Luanda - O movimento (melhor, os movimentos) de contestação em Cabinda, contra a eventual “colonização” de Angola, viu em Acra, no Ghana, a criação de mais uma associação de luta pela “autodeterminação” daquela província angolana, designado por Alto Conselho de Cabinda (ACC). Será este mais um mero capítulo na história do associativismo da elite católica, cívica e paramilitar em Cabinda?

Fonte: ilgeopolitico.org


O recém-lançado Alto Conselho de Cabinda (ACC), em Acra, Ghana, em Novembro do ano corrente, soma-se a inúmeras organizações, associações, movimentos e frentes que se batem pela autodeterminação de Cabinda. Durante o encontro, o ACC indicou como seu presidente, o padre Félix Roberto Cubola, que foi imediatamente afastado do seu sacerdócio pelo Bispo de Cabinda, Dom Belmiro Chissengueti.


Vale ressaltar que a suspensão de padres católicos do exercício sacerdotal, em Cabinda, é deveras recorrente. Em 2009, o padre Raúl Tati terá sido exonerado das suas funções religiosas, por alegados desentendimentos como o então bispo de Cabinda, Dom Filomeno Vieira Dias. Já em 2011, foi a vez do padre Jorge Casimiro Congo, passando a liderar a chamada Igreja Católica das Américas, eventualmente deslegitimada pela CEAST e encerrada pelas autoridades, em 2017. Na altura, o bispo cabo-verdiano, Cupertino Teixeira, que ordenava diáconos da referida igreja, lhe fora questionada a sua idoneidade e designado como “falso bispo” pela CEAST.


O que têm em comum essas três suspensões é, claramente, o activismo cívico e político para a autodeterminação daquela província, que colide com a actividade sacerdotal típica de padres e servidores do poder espiritual, num Estado – o angolano – onde vigora o princípio da laicidade, ou se quiserem, o da separação entre o Estado e a Igreja.


Numa escala maior, diga-se que a elite independentista de Cabinda foi sempre órfã da coesão dos seus vários movimentos, vítima das suas lutas intestinais, e enferma da crise de legitimidade e de representatividade de todos os povos de Cabinda, suas aspirações identitárias e de angolanidade, o que condicionaram e condicionarão a qualidade da sua luta e a veracidade dos seus propósitos.


Relativamente à falta de coesão, denota-se que além do activismo religioso, o movimento de autodeterminação de Cabinda é, igualmente, caracterizado pela componente paramilitar, isto é, o Comando Militar para a Libertação de Cabinda, criado na década de 1970. A própria FLEC surgiu na década de 1960 fruto da fusão de vários grupos e associações locais (AREC-Associação dos Originários de Enclave de Cabinda; o MLEC-Movimento para a Libertação de Cabinda; a CAUNC-Comissão de Acção da União Nacional dos Cabindas, entre outros) que já, nesse período, exigiam às autoridades portuguesas à independência de Cabinda. Segundo Eugénio Costa Almeida, a “20 de Dezembro de 1960, a AREC faz circular em Cabinda um manifesto anti-europeu onde, pela primeira vez, o MLEC(...) que pouco dias depois endereça um memorando a diversas entidades oficiais de Portugal reclamando a independência” (Cfr. Almeida, 2013, p. 10).


Todavia, as várias divergências e facções no seio da frente, que apregoavam entre a autonomia do governo central de Luanda e a independência, resultariam no desmembramento desta organização e no surgimento de várias células, entre as mais destacadas constavam a FLEC-N’Zita, FLEC-Franque e FLEC-Lubota, liderado por cada umas dessas figuras, que não se reconheciam mutuamente. O ápice dessa divergência aconteceu em meados de anos 1990, quando surgiram a FLEC-FAC (Forças Armadas de Cabinda), que abraçou a luta armada para a independência de Cabinda de Angola, bem como a FLEC-Renovada.

Já em relação à crise de legitimidade, esta pode residir na constante criação e sobreposição de missão de associações, que se auto-anulam ao longo da sua existência. Por exemplo, na Holanda, em meados de 2000, foi criada a FLEC-Frente de Libertação do Estado de Cabinda, na mesma altura em que o Fórum Cabindês para o Diálogo era apontado como o único representante para negociar com o governo angolano o Memorando Entendimento para a Paz e Reconciliação em Cabinda, assinado entre o governo angolano e António Bento Bembe, que passou a assumir, desde logo, a pasta de Secretário de Estado para os Direitos Humanos; para não mencionar a já extinta organização cívica Mpalabanda, cujo porta-voz era o até pouco tempo vice presidente da UNITA e deputado, Raúl Danda.


Como se não bastasse, segundo o seu vice-presidente, Belchor Lanzi Tati, o Alto Conselho de Cabinda se propõe como alternativa ao Fórum Cabindês para o Diálogo (FCP), signatário dos acordos com o governo angolano, o que, em outras palavras, significa, no seu entender, a invalidação dos acordos rubricados em 2006, e dai o ACC ser o novo actor “legítimo” para (re)começar mais um ciclo de negociações, o qual seguramente será substituído por mais uma nova associação, num esforço perpétuo de avanços e recuos inúteis.


Essa proliferação de tais associações levanta, naturalmente, o problema da legitimidade dos seus integrantes. Por exemplo, quer o ex-padre Tati, quer o ex-padre Congo servem hoje o Estado angolano, sendo o primeiro um deputado à assembleia nacional, e o segundo delegado provincial da Educação em Cabinda. Acto contínuo, o exílio auto-imposto de figuras históricas da FLEC em França, na Bélgica, nos Países Baixos, e noutras paragens, levanta dúvidas se, de facto, as reivindicações autonomistas que defenderam – e defendem – não são meros instrumentos para auto-promoção de uma causa que não tem bases sociológicas, antropológicas, culturais e até jurídicas para vincar.


Ora, para os independentistas de Cabinda, por via do Acordo de Simulambuco, assinado em 1 de Fevereiro de 1885, o território de Cabinda deveria ser um Estado em si, não podendo com isso ser integrado dentro do território e da soberania de Angola, pois o mesmo estaria sob o protectorado de Portugal à altura da proclamação da independência nacional de Angola, possuindo uma especificidade própria, por não ter continuidade territorial com o resto do país.


Contudo, o referido acordo colonial e a aludida especificidade de Cabinda suscitam, hoje, várias interpretações sobre a sua validade histórica, a legitimidade jurídica, bem como o significado objectivo da especificidade de Cabinda.

Em primeiro lugar, na década de 1960, o MLEC terá defendido à suspensão do protectorado, todavia, as correntes actuais, pelo contrário, buscam a legitimidade das suas lutas cívicas, religiosas, políticas e paramilitares no mesmo tratado que fora suspendido, pelo menos ao nível teórico, pelos pais fundadores do activismo cabindês.
Em segundo lugar, o tratado de Simulambuco, por si só, é eivado de várias incertezas históricas sobre a legitimidade dos seus signatários, sobretudo pela parte portuguesa, isto é, se o capitão-tenente Guilherme Augusto de Brito Capelo, possuía plenos poderes dado-lhos pelo Rei de Portugal, Luís I. Hoje, os historiadores são cautos em afirmar que efectivamente o capitão-tenente Capelo tivesse plenos poderes para assinar em nome de Portugal protectorado com os soberanos de Ngoyo, Kakongo e Loango, porquanto até hoje não foram encontrados nos arquivos cópias ou originais de plenos poderes assinados pela majestade portuguesa.
Em terceiro lugar, e paradoxalmente, o referido tratado fora convalidado no âmbito da conferência de Berlim, de 1884-1885, pois a Portugal foi reconhecida a presença histórica nos territórios que hoje compreendem a província de Cabinda.


Em quarto lugar, todavia, o artigo I, dos XI que compõe o acordo de protectorado, afirma que “Os príncipes e mais chefes do país, e seus sucessores, declaram, voluntariamente, reconhecer a soberania de Portugal, colocando sob o protectorado desta Nação todos os territórios por eles governados”.

Ora, em nosso entender, ao menos que os actuais independentistas são herdeiros directos dos vários reinos signatários do Simulambuco, não gozariam de legitimidade material para promover luta alguma para a autodeterminação de Cabinda.


As autoridades angolanas deveriam passar a exigir títulos de nobreza e afins aos que se proclamam representantes de Cabinda, desde que fundam a sua luta no protectorado de Simulambuco, pois sem tais títulos, a sua luta é priva de sentido histórico. Na eventualidade de apresentação e confirmação da validade de tais títulos, seria passo sucessivo a determinação das relações de vassalagem que os reinos signatários tinham perante o reino do Kongo, cuja parte de território que compreende o corredor norte forma, hoje, o Estado angolano.


Em quinto lugar, comparativamente a Crimeia, cuja reintegração à Rússia, em 2014, é vista por alguns chanceleres europeus como uma anexação ilegal, na verdade, afirmar tal hipotética ilegalidade é o mesmo que legitimar a decisão de Nikita Cruscev, que em 1954, decidiu a sua cedência à Ucrânia.


Ora, fazendo jus à luta dos pais independentistas africanos, que se bateram pelas nossas independências, a corrente luta intelectual, cultural e económica para o abate de fronteiras em África, pois criadas artificialmente pelos ex-colonizadores, hoje, os intelectuais angolanos e africanos que apoiam os movimentos secessionistas dentro dos territórios nacionais (em estado actual) simplesmente, legitimam a conferência de Berlim de 1885, e a partilha de África havida naquele conclave em prejuízo dos africanos, sua história e progresso.


Em sexto lugar, a aludida especificidade de Cabinda é uma falácia histórica, na medida em que é baseada na descontinuidade geográfica derivada dos acordos adicionais assinados em Julho de 1913 entre Portugal e a Bélgica, que exigia uma saída ao mar para o Congo (hoje RDC). Isso por si só, configurou uma grave violação do artigo III do Acordo de Simulambuco, que obrigava Portugal a manter a integridade dos territórios sob sua protecção.


Em sétimo lugar, porém, é lícita a luta cívica para a promoção dos direitos económicos e da justiça distributiva em Cabinda, assim como nas demais províncias de Angola, e mesmo até cívicos e políticos, isto é, é chegada a hora que as populações de Cabinda criem seus partidos políticos para disputarem o poder político em Angola em paridade de oportunidades com todos os demais partidos políticos existentes na nossa praça política.


Em oitavo lugar, as autoridades angolanas devem trabalhar mais e melhor para instituir um orçamento que seja proporcional ao contributo fiscal e das receitas da exploração dos minérios em províncias como Cabinda e nas Lundas, onde é igualmente presente um elevado sentimento de emancipação fruto da elevada pobreza e abandono a que está votado o povo Lunda. Como Cabinda, também os dignitários Lundas assinaram vários protectorados com Portugal de 1884 a 1894, que estão na base de reivindicações autonomistas.


Enfim, num mundo cada vez mais integrado, com centros de poderes mundiais difusos, numa multipolaridade maleável e incerta, os Estados receiam em apoiar movimentos separatistas com a regularidade típica dos anos 1960-1990. Por conseguinte, os independentistas de Cabinda deveriam efectuar um revisionismo às suas pretensões e abraçar a via do destino comum, em que as fronteiras são abatidas, o desenvolvimento económico e a prosperidade dos africanos é a meta a ser alcançada por todos.