Luanda - Irmão de Sita Valles confirma reunião com ministro angolano mas nega ter louvado a iniciativa de reconciliação iniciada pelo governo: “deve haver identificação de quem é perdoado, isso é o mínimo.” Ao contrário do que saiu no Jornal de Angola, afirma não ter indicado o sobrinho para a comissão.

Fonte: Esquerda.net

A edição na Internet do Jornal de Angola desta quarta-feira  noticia que o advogado Edgar Valles, irmão de Edgar e de Sita Valles, ambos executados em Angola pelo MPLA na sequência dos acontecimentos do 27 de Maio de 1977, louvou a iniciativa do governo angolano de “reconciliação e homenagem às vítimas dos conflitos em Angola.”

Ouvido pelo Esquerda.net, Edgar Valles confirma que se reuniu com o ministro da Justiça e dos Direitos Humanos de Angola, Francisco Queiroz, a pedido deste, durante uma passagem por Lisboa a caminho de uma reunião dos ministros da Justiça da CPLP.

“Foi uma reunião muito cordial, de cerca de uma hora, mas eu não ‘louvei’ a iniciativa. Uma coisa é dizer que se acha positivo, outra coisa é louvar. Eu disse que considerava positivo que o atual governo tivesse avançado com esta proposta de reconciliação. Mas insisti que só pode haver verdadeira reconciliação e um perdão se houver um esclarecimento do que se passou, se forem identificados os responsáveis pela matança – até usei esse termo –, e se quem perdoa souber a quem está a perdoar e quem está a ser perdoado tiver o efetivo remorso.”

Carta pede identificação e devolução dos restos mortais de Sita e Ademar

Edgar Valles endereçou uma carta ao ministro, que é também o presidente da Comissão para Implementação do Plano de Reconciliação Em Memória das Vítimas de Conflitos Políticos, em que requer “a localização, identificação e devolução dos restos mortais de seus irmãos Edgar Ademar e Sita Maria”, bem como “a identificação dos algozes e dos responsáveis políticos pelos assassinatos ocorridos”, e ainda “o total esclarecimento das circunstâncias que rodearam os acontecimentos bem como a reposição da Verdade Histórica.” (Leia, a carta de Edgar Valles, na íntegra).

Recorde-se que em maio deste ano, o governo do presidente de Angola, João Lourenço, anunciou a decisão de criar uma Comissão de Reconciliação em Memória das Vítimas de Conflitos Políticos, sem distinguir as vítimas que resultaram do conflito armado pelo qual o país passou até 4 de abril de 2002, das vítimas decorrentes do 27 de Maio de 1977.


O 27 de Maio foi um episódio militar-civil em que os seguidores do dirigente do MPLA Nito Alves foram esmagados pelas tropas cubanas então estacionadas em Luanda, a pedido do presidente Agostinho Neto. Deu origem a uma espiral de violência e execuções sumárias que custaram a vida a dezenas de milhares de angolanos (o número mais citado é o de 30 mil vítimas) na capital e em todo o país.

 

Na carta, Edgar Valles recorda que “ambos os seus irmãos, em especial a Sita Maria, se empenharam generosamente na fase final luta de libertação nacional, que culminou na independência de Angola, em 11 de novembro de 1975, e no subsequente período de Reconstrução Nacional”. Porém, “na sequência dos acontecimentos de 27 de maio de 1977”, Sita e Edgar Valles foram assassinados, “sem que lhes fosse dada a mínima oportunidade de defesa, designadamente sem julgamento, com violação dos mais elementares direitos humanos, a exemplo, aliás, do sucedido a cerca de 30 000 vítimas (conforme números da insuspeita Amnistia Internacional, reconhecidos pelo regime angolano)”.

Recomendações da OUA

Ao Esquerda.net, Edgar Valles explicou que um documento da União Africana (antiga OUA) sobre as políticas de perdão relativamente aos conflitos em África contém recomendações no sentido, precisamente, de “haver averiguações para identificação dos responsáveis, haver identificação de quem é perdoado, e o efetivo remorso de quem praticou os crimes. Ou seja: não há uma punição em termos de penas de prisão nem de castigos, mas isto é um mínimo.”

“O que eu disse ao ministro”, explicou Edgar Valles, “é que embora fosse positiva, a iniciativa é muito limitada. Há um perdão genérico e abstrato para se pôr uma esponja sobre o assunto e não voltar a haver incómodo para o governo. E, por isso, considerava que era essencial ir mais além.”

O ministro reconheceu que isso foi feito na África do Sul, mas que lá era fácil identificar os responsáveis, porque eram, no fundo, os que estavam ligados ao Apartheid, enquanto que em Angola seria a palavra de um contra a palavra de outro.

Edgar Valles reconheceu haver esse risco, mas, argumentou, “consegue-se, através de uma comissão de inquérito apurar responsabilidades. E como ninguém vai matar ninguém, ao contrário do que sucedeu há 40 e tal anos, e nem sequer vai haver penas de prisão, o risco de haver falsas acusações é mínimo. E tem de haver coragem do governo.”

Edgar Valles argumentou ainda não ser necessário que os trabalhos da comissão terminem num mês: “Podem ser aprofundados à medida em que se consolide o poder do atual presidente. Isto é um processo que não tem de começar num dia e acabar noutro.”


O ministro convidou então Valles a participar na Comissão, mas este explicou que lhe seria impossível, dado estar a viver e a trabalhar em Lisboa. O ministro insistiu, pedindo uma indicação e sugerindo que indicasse João Ernesto Valles Van Dunem, filho de Sita Valles e José Van Dunem, professor da Universidade Católica e que encabeçou recentemente um manifesto dos órfãos das vítimas do 27 de Maio. “Eu respondi que não indico, porque compete a ele decidir se quer participar ou não, esta participação é livre. Compete a ele essa decisão. Agora li no artigo do Jornal de Angola o oposto: que indiquei o meu sobrinho para a comissão. Isso é muito desagradável.”