Luanda - Antes de descer à campa fria sob pazadas de terra lançadas pelos familiares e amigos, o defunto parecia escutar com serenidade imensa os elogios da praxe! Esvoaçavam ao vento frio que soprava forte no alto de Camarate os alvos cetins que antes o envolviam, quais asas batendo na pressa de levantar voo levando consigo o amortalhado como se fosse sua vontade sumir dali para as alturas procurando o rumo sul em direcção à sua pátria tão amada. Era bem certo que não estávamos em Angola mas tudo à volta com ela se parecia, rodeado como estava da sua vasta descendência, o mais velho Jaime Araújo.

Fonte: darkhorsetail.com

Não resisti no meu discurso fúnebre de o comparar ao patriarca Abraão a quem Deus não prometeu que viveria para sempre mas uma descendência tão numerosa quanto as estrelas do céu e as areias da praia e do mar. Apesar de tanta obra realizada por palavras e acções, discursos e associações, a sua posteridade constituída por dez filhos, mais de quarenta netos já ultrapassada a meia centena de bisnetos e nem sei quantos tetranetos, número em constante evolução de ano para ano, é com certeza o seu maior e mais visível legado. Mesmo para quem quase atingiu a idade bíblica dos cem anos todos aqueles seus familiares vindos de várias partes do mundo para a última despedida reunidos à sua volta para um último beijo, um derradeiro afago, inundaram com o seu calor africano a terra portuguesa revolvida para o acolher.


Não podia, porém, deixar de evocar os momentos em que os nossos caminhos se cruzaram ao longo dos últimos 60 anos! O nosso primeiro encontro foi em 1958, quando o Jaime, então nos seus 38 anos e eu com os meus 17, frequentámos e nos diplomámos juntos no primeiro curso de jornalismo realizado em Luanda. Quando anos mais tarde voltei de Coimbra, com a minha formatura em direito foi em mim que o Jaime confiou a causa judicial da sua vida, uma acção de indemnização contra o Estado por usurpação de terrenos que pertenciam à sua família por várias gerações, acção que foi ganha em 1974 um ano antes da independência, e que veio dar uma folga financeira a todos os Araújos incluindo o seu advogado!


Voltei a encontrar o Jaime em Kinshasa, no bureau político da FNLA quando ali fui em fins de Janeiro de 1975, logo após a assinatura dos Acordos de Alvor e em consequência destes Acordos que nos colocava perante uma dupla opção: não bastaria preferir ser angolano ainda seria preciso escolher um dos três movimentos de libertação todos eles em pé de igual legitimidade. Foi mais uma coincidência nas nossas vidas, estar ali a falar para ele, os seus descendentes e muitos amigos no cemitério de Camarate.

O Jaime Araújo é ainda personagem de dois livros que escrevi, “Os meus dias da independência” e “Descompasso” por cujas páginas perpassam vários passos do longa caminhada do Jaime de Araújo contracenando desde os seus tempos de estudante do Liceu Salvador Correia com Simão Toco e com António Agostinho Neto (como ele sempre chamava ao primeiro presidente de Angola), e muito mais tarde com Holden Roberto, Daniel Chipenda, Jonas Savimbi assim como com outros dirigentes da Angola independente dos primeiros tempos. Terminados os seus estudos liceais Jaime de Araújo, por carência de meios, não pôde seguir um curso universitário como seria a sua vocação, tendo de se contentar em prosseguir os seus estudos de enfermagem no Hospital Maria Pia em Luanda onde se diplomou em 1948. Estava eu a dar os meus primeiros passos na instrução primária. Por essa altura já o Jaime era um sonhador da libertação de Angola, um sonho que nunca o abandonou até ao fim da sua longa vida porque a libertação do colonialismo era apenas a primeira fase dessa almejada libertação dos angolanos, pois pela frente havia muitas outras batalhas a travar contra a ignorância e as doenças, pela ascensão social e pelo desenvolvimento do nosso país. Ele fazia justiça a muitos angolanos que não tendo ido para as matas foram guerrilheiros de caneta em punho, vertendo em verso e em prosa rios de tinta que nasciam no mais profundo do seu coração correndo para o coração dos angolanos mais desfavorecidos. Muitos desses vultos que passaram pela Liga Nacional Africana e pela Anangola foram revisitados por Jaime Araújo em muitos dos seus escritos e particularmente no seu “Caminho Longo” que me deu a ler e para o qual escrevi a seu pedido um rascunho de prefácio. Nele, Jaime de Araújo vai revelando um caminho que não descreve por etapas precisas e bem delineadas mas é antes um percurso iluminado por súbitos clarões que, tal como relâmpagos na noite, descobrem silhuetas para logo as confundirem com a escuridão. São relâmpagos da memória de alguém que bebeu muita água da chuva e recorda, solitariamente sentado tranquilamente à porta da sua velha casa, as tempestades por onde andou.


Cada relâmpago da sua memória descobria vultos de figuras mais ou menos esquecidas da nossa luta pela independência, recortadas em flash back como peregrinos da história, condenados a vaguear errantemente pela mente de quem assim os recordava, atalhos para uma eternidade que não deveria nem poderá ficar confinada à memória de quem ia já a caminho dos cem anos.


Por isso mesmo, pensei que, para além da sua prole, Jaime Araújo quis trazer para a posteridade, todos os que viveram e lutaram na esperança da liberdade para assegurar a tantos descendentes, uma terra melhor do que essa Angola antiga em que aqueles imprimiram os seus passos.


Jaime de Araújo, como uma velha biblioteca ardente, com patriótica teimosia, consumiu-se em si mesmo para transmitir, como um farol no quase perdido horizonte, a sua mensagem luminosa de aviso à navegação, sem deixar de emitir os seus sinais de gratidão aos muitos que deram forma e sentido ao longo caminho, finalmente percorrido. Foi longo o percurso desde os tempos do jovem que com Aníbal de Melo e Mário de Alcântara Monteiro fundou o Farolim, jornal de que foi editor e administrador em 1953 e 1954. Contudo, até aos seus últimos momentos de vida conservou a luz que sempre, com a maior veemência, nos quis transmitir. O seu rosto adormecido parecia ainda sonhar com os trabalhos de Hércules que Angola ainda tem de enfrentar no caminho dos seu progresso e não atormentado com o pesadelo dos constantes trabalhos de Sísifo que toda a sua vida quis travar. Gostaria que ele não descansasse em paz até tudo isso acontecer na terra que o viu nascer que não foi aquela que, tal como Abraão, o viu morrer.

(Onofre dos Santos)