Provincial de Povoamento). Calcula-se que tenham sido construídas 1300 captações de águas, das quais 300 de águas superficiais (açudes e chimpacas) e 1000 captações de águas subterrâneas. Depois da independência nacional foram criadas, na província da Huíla, duas estruturas vocacionadas para intervir no domínio das águas: a HIDROMINA UEE, dependente do Ministério da Indústria, para atender as captações de águas subterrâneas e o Sector de Recursos Hídricos da ENAMA (Empresa Nacional de Mecanização Agrícola), vocacionado para a recuperação de captações de água superficiais. Contudo, por falta generalizada de quadros especializados e de equipamento, pouco realizaram em termos de recuperação das obras em questão. Assim, o estado de operacionalidade destes equipamentos foi-se degradando progressivamente.

 

De entre as estruturas de experimentação, a Estação Zootécnica do Cafu, parte integrante da estrutura do Instituto de Investigação Veterinária (IIV), destaca-se pela sua importância. Anteriormente conhecida como Posto Zootécnico do Cunene, está localizada no Cafu, na margem esquerda do rio Cunene, a 64 quilómetros de Xangongo. A sua montagem começou em 1933 e ocupa uma área de 20000 hectares. Tinha como objectivo apoiar o desenvolvimento pecuário da região, estudar as raças locais5, cabendo-lhe também multiplicar reprodutores bovinos para produção de carne, ensaiar culturas, produzir forragens e assegurar a sua conservação, havendo aí sido desenvolvidos diversos trabalhos de investigação. Nela existiu um lote puro de Santa Gertrudis e foram estudados diversos cruzamentos de raças exóticas com gado local. Contudo, e pela sua importância, não podemos deixar de referir «o melhoramento do gado indígena por selecção, em que se tem mantido o critério morfológico, baseado na observação da melhor conformação para as deslocações e resistência à temperatura. O lote foi submetido ao sistema de abeberamento de dois em dois dias, sem que se tivesse ressentido, uma vez que os animais se mantiveram robustos e aproveitaram bem o pasto». Esta conclusão comprova a excelente adaptação do gado Sanga local às condições agrestes da região e ao maneio a que é submetido pelo criador-pastor.

 

Entretanto, depois da independência nacional, em lugar de se reforçar esta estrutura fulcral para o desenvolvimento do país, a mesma foi devotada ao abandono e dilapidada. Realce- se que se trata de uma estação zootécnica situada, digamos, no coração da região do país maisrica em gado. Apesar da crise provocada pela seca e dos ‘dinheiros’ disponibilizados, esta estrutura, fundamental para qualquer programa de gestão da seca, continua abandonada e no esquecimento geral dos governantes. É urgente que a mesma retorne integralmente para a tutela do MINAGRIF, mais especificamente para o Instituto de Investigação Veterinária. Esta Estação Zootécnica deve servir de centro de recolha e distribuição de animais no âmbito de acções de despovoamento/repovoamento fundamentais nos processos de gestão da seca, assim como ser fornecedora de suplementação alimentar (forragem e feno) para os rebanhos em situação crítica e apoiar a investigação agrária necessária ao desenvolvimento da região sul, tornando-se basicamente num centro de pesquisas para o semiárido. Para além desta Estação Zootécnica na província do Cunene devem ser também rapidamente reactivadas com o mesmo propósito, duas estações localizadas na província do Namibe: a Estação Zootécnica do Lungo6 e a Estação Zootécnica da Cacanda7. A primeira, situada a cerca de 80 quilómetros da Bibala e com cerca de 10.000 hectares, serviria sobretudo os efectivos pecuários de Caitou, Camucuio e Lola. Por seu lado, a Estação Zootécnica da Cacanda, localizada a cerca de 12 quilómetros da Bibala, apoiaria na produção de forragem para as épocas de maior carência alimentar. A Estação Zootécnica de Quilengues8 serviria o gado da parte norte do Namibe e de Quilengues (Huíla) e Chongoroi (Namibe). O Estado, em particular o MINAGRIF, não pode furtar-se das suas responsabilidades neste domínio, o mesmo acontecendo com as administrações dos municípios onde estas estruturas estão localizadas.

Em 1984, foi apresentado pelo Ministério da Agricultura o programa denominado de“Racionalização da pecuária do Sul de Angola” elaborado por Fernando Leal e Joaquim Santosque identificou três componentes (abastecimento de água, comercialização e assistência veterinária) como forma de racionalizar as condicionantes ecológicas e económicas que afectavam as economias pastoris. Esse programa já realçava que o atendimento das questões vitais do complexo pastoril do Sul do país, nomeadamente o abastecimento de água às populações e aumento da taxa de extracção, estavam muito aquém do preconizado e desejado. Mais adiantava que pouco havia sido feito na reabilitação e/ou construção de pontos de abeberamento, consequência da ausência de coordenação regional no domínio do abastecimento de água e escassez de recursos dos organismos interventores (HIDROMINA UEE e ENAMA UEE). Em 1986 foi lançado o Programa de Reabilitação de Chimpacas da Huíla e Cunene, sob responsabilidade técnica da ENAMA e com o apoio da União Europeia.

 

Na direcção de Evaristo Kimba como Ministro da Agricultura e António Russo como Vice, foi constituído, em 1985, com sede no Lubango, o Gabinete Regional da Pecuária do Sul de Angola (GRPSA). A sua direcção foi entregue a José Correia e nele labutou também outro médico veterinário, Joaquim Santos. Este Gabinete procurou gizar estratégias de desenvolvimento pecuário para a região assim como coordenar e interligar os projectos relacionados com a mesma. Integrava as seguintes componentes principais: água, pastagem, assistência técnica e comercialização. Nesta última vertente destacava-se o papel desempenhado pela DINAPROPE (Distribuidora Nacional de Produtos Pecuários), empresa estatal sediada também no Lubango e vocacionada para a comercialização do gado. Fazia a entrega, a comerciantes, de mercadorias destinadas à comercialização no campo recebendo depois o gado adquirido por estes. Os animais eram direccionados para parques de retém onde era feita a engorda. Posteriormente, eram enviados por barcaça, a partir do porto Namibe, para os principais matadouros do país. Paralelamente, o GRPSA procurou recolher o conhecimento existente, mas disperso, relacionado com o Sul. Infelizmente, anos mais tarde, o referido Gabinete foi extinto, assim como a DINAPROPE, os seus técnicos desbaratados e obrigados a ‘procurarem’ trabalho emoutras instituições, perdendo o Ministério da Agricultura importante fonte de conhecimento da região assim como todo o material entretanto acumulado e organizado.

Entre os projectos que abordaram questões relacionadas com a seca e pastorícia e quedeixaram ‘marca’ recordamos o “Programa de Desenvolvimento Participativo das ComunidadesAgro-Pastoris dos Gambos” levado a cabo por uma parceria ADRA-ACCORD. Para além de estudos realizados no domínio pastoralista, a sua componente hidro-pastoril executou rigoroso levantamento da problemática hídrica na região. A UNICEF e, posteriormente, a CAREInternational financiaram o “Programa de água, saneamento, educação e higiene”,implementado pela ADRA/ACCORD nos Gambos. Em Novembro de 2008 e com a duração de três anos, iniciou-se o denominado “Projecto de Melhoria de Acesso à Água e às Pastagens para as Comunidades de Pastores nos Corredores de Transumância”, que abarcou as províncias de Huíla, Namibe e Cunene. Financiado pela União Europeia, apoiou o Ministério da Agricultura e os governos daquelas três províncias, incluindo administrações municipais e comunais, na identificação de áreas pastoris comunitárias e corredores de transumância e no melhoramento do acesso à água e aos pastos nessas áreas. Paralelamente, foram reforçadas as capacidades institucionais locais na gestão da água e da terra. Contou com a consultoria de vários especialistas internacionais, recuperou diversos pontos de água e deixou ampla informação sobre transumância, delimitação de áreas pastoris consideradas como imprescindíveis, pontos de aprovisionamento de água, etc. Logo nos alvores do seu trabalho com as comunidades estas destacaram problemas como: roubo de gado, falta de pontos de abeberamento, conflitos com fazendeiros, falta de mercados e áreas de pasto insuficientes para o número de animais. Mal- grado a importância dos dados obtidos com base nos profundos estudos realizados, as importantes conclusões e recomendações daí resultantes não foram implementadas, havendo sido como que ‘engavetadas’.

Meios de vida e vulnerabilidade das populações locais

Os ‘meios de vida’ consistem nas capacidades, actividades e recursos (tanto materiais quanto sociais) necessários para o sustento do indivíduo e seu agregado familiar. Um meio de vida é sustentável quando é capaz de manter ou melhorar o nível de vida actual sem degradar a base de recursos naturais. Para manterem os seus meios de vida, os agregados familiares têm de lançar mão a um conjunto de activos: destrezas e habilidades individuais (capital humano), terra, poupanças e equipamento (capital natural, financeiro e físico, respectivamente), assim como grupos de apoio formal ou redes informais que assistem nas actividades empreendidas (capital social). O gado constitui o núcleo dos meios de vida das comunidades rurais do Sul e uma importante fonte de rendimento para as mesmas. No seio destas comunidades, o gado desempenha múltiplas funções. ‘Sem gado, a vida não anda’, dizia-nos anos atrás um camponês em Namacunde. Em exercício elaborado com um grupo de agro-pastores deste município da província do Cunene, foram mencionadas diversas funções para o gado: tracção, produção de estrume, alimento (leite, carne), peles, chifres, mercadoria-comercialização, poupança, investimento, funções de índole cultural/social, etc. Todos estes camponeses realçaram que o gado constitui ‘riqueza’ e que a sua falta arrasta à pobreza. Indubitavelmente, o gado constitui o objecto do desenvolvimento económico e social de toda a região.

 

Diversos estudos realizados no Sudoeste, alguns ainda durante o conflito armado, outros nos anos seguintes ao alcance da paz, revelaram que as comunidades rurais dessa região se encontravam, a nível do país, entre aquelas com sistemas de meios de vida mais sustentáveis. Um dos activos principais que lhes conferia essa sustentabilidade era precisamente o gado. Entretanto, nos dias de hoje, a situação no Sul do país é reveladora de uma cada vez maior vulnerabilidade9 das populações locais aos choques, mormente à seca. Depois da paz, a condição dos meios de vida destas populações em lugar de melhorar, tem-se vindo a deteriorar progressivamente. De sustentáveis, passaram a ser altamente vulneráveis. O significativo número de mortes de gado bovino avançado pelas autoridades da província do Cunene, os casos de desnutrição e a quantidade de famílias em situação de pobreza e insegurança alimentar indicam precisamente esse aumento de vulnerabilidade e a incapacidade das famílias se socorrerem de estratégias de meios de vida alternativas. Uma das principais causas para que tal aconteça tem sido a perda de acesso aos recursos naturais de que necessitam, situação que se vem deteriorando progressivamente. No passado, os criadores adaptavam-se à heterogeneidade do ambiente e à variabilidade dos sistemas movendo os seus rebanhos. Esta estratégia possibilitava-lhes reduzir a mortalidade do gado durante as secas e manter altas taxas de lotação das pastagens. Actualmente, o espaço pastoril e a capacidade de mobilidade dos rebanhos estão severamente restringidos devido, nomeadamente, à ocupação de extensas áreas de terra, nomeadamente de recursos-chave, por empresas do ramo da agricultura ou com outros propósitos específicos. O aumento da ocupação demográfica, a desflorestação, a carência de pontos de água, o roubo, falta de mercados, restrito acesso a serviços de apoio e a factores de produção, etc., são outros aspectos que também contribuem para o aumento da vulnerabilidade dos pastoralistas na região.

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