Luanda - Depois da descoberta do nosso “holocausto financeiro”, muito provavelmente ainda não conseguimos diagnosticar, em toda a linha, a dimensão dos estragos materiais e, sobretudo, éticos e morais, provocados pela “armada” de salteadores que, nas últimas duas décadas, esquartejou e abocanhou, a retalho, as riquezas de Angola.

Fonte: NJ

Na ressaca deste naufrágio, estamos agora, a pele e osso, perante a tormenta de estragos que, afinal, foram meticulosamente estudadas com décadas de antecedência.

 

Estragos que foram cuidadosamente preparados, oleados e ensaiados em máquinas de calcular especialmente encomendadas para fazer contas de subtrair ao… Estado.

 

Foram tão bem preparados que, já pouco se lembram, mas, aqui há alguns anos, por entre as misteriosas paredes do Palácio, ecoou esta celebre frase: “isto tudo vai ser nosso”!

 

Lubrificadas as mentes indígenas, Mobutu, Denis Sassou N´Guessou, Paul Bya, Teodoro N´Guema e outros comparsas com mais ou menos tiques ditatoriais, levando várias voltas de avanço, passaram a dispor aqui de um laboratório ideal para proveitoso estágio.

 

Com o império por aqui nas mãos de divina clique, “isto tudo, na verdade, passou a ser deles”! Temporariamente deles.

 

Até ao dia em que, em vésperas de um novo ciclo, nas barbas de um novo candidato ao trono, a parte de leão do bolo, foi entregue de bandeja aos herdeiros da coroa e seus apêndices.

 

Até ao dia em que, instituído o jogo de espelhos, depois de ter driblado tudo e todos, subestimando o sucessor, José Eduardo dos Santos acabou por fintar-se a si próprio e por marcar, no último minuto, um auto-golo que viria a ser irremediavelmente fatal para o resto da sua carreira política.

 

Até ao dia em que, perante evidentes sinais de refinado autocratismo, os cidadãos, cansados de insuportável enxovalho, começaram a pôr em causa um sistema que havia enjaulado a justiça, entortado o Estado de direito, degolado o mercado e asfixiado as liberdades democráticas.

 

Até ao dia em que, no auge da paranóia política, com a manada vergada ao culto de uma personalidade cega pelo poder, este não quis perceber que o cabrito onde estava amarrado tinha as cordas tão frágeis que, a qualquer momento, poderiam rebentar como, de resto, acabaram por rebentar…

 

Até ao dia em que não quis perceber que a subida ao castelo para o assalto final estava a ser feita através de paredes movediças. Até ao dia em que não quis perceber que o caminho para o pote era cada vez mais estreito e escorregadio.

 

Até ao dia em que não quis perceber que estava em andamento uma mudança irreversível.

 

Ou que essa mudança, como consequência do desvario governativo instalado sob a sua liderança, poderia trazer consigo sobressalto, medo, esperança e espanto.

 

Ou ainda que, com o reinado a definhar, a partir daí, nada mais seria como dantes…

 

Com o poder a ruir, a manutenção do controlo das chaves do cofre transformada numa verdadeira obsessão do clã do reino, passou a ser alvo da sua piedosa perseguição.

 

Passamos a estar diante de uma patologia que ameaçava ser incurável. O trapo em volto em lixívia não tardaria em debotar. Com o desnorte à vista, o pior estava para ir.

 

E veio a partir do momento em que os novos poderes instituídos decidiram retirar à poderosa oligarquia o acesso à colmeia, deixando o seu braço esticado com maçaneta no ar…

 

O fim do descalabro impunha uma mudança do estilo de vida, mas essa mudança de vida, afinal, não fazia parte da agenda de quem, no passado, de forma perversa, havia transformado o Estado num tesouro privado.

 

Reposta a normalidade, com a perda do antigo “status quo”, alguns membros do clã outrora reinante, parecem ter incorporado o vírus jihadista e, como dizia amigo de amigo meu, estão a espalhar a raiva como a sua nova forma de prova de vida…

 

Destapado o batom que embalsamava a “ditadura democrática” e embriagava manada, a legião de órfãos de 1.ª classe, sente-se agora traída ao ver exposta na praça pública a sua veia cleptocrática e a sua patológica propensão para a mentira e sobretudo a birra e a arrogância.

 

Tão arrogante e embirrenta é essa sua propensão que, ao apresentar-se em palco, ela julgava-se possuidora de dons especiais para se eternizar na quadra de jogo como eterna dona da bola.

 

Alicerçando a sua fúria numa estratégia de comunicação desastrosa e disparando contra tudo e contra todos, os rebentos mais espalhafatosos da tribo, não aprenderam com a história.

 

Pena é que, na visão do príncipe da corte importado do Congo Kinshasa, não havendo nada que impeça o Estado de financiar empresas privadas, já a recuperação pelo Estado do lucro que lhe é devido mas que fora canalizado exclusivamente para a parte privada, tenha de ser visto como um acto de perseguição política…

 

A mesma perseguição política que não foi vista quando, começando por arrastar o lixo da Elisal, o casal deu início a escalada de apropriação familiar de negócios do Estado favorecidos a céu aberto pelo patrono do clã…

 

A mesma perseguição política que esteve na base da indicação pelo pai de Isabel dos Santos para gerir a Sonangol com o intuito exclusivo de se apoderar do rasto de crimes financeiros que por ali foram cometidos mas que, em última instância, foram sempre caucionados por célebre assinatura em casa…

 

Ao decidirem agora fazer do Estado um verdadeiro polígono do tiro, não há ninguém, pelos vistos, que trave o seu ímpeto eleitoralista. Teremos assim em breve dos galos vinculados por meia dose de sangue, a digladiarem-se no mesmo poleiro. Nada a fazer…

 

Se esta é uma etapa superior do apogeu do manicómio político em que se pretende transformar o país, no combate à corrupção, há, porém, que preservar valores que não tendam para a vandalização da vida política.

 

Pode-se não estar de acordo com Isabel dos Santos, mas não se pode pretender montar um cordão sanitário à sua volta, convertendo-a em inimiga de estimação da nação.

 

Ao discordarmos das suas futuras opções políticas ou partidárias, não se pode perder de vista as operações de cosmética registadas ao nível do MPLA com a conversão em figuras de proa da sua cúpula, de antigos altos dirigentes provenientes de agremiações em vias de extinção como FNLA.

 

Ou porventura já não há memória relativamente à volta de 360 graus que deu Jorge Valentim, antigo braço direito de Jonas Savimbi na UNITA, para se transformar hoje em dirigente regional do MPLA?

 

O recurso a métodos de guerrilha propagandística dos anos 70 não dignifica a política e retira credibilidade à essência do combate democrático.

 

Se o uso da mentira, da manipulação e da autopromoção contribuem para acentuar a impreparação de Isabel dos Santos para sustentar com argumentos consistentes a sua causa, em contrapartida, o recurso ao insulto, à ofensa e ao ódio, revelam tudo o que o país não precisa.

 

Entregue à justiça deve deixar-se o caso ser escortinado pelos tribunais. Sem esquecer que até prova em contrário e estando em causa apenas uma simples providência cautelar, Isabel dos Santos goza de presunção da inocência.

 

Sem esquecer que, numa disputa arbitral, adoptando os tribunais lá fora critérios de apreciação diferentes dos que são aplicados em Angola, a decisão final pode vir a não satisfazer os interesses do Estado.

 

Sem esquecer ainda que há apetites que precisam de ser refreados, pois, não podendo o nosso Parlamento ser transformado num casino, a política entre nós não deve também aplicar a máxima… quem ganha, ganha tudo, quem perde, perde tudo!

 

Sem esquecer finalmente o que acontecerá se José Eduardo dos Santos, submetido até agora a um silêncio absoluto, decidir, como começa a dar indícios, abrir completamente o livro?

 

Sendo actor e cúmplice do cortejo de arbitrariedades e da vasta teia de roubos que deram origem ao enriquecimento ilícito da maioria dos representantes da nossa elite política, empresarial e militar, acabará por vir a ser a principal vitima da sua própria confissão.

 

Mas é bom não ignorar que, em seu redor, não sobrará pedra sobre pedra! E que, ao vir a perder a paciência, José Eduardo dos Santos poderá vir a provocar um verdadeiro “tsunami” susceptivel de pôr em causa tudo e todos!

 

Neste cenário, que ameaça galgar terreno, fica, pois, coberta de plena sensatez a advertência feita por Manuel Vicente: “não haverá vencedores.” Ainda vamos a tempo de pensar nisso…

 

Assim como vamos a tempo também de não nos esquecermos que o Estado não pode ficar refém de quem outrora se recusou a devolver recursos ilicitamente adquiridos a partir de fundos públicos.

 

Assim como vamos a tempo ainda de concluir que a solução deste dossier passa pela procura voluntária da justiça por parte daqueles que tiraram o que não deviam e que, em tempo devido, se “esqueceram” de devolver ao Estado.

 

Ficar à espera que Sr. José, que viu um filho preso e os restantes fugidos, faça por eles outra vez não é justo. É cobardia. Angola merece mais.

Gustavo Costa
17.01.2020