Luanda - O presente artigo é resumo de um trabalho de investigação (de 24 páginas) feito por mim em sede do Curso de Pós-graduação em Administração e Gestão Pública em Maio de 2018. Pela extensão do texto original, talvez fosse aconselhável fazê-lo por partes, porém para não quebrar o raciocínio e o entusiasmo de quem lê, desafiei-me tentar exercer a capacidade de síntese, a qual espero não comprometer a sequência lógica.

Fonte: Club-k.net

O tema, em si, não é de fácil abordagem, particularmente, nos tempos que correm. Pois, vivemos um período em que várias correntes de opinião, devido a inoperância ou o funcionamento residual das empresas públicas angolanas, mais despistas do que rentáveis, são a favor da (maioria da) sua privatização. Por isso, ainda assim, pensar-se na criação ou manutenção de empresas públicas como forma do Estado poder auto financiar-se é um desafio que exige muitos argumentos de razão, muitos dos quais até controversos.


Entretanto, pelos estudos feitos, percebe-se que os Estados, quer em sociedades mais liberais ou de influência ideológica socialista, fundamentalmente, após o período que se seguiu à primeira guerra mundial, assumiram através de empresas por si criadas, o exercício da actividade económica, invocando a necessidade de atender os interesses públicos relevantes, produzindo bens e prestando serviços, num campo de actividade tradicionalmente ocupado pelos particulares. Ainda hoje, é uma realidade até em países desenvolvidos ou em via de desenvolvimento.


O que partilhamos nesta breve reflexão é, precisamente, mostrar que o Estado, não obstante no âmbito das suas responsabilidades, no domínio das finanças públicas empresárias dever criar políticas económicas e fiscais que garantam um bom ambiente de negócios, pode intervir através de critérios objectivamente estabelecidos, por meio de empresas, em sectores de actividades menos apetecíveis aos particulares e investir em projectos cuja complexidade e grandeza envolvam avultadas somas, garantindo além do bem-estar da colectividade, o emprego e o próprio retorno dos investimentos feitos.


Antes de mais, saibamos, alguns conceitos que, no fundo, constituem as palavras-chave do tema.


O que é Empresa Pública?

A lei que estabelece o regime jurídico do Sector Empresarial Público (Lei no11/13, de 3 de Setembro), no no 1 do art.7o define a Empresa Pública como sendo pessoa colectiva dotada de personalidade jurídica e com autonomia administrativa, financeira e patrimonial. Essas empresas asseguram em nome do Estado, a realização de fins específicos.


Nos termos do referido diploma, o critério de qualificação de empresa pública é a integralidade do capital social detido pelo Estado, conforme o art.1o; a) do art.2o e o art.3o da Lei no 11/13, 3 de Setembro-Lei de Bases do Sector Empresarial Público, doravante designada por LBSEP.


O mesmo diploma prevê ainda que o sector empresarial público integra: as Empresas Públicas, as Empresas com Domínio Público e as Participações Públicas Minoritárias.


As empresas públicas são entidades públicas sujeitas ao direito de iniciativa económica pública, que se configura no direito angolano, como instrumento da Administração Indirecta do Estado.


Portanto, não sendo (a natureza jurídica) o foco do nosso estudo, basta-nos esse conceito legal de empresa pública para sua compreensão e prosseguirmos.


Auto Financiamento

O Auto Financiamento, no âmbito das finanças públicas, consiste na adopção de um conjunto de práticas com o objectivo do Estado elevar a sua capacidade de obter e aplicar recursos próprios para financiar o próprio negócio, enquanto Estado-empresário, sem recorrer ao dinheiro de terceiros (crédito bancário, dívida pública titulada-emissão de títulos, etc.) ou seja, ao endividamento e o consequente pagamento de juros.


O Auto Financiamento corresponde aos fundos financeiros libertados pela actividade do Estado e que ficam disponíveis para realizar despesas e financiar investimentos, criando, por exemplo, empresas que são instrumentos através dos quais o Estado implementa ou materializa não só as suas políticas sociais, como deve sobretudo, visar obter o retorno do investimento feito e o lucro merecido e, dessa forma, dispor de mais recursos financeiros necessários para a sustentabilidade do próprio Estado no domínio da realização e satisfação das necessidades básicas das populações.

 

Ora, sabidos esses dois conceitos básicos do nosso tema, agora põe-se a questão de saber se, pode o Estado se financiar através da criação ou manutenção de Empresas Públicas?


A criação de Empresas Públicas (ou manutenção delas) como forma de auto financiamento do Estado levanta a velha questão sobre a intervenção do mesmo na Economia. Embora não seja esse o cerne da nossa abordagem, em síntese, dizer que as discussões sobre a intervenção do Estado na Economia estão longe de alcançar consenso entre os vários autores, não só para os clássicos como para os hodiernos (Estado Mínimo-Neo Liberal: Adam Smith, Paul Samuelson - 1970, Joseph E. Stigliz-2001, Paul Krugman- 2009; Estado Máximo-Intervencionista: John Keynes, Friedrich A. Von Hayek -1974, Milton Friedmam-1976).

Para Joaquim Rubens Fontes Filho e Lidice Meireles Picolin (2007), “haverá sempre, em algum grau, organizações estatais destinadas a suportar a implementação das funções do Estado”, assegurando, com isso, as funções sociais do Estado, no âmbito da fraternidade, solidariedade, visando a garantia da dignidade da pessoa humana, aliás, a este respeito, a nossa Constituição no seu art.1o, absorve a solidariedade como um dos princípios fundamentais sobre o qual assenta o nosso Estado.


Os co-autores, supracitados, na sua obra citam ainda autores como Hadi Salehi Estahani e Ali Toossi Ardakani (2002) que justificam a necessidade de intervenção do Estado por razões de ordem ideológica, uma visão mais nacionalista ou retórica socialista, por um lado, por outro, a deficiência das instituições estatais em assegurar determinados direitos e garantias às populações, redistribuindo a renda.

Outrossim, a própria falha do mercado, a ausência de mecanismos institucionais que garantem a iniciativa privada e a ausência, em si, de investimento privado, justificam a necessidade de actuação do Estado na produção, economia, e no sector empresarial, não apenas como regulador, mas também proprietário/empresário.


Sector Empresariais de Eleição para a Intervenção do Estado

Respondendo pela afirmativa a questão feita acima, cabe agora definir os sectores de actividade económica empresarial em que o Estado pode e deve intervir para que o retorno do seu investimento seja melhor garantido, já que a empresa estatal não deve ser percebida apenas como instrumento da política industrial ou social, mas também como um activo cujo valor deve ser protegido e aumentado por seu proprietário- o Estado.


O critério de escolha é determinante para a intervenção estatal no sector económico- empresarial. No caso angolano, embora a lei das empresas públicas não se refere de forma expressa a esses critérios, entendemos que deve ser feita em função daquilo que a própria lei designa por “empresas de interesse estratégico”, ao abrigo da a), art. 12o da LBSEP, que actuam “sem prejuízo do disposto no art. 95.o da Constituição da República de Angola”, em Sectores de Actividade de Reserva Relativa ou Absoluta do Estado; Titularidade de Infra-estruturas de Domínio Exclusivo do Estado; Empresa Importantes para o Cumprimento dos Objectivos Fundamentais do Programa de Desenvolvimento do País; Prestação de Serviços e a Produção de Bens de Utilidade Pública.


Com isso, entendemos estar, teoricamente, limitada a intervenção do Estado-empresário naqueles sectores de actividade económica estratégica, sendo, por isso, os demais sectores de competência dos agentes económicos privados.


Entretanto, mesmo para os sectores económicos estratégicos, como por exemplo, Telecomunicações, Exploração de Recursos Minerais e Florestas, Pescas, Agricultura, Energia e Águas, Construção Civil, Aviação Civil, Estradas, Portos, Pontes, Linhas Férreas, Barragens Hidroeléctricas, etc., sobretudo quando envolvem avultados investimentos (financeiros e patrimoniais), deve o Estado contar também com as parcerias público-privadas a fim de partilhar, não só os riscos envolventes, assim como melhor garantir a obtenção do retorno do investimento e lucros para o seu auto financiamento, conforme prevê, de modo geral, a Lei das Parcerias Público-Privadas (Lei n.o 11/19, de 14 de Maio que revoga a lei Lei n.o 2/11, de 14 de Janeiro).


Factores Impeditivos da Rentabilidade Empresarial Pública

Pensamos estar aqui o âmago da actual privatização de algumas empresas públicas, em relação ao qual não estamos contra tal medida, embora as razões objectivas para sua não rentabilidade e inoperância, na nossa óptica, sejam as que enumeramos abaixo.


Falando da nossa realidade são vários os factores impeditivos da rentabilidade do sector empresarial público, desde logo, os modelos de governação corporativos adoptados (aliás, a propósito, a OCDE-Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico percebendo da ineficiência propôs, em 2005, directrizes para promover melhores práticas de governação na actuação das empresas estatais, considerando a sua importância quer na geração de emprego, quer na geração de receitas fiscais e lucros para o Estado.); O não cumprimento das directrizes das leis que regulamentam o sector (Lei no 11/13, de 3 de Setembro- Lei de Bases do Sector Empresarial Público, a Lei no3/10, de 29 de Março- Lei da Probidade Pública); Ausência de contratos-programa (Art.28o da LBSEP); Ausência de uma verdadeira avaliação, não obstante constar da lei (Art.32o da LBSEP); Integração nos órgãos de gestão de pessoas sem a reconhecida idoneidade, experiência e capacidade técnico-profissional tal como a própria lei prevê (no 4, do art.48o da LBSEP); A promiscuidade ou interferências do Estado ao Estado- empresário (Art.20o da LBSEP); Falta de Estatuto do gestor empresarial público e do Estatuto remuneratório do gestor público; Organogramas empresariais abarrotados de cargos e pessoas; Falta de flexibilidade e criatividade do Estado empreendedor em adaptar o seu Plano de Negócios às alterações do mundo que o rodeia; Desvios de fim; Falta de prestação de contas por parte dos gestores (tentativa fracassada com o extinto Instituto para Supervisão das Empresas Públicas-ISEP.); Não efectivação da obrigatoriedade da realização de auditoria externa às contas e actividades da empresa; Visão retrógrada de que as empresas públicas não devem, essencialmente, prosseguir o lucro, tal como as privadas, são, dentre várias, as razões da ineficiência das empresas públicas e que podem e devem ser invertidas o quanto antes.


Considerações Finais


Embora entre linhas já tenhamos respondido a nossa questão-guia, reafirmamos que sim, o Estado pode auto financiar-se por meio das empresas públicas, criando no âmbito das finanças públicas empresariais as condições necessárias e objectivas que definam políticas de actuação, verdadeiramente, favoráveis a existência de um ambiente de realização de negócios entre os diversos agentes económicos, quer públicos, quer privados.


O Sector Empresarial Público (SEP) pode ajudar a alavancar a economia, uma vez que se mude o seu paradigma de gestão e passa-se a tê-lo como produtor de bens e serviços de qualidade, as suas empresas como uma fonte geradora de receitas fiscais, lucro e empregabilidade, para além da função à qual tem sido, tradicionalmente e apenas visto e relegado ao longo do tempo- a função social.


Para que o Estado se possa financiar por meio do SEP, no actual contexto, deve focalizar-se nas empresas consideradas realmente estratégicas e em alguns casos, até, com participações minoritárias.


Os países desenvolvidos são o maior exemplo da importância da existência e manutenção das empresas públicas (por exemplo serviços essenciais à vida: captação, tratamento e distribuição de água, geração, transmissão e distribuição de energia eléctrica, por serem factores catalisadores de desenvolvimento e poder colocar em risco a economia do País e a sobrevivência das populações, em alguns países são tratados como uma questão estratégica e de segurança nacional o provimento de tais serviços em qualidade e quantidade pelo Estado. Em alguns Estados houve mesmo a “reestatização” por o privado se mostrar pouco sensível e ineficiente às causas públicas.) As empresas públicas têm a função essencial no desenvolvimento de uma sociedade mais justa e igualitária.


Dizer ainda que, as empresas públicas, no caso, angolano contribuíram de forma ímpar, sobretudo em seu processo de industrialização. Por isso, no actual contexto- desafiante, devem continuar a desempenhar o papel estratégico de produção e ampliação das condições estruturais (infra-estruturas e serviços básicos, insumos estratégicos, crédito e investimento) para garantia de um desenvolvimento sustentável do País.


Portanto, nesse quesito, não sendo o Estado-proprietário uma corporação, de per si, condenado ou votado ao fracasso empresarial, não temos dúvidas que o mesmo, enquanto regulador, deve dotar-se de mecanismos e instrumentos de controlo e fiscalização das empresas sob sua tutela, sem conceder privilégios fiscais ou outros (em detrimento das privadas), proporcionando igualdade (conforme a Lei no 5/18 de Maio- Lei da Concorrência.), a transparência, a competitividade, a eficiência e o retorno do investimento feito além de intervir, enquanto pessoa de bem, para garantir os equilíbrios sociais, a equidade, a justiça social e alcançar a dignidade da pessoa humana.


Finalmente, é preciso não generalizar-se a ideia (fatalista) de que basta ser-se empresa pública para tarde ou cedo fracassar. Apesar do quadro legal existente, o problema da eficiência e eficácia reside na efectivação dos mecanismos de acompanhamento, controle e supervisão das empresas públicas, na qualidade técnico-profissional dos seus gestores, assim como na sua impunidade, em caso de gestão danosa, entre outras razões apontadas no decorrer da nossa abordagem.

Bibliografia


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Artigo disponível em https://researchgate.net/publication/51023126_Governaca_corporativa_em_empresas_estatais_a vancos_propostas_e_limitacoes
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Lei no 11/19, de 14 de Maio-Lei Sobre Parcerias Público- Privadas.