Luanda - “Cabinda ao Cunene, mãos dadas, Angola, Angola no coração”. Há anos que os versos e melodias desta música que já se tornou popular assumiram-se como a síntese de um momento de perdão, fraternidade e amor, exempliificado por um dos símbolos mundiais da reconciliação: o abraço. Às vezes como neste clássico “Angola no coração”, de Filipe Mukenga, a reconciliação não acontece de imediato, irmãos se desentendem mãos juntas se soltam e se agridem. Mas se são irmãos, há de chegar a hora de pacificar e reunir.

Fonte: JA

É muito bem-vindo que artistas e fazedores de cultura tenham tido assento e voz na elaboração do Plano de Reconciliação em Memória das Vítimas de Conflitos Políticos. É pelas mãos que escrevem, pintam, esculpem e tocam e pelas vozes que falam e cantam que as melhores intenções vão das cabeças e chegam aos corações, que as melhores realizações saem do papel e vêm para a vida quotidiana. Sem elas, as iniciativas de paz percorrem sempre um caminho mais árduo.


Nenhuma reconciliação é fácil, por mais que seja esperada. Irmãos separados, no fundo, em algum momento, almejam estar juntos novamente. Depois do tempo de ferir, vem o tempo de cicatrizar, do arrependimento e do perdão, de reverenciar quem se foi e comemorar a vida como narra a realidade eclesiástica.


Não há como medir as dores e mágoas de cada irmão ferido. Não há régua nem recompensa que alcance cada dor. Por isso o arrependimento, perdão e reconciliação são as medidas que o homem encontrou em toda sua história para que as pessoas separadas possam se reunir de novo. A reconciliação é uma ponte que refaz caminhos interrompidos. Em algum momento, alguém sempre pode achar que o seu caminho até chegar lá foi mais difícil e sofrido. Mas lá está a ponte que estabelece um caminho de duas mãos entre os lados diferentes.


Não faltarão textos e artigos para explicar a acção da Comissão para a Reconciliação em Memória das Vítimas de Conflitos Políticos. Talvez nem faltem críticas e reparos. Quem sabe possam existir irmãos para quem nenhum gesto proposto atende suas dores. Cabe a estes vir até a ponte e dizer onde ela pode ficar mais firme, mais plana, mais acolhedora.


Não faltam em África exemplos de processos de reconciliação históricos. Talvez o mais fulgurante seja, aqui próximo, na África do Sul pós apartheid. A Paz personificada por Nelson Mandela ganhou reverência internacional, porque parecia ser quase impossível que as feridas causadas pelo regime racista branco pudessem ser cicatrizadas pacificamente. Mas assim foi. Todos precisaram dar ao menos um passo para erigir a ponte.


A União Africana debruça-se sobre o tema do perdão e reconciliação pós-conflito. Infelizmente há muito o que fazer sobre isso no nosso continente riscado à régua no passado colonial, sobre divisões ancestrais.


Também vizinho, não pela geografia, mas pelos laços de língua e amizade, o Brasil encontrou na Amnistia de Agosto de 1979 o começo do reencontro de irmãos. Exilados acusados de crimes políticos espalhados por vários países puderam enfim voltar e se unir ao movimento que acelerou o fim da ditadura militar instituída em 1964.


Por aqui, a iniciativa que gera esta Comissão, abre espaço para a reconciliação do que tenha acontecido entre Novembro de 75 e Abril de 2002, período da guerra civil onde se inscrevem todos os episódios de violência física e espiritual que tenham ocorrido no país. Dar este primeiro passo para a reconciliação exige coragem e serenidade. E claro, um ambiente de respeito pelos direitos humanos e cidadania, o que tem sido desenvolvido pelo Presidente João Lourenço.


De outro lado, se exige pouco. Paz espiritual e social, braços abertos, diálogo convergente e boa vontade para ouvir seus irmãos que por algum motivo estiveram em lados diferentes. Não é necessário mudar crenças políticas, opções religiosas, nem apoiar formações políticas. Pode trazer suas opiniões, críticas, gostos e costumes. E se juntar ao esforço para construir esta ponte, da maneira como puder colaborar.


Numa iniciativa como esta reconciliação, a ponte é representada por parceiros institucionais, ministérios, partidos e organizações da sociedade civil, igrejas reconhecidas, organismos internacionais na criação e auxiliando nas fundações e pilares. Os parceiros institucionais criam e moldam em betão a estrutura do leito que liga duas bordas. E então os artistas, compositores, fazedores de cultura e famílias vêm fazer a pavimentação, deixando o caminho livre e plano para a reconciliação e a reaproximação dos angolanos.


E que esta ponte se materialize num monumento que reverencie a memória. E em melodias, quadros, livros, ou na linguagem pop urbana, em formatos diferentes. E num grande abraço. De Cabinda ao Cunene, mãos dadas, Angola. Angola no coração.

* Director Nacional de Comunicação Institucional. A sua opinião não engaja o MCS