Luanda - I. Dúvida quanto à incompatibilidade do mandato do deputado com as funções de membro de uma comissão técnica de reestruturação de uma empresa pública

Paira ainda no ar da cidade a dúvida sabre se a função de membro de uma comissão técnica de reestruturação da TPA, empresa pública, ainda que e apenas com a atribuição de consultor, estará ou não abrangida pelo regime de incompatibilidades do mandato do deputado previsto no artigo 82.º/1 da Constituição provisória de Angola. Na minha opinião, a sobredita função está, indubitavelmente, abrangida pelo regime de incompatibilidades do mandato do deputado, pelas razões que passo a explicitar.

 

Fonte: Semanario Angolense

Quem fiscaliza não deve estar ao serviço da pessoa
jurídica que vai ser objecto da acção da fiscalização

II. O regime constitucional de incompatibilidade do mandato do deputado estabelecido no artigo 82.º da Constituição


Sobre o enquadramento doutrinal das incompatibilidades


Sylvio Motta e Gustavo Barchet afirmam que as incompatibilidades visam «assegurar que os membros do Congresso [deputados] gozem de condições mínimas de isenção para o desempenho das funções do mandato» (Curso de Direito Constitucional, Elsevier Editora Ltda, 2008, p. 385). «De facto, ao vedar o exercício pelo congressista [deputado] de determinada função, cargo ou emprego público, ou a prática de certa actividade, simultaneamente com o desempenho do mandato eletivo, a Constituição preserva a função Parlamentar, evitando que o congressista, [evitando que o deputado], valendo-se de sua posição, venha a utilizá-la com objectivos escusos para obter proveitos pessoais, ou se sujeite a pressões do executivo que influenciem seu voto ou sua opinião» (Kildare Gonçalves Carvalho, Direito Constitucional…, 15.ª edição, Del Rey Editora, 2009, p. 1150)

 

As incompatibilidades «hão-de […] ser justificadas por razões relevantes sob o ponto de vista da função e do estatuto dos deputados: garantia da sua independência no exercício do cargo, impossibilidade funcional de acumulação do cargo com outro, etc. Atente-se, todavia, no princípio constitucional da proibição de acumulação de empregos ou cargos públicos […], o que, em princípio (salvo excepção legal pertinente), impedirá o deputado de exercer qualquer outro cargo público, bem como a própria actividade de funcionário público […]» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, 1993, pp. 632-633).

 

Os deputados estão também sujeitos a «impedimentos que se traduzem na proibição dos deputados desempenharem certas funções ou praticarem determinados actos (ex.: perito ou árbitro), nomeadamente em processos em que sejam parte o Estado ou outras pessoas colectivas de direito público» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, 1993, p. 633).


Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, «as incompatibilidades impedem que o cargo de deputado seja exercido simultaneamente com determinados outros cargos, ocupações ou funções. Não impedem a atribuição do mandato, nem a sua subsistência, apenas proíbem o seu desempenho enquanto a situação de incompatibilidade se mantiver. Quem estiver numa situação de incompatibilidade não pode exercer o mandato de deputado» (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, 1993, p. 632).


Sobre o enquadramento normativo-constitucional

 

O artigo 82.º da Constituição provisória estabelece que «o mandato do deputado é incompatível com: a) a função de membro do Governo; b) com empregos remunerados por empresas estrangeiras ou por organizações internacionais; c) com o exercício do cargo de Presidente e membro do Conselho de Administração de sociedades anónimas, sócio-gerente de sociedades por quotas, Director-Geral e Director-Geral Adjunto de empresas públicas.»
Prestando atenção à letra do sobredito artigo da Constituição tudo parece apontar para a exclusão das funções de membro de uma comissão técnica com atribuições apenas de consultoria para uma empresa pública do elenco de incompatibilidades do mandato do deputado. Todavia, tal só assim é na aparência.


Uma das funções do deputado é fiscalizar a acção do executivo (artigos. 105.º/5, 116.º/2, 99.º/2/3/4, 83.º e 101.º da Constituição), e em função do cumprimento ou não das obrigações do Governo, o deputado pode concorrer com o seu voto para a demissão deste órgão do Estado (artigo 88.º/n e 118.º da Constituição):


«O Governo é responsável politicamente perante o Presidente da República e a Assembleia Nacional nos termos estabelecidos pela presente lei.” (artigo 105.º/2 da Constituição). «Os Deputados à Assembleia Nacional podem constituir comissões de inquérito parlamentar para a apreciação dos actos do governo e da administração» (artigo 101.º/1 da Constituição). «Os Deputados da Assembleia Nacional têm o direito, nos termos da Lei Constitucional, do Regimento interno da Assembleia Nacional, de interpelar O Governo ou qualquer dos seus membros, bem como de obter de todos os organismos e empresas públicas a colaboração necessária para o cumprimento das suas tarefas.» (artigo 83.º da Constituição). «O Governo pode estar sujeito a moções de censura votadas pela Assembleia Nacional, sobre a execução do seu programa ou assuntos fundamentais da política governamental, mediante iniciativa apresentada por qualquer grupo parlamentar ou um quarto dos Deputados em efectividade de funções» (artigo 116.º/2 da Constituição). “Compete à Assembleia Nacional: […] votar moções de confiança e de censura ao Governo” (artigo 88.º/n da Constituição). E «dá lugar à demissão do Governo: […] a aprovação de uma moção de censura ao Governo; a não aprovação de um voto de confiança ao Governo.» (artigo 118.º/f/g da Constituição). «O Primeiro-Ministro e os membros do Governo devem comparecer perante o Plenário da Assembleia Nacional, em reuniões marcadas segundo a regularidade definida no Regimento da Assembleia Nacional para responder a perguntas e pedidos de esclarecimento dos Deputados, formulados oralmente ou por escrito.» (artigo 99.º/2 da Constituição). “«O Primeiro-Ministro e os membros do Governo devem comparecer no Plenário da Assembleia Nacional, sempre que estejam em apreciação moções de censura ou de confiança ao Governo e a aprovação do Plano Nacional, do Orçamento Geral do Estado e os respectivos relatórios de execução» (artigo 99.º/3 da Constituição).

 

Da obrigação da fiscalização da acção do Governo decorre a necessidade de isenção e independência do deputado em relação ao executivo, que é concomitantemente uma garantia e um dever a que está sujeito o deputado. Trata-se de uma garantia por o legislador constituinte, no plano do relacionamento inter-orgânico, não obstante a interdependência e a cooperação inter-orgânica, estabelecer a isenção do deputado como um mecanismo que cria um quadro de referência para o cidadão em relação ao comportamento do seu representante. Por outro lado, trata-se de um dever, o deputado não deve entrar em relações jurídico-públicas ou jurídico-privadas que diminuam a eficácia da sua acção fiscalizadora em relação ao Governo, por entretanto se tornar parte interessada em determinada matéria.

 

A nomeação de um deputado para uma comissão técnica de reestruturação de uma empresa pública, indiscutivelmente, torna-o numa parte interessada desse mesmo processo e atinge de morte a sua isenção, distanciamento, independência, necessárias para ajuizar, criticamente, a acção da entidade pública que deve ser fiscalizada. O consultor-deputado sugere soluções, rumos a seguir, regras a observar, que logo a seguir, deverá igualmente avaliar, na qualidade de fiscalizador, se são as mais adequadas e conformes com o interesse público.


Parece, pois, líquido que no plano factual não restam dúvidas em relação à incompatibilidade entre o mandato do deputado e a sua condição de consultor de uma empresa pública, que está sob sua fiscalização, por força da Constituição. Nem tão pouco deve o deputado mandatado a fiscalizar a acção do Governo, administração e empresas públicas, ser nomeado pelo Governo para lhe prestar serviços, mesmo que estes sejam de natureza técnica: por ser factualmente incompatível, violando-se o princípio da separação de poderes (artigo 54.º/c da Constituição). Como pode alguém estar ao serviço de uma pessoa jurídica prestando-lhe serviços e ao mesmo tempo desempenhar a função de fiscal (isento, independente e imparcial) do mérito e legalidade do desempenho dessa mesma pessoa, sendo igualmente certo que tais serviços têm um impacto global na prática dessa pessoa jurídica?
Não havendo dúvidas quanto à incompatibilidade factual, porém, resta a dúvida em relação ao acolhimento constitucional, pelo artigo 82.º/1, desta incompatibilidade, que, entretanto, nele não está consagrada de forma literal. Caberá então essa incompatibilidade factual no espírito do artigo 82.º/1 da Constituição?

 

A razão (o espírito, o fim) pela qual o legislador constituinte cria o regime de incompatibilidades previsto, literalmente, no artigo 82.º/1 da Constituição, está presente, patente, na situação, no caso, de um deputado se tornar membro de uma comissão técnica de reestruturação de uma empresa pública, ainda que e apenas com atribuições de consultoria. Admitindo-se como certa esta abordagem, estamos, indiscutivelmente, perante uma situação de desarmonia entre o espírito da lei e a letra da lei. A letra da lei diz menos do que o espírito da lei no que concerne às situações, aos casos, que por ela devem ser igualmente abrangidos. Isto é, a letra da lei não contempla todas as situações, todos os casos, abrangidos pelo espírito da lei, pelo fim da lei.

 

Sobre o enquadramento doutrinal da interpretação a dar ao artigo 82.º/1 da Constituição
Segundo Kildare Gonçalves Carvalho, «[a]s regras gerais de interpretação das leis em geral são aplicáveis ao Direito Constitucional. Nesse sentido, fala-se em interpretação declarativa, restritiva e extensiva; interpretação gramatical, lógica ou racional, histórica, sistemática e teleológica» (Direito Constitucional…, 15.º edição, Del rey Editora, 2009, p. 337).

 

Quando o espírito da lei e a letra da lei não estão em perfeita harmonia, ou o espírito da lei é mais amplo ou mais estreito do que a letra da lei (ver Inocêncio Galvão Telles, Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra Editora, Volume I, 2001, p. 254), impõe-se nestas circunstâncias uma correcção com o objectivo de adequar o sentido da lei ao pensamento do legislador ajustando as palavras da lei, restringindo o seu sentido ou estendendo-o.
Quando «o legislador adoptou um texto que atraiçoa o seu pensamento, na medida em que diz mais do que aquilo que se pretendia dizer» (João Baptista Machado, Introdução ao Estudo do Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1989, p. 186), deve restringir-se o seu sentido, isto é, deve fazer-se uma interpretação restritiva. Este entendimento funda-se na máxima latina: «cessante ratione legis cessat eius dispositio (lá onde termina a razão de ser da lei termina o seu alcance)».

 

Quando, ao contrário, o legislador adopta um texto que diz menos do que pretendia dizer, o intérprete «alarga ou estende [...] o texto, dando-lhe um alcance conforme o pensamento legislativo, isto é, fazendo corresponder a letra da lei ao espírito da lei [...] a própria razão de ser da lei postula a aplicação a casos que não são directamente abrangidos pela letra da lei mas são abrangidos pela finalidade da mesma» (J. Baptista Machado, Introdução ao Estudo do Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1989, p. 186).

 

A interpretação extensiva baseia-se em dois argumentos. Primeiro, o argumento de identidade de razão (arg. pari): «onde a razão de decidir seja a mesma, a mesma deve ser a decisão». Segundo, o argumento de maioria de razão (arg. a forteriori): «se a lei explicitamente contempla certas situações, para que estabelece certo regime, há-de forçosamente pretender abranger também outra ou outras que, com mais fortes motivos, exigem ou justifiquem aquele regime» (J. Baptista Machado, Introdução ao Estado do Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1989, p. 186).

 

Ademais, com maioria de razão, com o recurso ao princípio da unidade da constituição, princípio da força normativa da constituição e o princípio da máxima efectividade, combinando os artigos 105.º/2, 101.º/1, 116.º/2, 99.º/2/3/4, 83.º, 118.º e 88.º/n, se pode aditar ao regime de incompatibilidades do mandato do deputado previsto no artigo 82.º/1 da Constituição a função do deputado como membro de uma comissão técnica de reestruturação de uma empresa pública.

 

As normas constitucionais devem ser consideradas «como preceitos integrados num sistema interno unitário de normas e princípios» (Canotilho, p. 1224): princípio da unidade da constituição. «[N]a solução dos problemas jurídico-constitucionais deve dar-se prevalência aos pontos de vista que, tendo em conta os pressupostos da constituição (normativa), contribuem para uma eficácia óptima da lei fundamental» (Canotilho, p. 1226): princípio da força normativa da constituição. «[A] uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê» (Canotilho, p. 1224): princípio da máxima efectividade.


III. Conclusão


O Governo é politicamente responsável perante a Assembleia Nacional. A responsabilidade política significa que o Governo deve prestar contas à Assembleia Nacional. Tal assim é por força dos artigos 105.º/1, 101.º/1, 116.º/2, 99.º/2/3/4, 83.º, 118.º e 88.º/n da Constituição.

 

O artigo 82.º/1 da Constituição, que consagra o regime de incompatibilidades do mandato do deputado, não tem no seu elenco, literalmente contemplada, a incompatibilidade do mandato do deputado com as função de membro de comissões técnicas de empresas públicas, ainda que e apenas com a atribuição de consultoria.

 

Todavia, inequivocamente, se pode constar que o espírito, o fim, do artigo 82.º/1, combinado com os artigos 105.º/1, 101.º/1, 116.º/2, 118.º, 88.º/n, 99.º/2/3/4 e 83.º, abrange a incompatibilidade do mandato do deputado com as funções de membro de uma comissão técnica de reestruturação de uma empresa pública, com atribuições de consultoria. Bastará o recurso à interpretação extensiva do artigo 82.º/1 para aplicar o regime de incompatibilidades nele previsto a este e a mais casos de incompatibilidade que caibam no espírito, no fim, deste mesmo artigo.


O recurso à interpretação extensiva é defensável e torna-se indiscutivelmente aplicável ao caso vertente se, concomitantemente, se convocar para o efeito de interpretação os princípios da unidade da constituição, da força normativa da constituição e da máxima efectividade.


Quem fiscaliza não deve estar ao serviço da pessoa jurídica que vai ser objecto da acção da fiscalização!