Luanda - Apanhou de surpresa a comunidade católica em Angola a notícia da elevação cardinalícia do antigo Bispo de Saurimo e Benguela, e administrador Apostólico de Cabinda, D. Eugénio Dal Corso. Tenho certeza que ninguém, em Angola, esperava por essa ́ ́estranha ́ ́escolha por parte de Sua Santidade o Papa Francisco. Tratando-se de um assunto de interesse público e tendo em conta as repercussões eclesiais e sociais do catolicismo em Angola, quero aqui partilhar algumas reflexões sobre a oportunidade dessa eleição.

Fonte: Club-k.net

O meu ponto de vista!

1. Quem sãos os Cardeais? Na Idade Média havia Bispos das dioceses ditas sufragâneas da diocese de Roma onde o Papa era (e continua a ser até agora) o Bispo Titular. Esses Bispos juntamente com alguns presbíteros e diáconos de Roma eram conselheiros do Papa e constituíam uma espécie de ́ ́Senado ́ ́ papal segundo o antigo código de direito canónico (CIC 1917). Essa expressão desaparece no actual código de direito canónico (CIC 1983), quiçá pelas conotações políticas com o Senatus Popolusque Romanus (SPQR) do antigo império romano. Só foi a partir do sec.XII que o Romano Pontífice começa a incluir no colégio cardinalício figuras eclesiásticas residentes fora de Roma fossem eles Bispos, presbíteros ou diáconos. Para os leigos da matéria importa esclarecer que a função cardinalícia praticamente não era inerente ao episcopado. Só foi a partir de 1962, com o Papa João XXIII, que todos os Cardeais eleitos passaram a receber a consagração episcopal, tendo-se mantido a tradição até ao presente.


2. Qual é a função dos Cardeais? No âmbito do direito eclesiástico, mais concretamente no actual código de direito canónico (CIC 1983) o capítulo referente aos Cardeais da Igreja romana faz parte do título ́ ́Da autoridade suprema da Igreja ́ ́. O cân. 349 reza o seguinte: «Os Cardeais da Santa Igreja Romana constituem um Colégio peculiar, ao qual compete providenciar à eleição do Romano Pontífice nos termos do direito peculiar; os Cardeais também assistem ao Romano Pontífice quer agindo colegialmente, quando forem convocados para tratar em comum dos assuntos de maior importância, quer individualmente nos vários ofícios que desempenham, prestando auxilio ao Romano Pontífice na solicitude quotidiana da Igreja universal». Praticamente temos duas funções principais:

1) os Cardeais elegem o novo Papa em conclave; 2) os Cardeais ajudam o Papa a governar a Igreja através de ofícios que lhe são atribuídos. Praticamente temos duas categorias de Cardeais: os da cúria romana, isto é, aqueles que se ocupam dos vários dicastérios da Santa Sé (uma espécie de departamentos ministeriais) e os pastoralistas que estão à frente das dioceses ou, em termos técnicos, os ́ ́Ordinários do Lugar ́ ́. Estes fazem parte da ordem presbiteral no contexto das ordens cardinalícias. Entretanto, há que sublinhar que nem todos os Cardeais podem participar do conclave da eleição do Papa em virtude do limite de idade imposto por lei. Também é preciso realçar que a atribuição da dignidade cardinalícia pode ser a titulo territorial ou individual. Explico-me. Certas sedes diocesanas (arcebispados e patriarcados), pela sua importância eclesial e política (capitais de países) adquirem o direito concedido pelo Romano Pontífice de terem sempre um Arcebispo-Cardeal.


Noutros termos, todos os Arcebispos ou Patriarcas que por ali passarem, em princípio, recebem o legado cardinalício depois da morte do predecessor. O exemplo mais próximo para nós é a arquidiocese de Kinshasa. Depois da morte do Cardeal Joseph Malula já teve mais dois Cardeais sucessores (Monsenhores Etsou e Laurent Moussengo). Quanto ao título pessoal, é o caso do nosso Cardeal Alexandre Nascimento. Foi Arcebispo do Lubango e de Luanda. Os seus sucessores nestas arquidioceses não têm direito de sucessão cardinalícia porque o título não está vinculado ao território mas à pessoa. É o mesmo caso de Brazzaville que desde a morte do Cardeal Emile Biayenda, em 1978, nunca mais teve Cardeais. No âmbito das Conferências Episcopais, os Cardeais só têm jurisdição nas suas respectivas dioceses enquanto ́ ́Ordinários do Lugar ́ ́.


De resto, mantêm em relação aos demais Bispos e Arcebispos o direito de precedência protocolar. Nas concelebrações onde participam Bispos e Arcebispos estes normalmente presidem ou então assistem apenas. Muitas vezes a imprensa angolana tratou o Cardeal Alexandre como chefe da Igreja católica em Angola. Grande aberração! Lembro-me que nos anos 90, na minha qualidade de Secretário da CEAST, me foi dada a incumbência de mandar ao jornal de Angola uma nota de esclarecimento a propósito do assunto. Nessa altura o Presidente Jose Eduardo dos Santos havia recebido os bispos da CEAST no Futungo de Belas e o Jornal deu mais ou menos a notícia com este teor: O PR recebeu o Cardeal Alexandre Nascimento no palácio presidencial...O chefe da Igreja católica em Angola fez-se acompanhar pelos Bispos da CEAST...etc. É claro que os demais Bispos não gostaram de serem retrados como acólitos do senhor Cardeal. Daí a reacção que também não caiu bem ao Cardeal. Mas era preciso esse esclarecimento!


3. A minha posição em relação à elevação do D. Dal Corso. Segundo o cân. 351 do código de direito canónico, «Os Cardeais a promover são escolhidos livremente pelo Romano Pontífice, pertencentes pelo menos à ordem do presbiterado, e que se distingam notavelmente pela doutrina, costumes, piedade e prudente resolução dos problemas...» Não tenho qualquer pretensão de colocar em causa esse direito pontifício, mas por aquilo que eu sei essa suposta ́ ́livre escolha ́ ́ do Romano Pontifice tem muito que se lhe diga. Para começar, o Papa não conhece todos os sacerdotes e o respectivo nível de doutrina, os seus costumes, a sua piedade, etc...há sempre algum lobby com interesses nem sempre identificáveis com o evangelo que serve de canal e persuade o Papa a dar o seu voto de confiança. Ademais os tais conselheiros estão lá para isso. Os altos postos do Vaticano são disputados muitas vezes fora dos cânones da moral e do evangelho.

 

No Vaticano estão acoitados verdadeiros abutres que não hesitam em fazer uma eliminação fisica quando os seus interesses estejam em causa. Sabem porquê o Papa Bento XVI resignou?! Se tivesse continuado no posto, talvez já não estava em vida! Para já os italianos têm uma propensão crónica ao carreirismo eclesiástico. Vejam o caso do antigo Núncio Apostólico, Angelo Becciu, pela ascensão meteórica que teve nos últimos anos ascendendo ao grau de Cardeal Prefeito para a Causa dos Santos, mas com muita influência ainda na Secretaria de Estado do Vaticano. Não pensem que foi apenas uma questão de mérito. Também não quero falar dos méritos pessoais do D.Eugénio Dal Corso. Mas creio que a Igreja africana, em geral, e de Angola, em particular, nada ganha com a sua promoção. Aliás é um sacerdote já na reforma. Sempre me bati pela africanização da Igreja no nosso continente na esteira dos teólogos africanos que entendem que a Africa deve assumir a sua própria evangelização com os seus próprios recursos e que os tempos de ́ ́Terra de missão ́ ́ já passaram.


É imperioso escancarar definitivamente as portas para a emancipação da Igreja em África. Infelizmente, o Vaticano continua com o seu paternalismo romano mantendo a Igreja em África ainda num estádio de minoridade e exercendo um controlo cerrado sobre o episcopado africano de quem exige lealdade, fidelidade e submissão incondicional. Na minha opinião não faz sentido ter hoje num país africano, como Angola, um estrangeiro como Cardeal. Se for para ir trabalhar na cúria romana, talvez aí eu aceite, mas se é para dizer que Angola ganhou mais um Cardeal, desculpem-me lá, que isso retira as tais oportunidades ao clero angolano e ao seu episcopado. Aquando da tomada de posse do actual Arcebispo metropolita de Luanda, D. Filomeno do Nascimento, nasceu em certos círculos a expectativa de o verem a ser guindado à dignidade cardinalícia. Ouvi repetidas vezes isso mesmo na comunicação social. Se assim fosse, esconjuro que daria outro peso e prestigio à igreja angolana seguindo o exemplo de outros países africanos onde já não ocorrem nomeações de bispos europeus. Infelizmente, Angola continua a ser terra de recompensas de missionários estrangeiros (e suas respectivas congregações) por deixarem as suas terras, as suas famílias e por consentirem sacrifícios pelo evangelho. No caso de D. Dal Corso, até foi vítima de uma agressão ignóbil em Cabinda, enquanto Administrador Apostólico. Tendo este facto em consideração, como é que eu não vou ver essa promoção como um prémio talvez forjado pelo seu compatriota e amigo Angelo Becciu? In cauda venenum! Poderão vir dizer-me que a Igreja é universal. Óptimo! Bem gostava eu de ver essa universalidade a funcionar no sentido inverso, que fossem nomeados bispos africanos em dioceses europeias e que fossem promovidos Cardeais africanos em países europeus, se exceptuarmos os casos dos Cardeais Gantin (Benin), Robert Sarah (Guiné Conakry) e Francis Arinze (Nigeria), os únicos africanos que conheci na cúria romana. A universalidade não pode ser no sentido único com o pretexto de que a África continua ainda a ser ́ ́Terra de missão ́ ́. Temos de repensar a Igreja em África sem ferir o paradigma teológico da comunhão, mas também sem prejuízo da sua emancipação teológica. Ao novo Purpurado, D. Eugénio Cardeal Dal Corso, desejo votos de fecundo apostolado nessa nova missão como conselheiro do Romano Pontífice.