Luanda - Em Outubro os angolanos ouvirão do Presidente da República a sua análise sobre o Estado da Nação. Antecipo que não será um exercício fácil. Aproveito o facto para expressar a minha opinião sobre algumas questões que considero importantes e actuais sempre com o intuito de contribuir com possíveis soluções.

Fonte: OPSA

Qualquer avaliação ao desempenho do Presidente João Lourenço não pode ignorar a pesada herança recebida. Não se tratou apenas de um cofre vazio. Vazias estavam também as instituições e genericamente a sociedade. Vazias de patriotismo, de interesse público, de boas práticas de governação, de ética e de valores morais. Vazias de ideias. Pouco bem para melhorar e muito mal para corrigir.

 

O país está mudado. As pessoas provaram o doce sabor da liberdade, ainda que os resquícios do passado limitem o seu exercício. É esse novo clima que me permite acreditar num futuro melhor num prazo razoável, assunto que abordarei mais para o fim.

 

A popularidade do Presidente João Lourenço continua elevada pelo clima de liberdade e porque, genericamente, os cidadãos apreciam o que tem estado a ser feito no combate à corrupção, apesar dos variados tipos de obstáculos e principalmente das resistências dos visados. Mas tal popularidade tem vindo a ser abalada por erros cometidos pela sua equipa, que revela com frequência sinais de inexperiência e desorientação e, mais grave, que ainda tem elementos que, objectivamente, estão a remar em sentido oposto.

 

Estes factos estão a minar perigosamente a confiança depositada no Presidente pela maioria ou pelo menos por uma enorme quantidade de quadros que, estando ainda no MPLA ou tendo abandonado a militância, continuam a garantir, com as limitações conhecidas, o funcionamento das instituições públicas e das empresas. O Presidente não pode ignorar este sentimento, que rapidamente está a regredir para a descrença vivida nas últimas décadas. Perder a confiança desses quadros é fatal para a estabilidade do País. Sem confiança não há capital social para os enormes desafios que todos temos pela frente.

 

Vejamos, por exemplo, o caso das autarquias, que depois de surgirem como uma excelente aposta do Presidente, não se sabe como acontecerão e se acontecerão. Por estarmos a menos de um ano das eleições sem a legislação totalmente aprovada, numa altura em que todos os esforços e recursos terão de ser canalizados para a recuperação económica, não me admiraria que surgisse a ideia de um adiamento, o que, a acontecer por decisão exclusiva do MPLA e do seu Executivo, teria repercussões verdadeiramente desastrosas. O partido no poder tem razões para recear maus resultados nas autárquicas fundamentadas na situação crítica que se vive, mas o seu adiamento seria penalizado em quaisquer outras eleições que venham a seguir.

 

Terá o MPLA capacidade para decidir correctamente sobre o assunto? Não me parece. Os resultados do Congresso de Junho foram decepcionantes. Esperava-se uma remodelação profunda do Executivo não só em matéria de novos nomes, capazes de proporcionar maior confiança, mas sobretudo de métodos e práticas. A injecção de juventude, ainda que compreensível e desejável, pode ter os mesmos efeitos da injecção de sangue operário e camponês a que fomos sujeitos em 1980, isto é, nenhuns. Os jovens poderão até ter boa preparação técnica e a irreverência da juventude, mas nem sempre possuem dois atributos fundamentais para enfrentar os desafios do presente: conhecimento do país real e faro ou senso político.

 

Decorridos três meses da realização do Congresso, o Executivo dá mostras de grandes dificuldades. Há vontade política do Presidente, foram aprovadas medidas interessantes como o Plano Integrado de Intervenção nos Municípios (PIIM), o Programa de Apoio ao Crédito (PAC), o Mecanismo de Crédito previsto no Aviso 4/2019 do BNA e Programa Integrado de Desenvolvimento do Comércio Rural (PIDCR), entre outros, que podem fazer aquilo que há muito deveria ter sido feito, isto é, iniciar a retoma económica a partir da agricultura e dos municípios, numa abordagem “botton-up” e nas micro, pequenas e médias empresas que podem contribuir para uma mudança sustentável.

 

Mas a passagem à prática é muito problemática. Vejamos alguns exemplos. O PIIM assenta na realização das obras com recurso a actores locais, mas aparecem vozes a “garantir” que os actores locais não garantem qualidade e rapidez, por isso terão de ser contratados empreiteiros de Luanda ou mesmo do exterior, possivelmente os mesmos que protagonizaram o desastre que estamos com ele. O Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Agrário (FADA) foi reestruturado já duas vezes em três anos e permanece sem estrutura que convença, sem recursos financeiros e sem qualquer actividade. O PIDCR levou pois anos a ser aprovado mas não há perspectivas nem recursos para o seu arranque. O Programa de Transferências Monetárias, destinado a servir de almofada ao choque das medidas acordadas com o FMI junto das populações mais vulneráveis, teria um período experimental para aferição da sua bondade que foi desvirtuado com a colaboração de organismos internacionais que supostamente deveriam ajudar e a complacência das autoridades, começa de modo atabalhoado e dá indicações de que pode não dar certo. Pode tudo isto acontecer?

 

Pode o Executivo continuar a contrair dívida junto dos bancos comerciais e a pagar aos empresários credores apenas um terço do montante acordado com o FMI, ao mesmo tempo que as empresas se queixam que não podem aguentar mais e vão despedir mais trabalhadores e muitas delas mesmo encerrar? Podemos continuar na onda do despesismo como se não houvesse crise, adquirindo viaturas – um fetiche que custa a acreditar que não seja travado – fazendo coisas destituídas de bom senso como o ginásio para os deputados? Podem acontecer episódios como o Bairro dos Ministérios e a Feira de Emprego? Pode um centro de formação de técnicos para o sector de águas concluído há alguns anos em Onga Zanga continuar a degradar-se sem qualquer aproveitamento?


Como é possível continuar a ignorar uma riqueza como a do café que permanece abandonada, quando sem custos em divisas poderia proporcionar empregos, animação económica local e divisas para exportação?

 

O ex-ministro Pitra Neto apresentou recentemente a ideia de um programa de estabilidade e desenvolvimento com participação do que chamou “todas as forças vivas do país”. O jornalista Ismael Mateus defendeu no mês passado uma recuperação da Agenda Nacional de Consenso. Há quem defenda a “reabilitação” da Estratégia 2025 em vez da elaboração de uma nova para o horizonte 2050, uma vez que o País não tem uma linha de base, pois faltam avaliações e estatísticas credíveis e mesmo ideias.

 

Concordo no essencial com estas ideias. Há duas coisas sem as quais o País dificilmente poderá reerguer-se. A primeira é que o MPLA tem de debater seriamente a actual crise, a maior desde o 27 de Maio, embora com características diferentes. Caso contrário estará estrategicamente derrotado. Derrota inconveniente, pois se o MPLA não pode assegurar uma transição sozinho, essa transição não pode ser feita sem o MPLA. O partido tem de exorcizar os seus fantasmas com uma séria discussão sobre a maior doença que o aflige – a corrupção e a impunidade.

 

Comecei a gizar há muito uma ideia – e esta é a segunda coisa – que ganhou corpo com o fracasso da reconstrução e da reconciliação concebidas pelo então Presidente Eduardo dos Santos. Angola precisa de um período de transição suficientemente longo para delinear um projecto nacional inclusivo ancorado numa nova abordagem de desenvolvimento. Daí a esperança num futuro melhor de que falei atrás. As transições políticas são complexas e difíceis de gerir. Não acredito em mudanças com origem num líder, por mais iluminado que seja, nem que venham “de cima”. Mudanças sólidas e duradouras têm de vir dos cidadãos, da sociedade. Os angolanos têm de deixar de perguntar o que o Presidente está a fazer para mudar o país para passarem a perguntar o que cada um faz para mudá-lo, citando John Kennedy.

Fernando Pacheco, 19-9-19
Membro do OPSA