"Não dá para atribuir a esses conflitos uma dimensão étnica. Não é xenofobia. Nem no Zimbábue, nem na Zâmbia, nem em Moçambique e nem na África do Sul", disse Hernandez, que também é autora do livro "A África na Sala de Aula: Visita à História Contemporânea", em entrevista à Folha Online.


Para a professora, a questão envolve motivos econômicos, trabalhistas, sociais e políticos. "Os migrantes procuram melhores condições de vida", diz.

Segundo Hernandez, os imigrantes de outras partes da África vão para a África do Sul em busca de trabalho, fixam-se nos arredores de Johannesburgo e acabam lançados à economia informal. Porém, o contingente migratório interno da África do Sul --que vai do campo para a cidade-- se estabelece no mesmo local e não há empregos para todos. Como a mão-de-obra estrangeira é ainda mais barata que a local, os sul-africanos são prejudicados.

"O problema é que o surto migratório é feito por pobres que vão competir no mercado de trabalho de uma mão-de-obra também pobre, com baixos salários", explica ela.

Leia a íntegra da entrevista com Hernandez:

Folha Online - Quando os zimbabuanos e moçambicanos começaram a migrar para a África do Sul?

Leila Leite Hernandez - A ida deles já vem de muitos séculos. Há deslocamentos nessa região desde antes do século 19, que são próprios dos povos dessa parte meridional da África. Esses deslocamentos se acentuam sobretudo com os trabalhadores de Moçambique -que ainda não eram moçambicanos porque o país não era independente-- a partir da descoberta das minas de ouro e diamante na África do Sul, que são próximas a essa área onde é o conflito hoje.

Folha Online - Qual o motivo dessa migração?

Hernandez - Trabalho. A migração ocorre sempre que há problemas internos nos países com o mercado de trabalho. Sempre que há um deslocamento é porque as pessoas se sentem forçadas, ou são forçadas por políticas de governo. Elas se sentem extremamente descontentes com as condições de vida e saem em busca de outras oportunidades de trabalho e sobrevivência. Isso ocorre em todos os lugares, mas hoje está mais voltado para a África em razão das condições locais. O surto migratório é feito por pobres que vão competir no mercado de trabalho de uma mão-de-obra também pobre, com baixos salários.

Além disso, hoje nós temos um Zimbábue extremamente empobrecido, com uma inflação de 165 mil % e uma situação econômica bastante complicada. É um país que sofre de um problema político sério, que tem como marco o processo eleitoral deste ano, com perseguições a quem se opõe ao governo de [Robert] Mugabe.

Folha Online - A violência contra os imigrantes já existia desde o início dos deslocamentos dos africanos?

Hernandez - Não. Esses conflitos são recentes e tem a ver com um conjunto de circunstâncias. Existe um encarecimento dos produtos básicos de alimentação e o processo de mundialização em curso acentua as desigualdades. As regiões que já são mais empobrecidas e que já tem questões alimentares sérias acabam tendo mais desafios pela própria sobrevivência.

Folha Online - Por que os migrantes do continente africano vão para a África do Sul?

Hernandez - Porque é o país mais rico dessa região meridional. Portanto, os migrantes procuram melhores condições de vida. Eu nem diria melhores, mas 'menos ruins'. Então, eles avançam em direção a periferia de Johannesburgo, onde vão tentar, sobretudo, empregos na economia informal.

Folha Online - Quando os fluxos migratórios recomeçaram e tiveram seu ápice?

Hernandez - Na verdade, há um deslocamento de baixa intensidade contínuo, mas eles se intensificaram no final de 2007, quando começou o processo eleitoral no Zimbábue. Foi na mesma época que a inflação atingiu os níveis mais altos registrados até hoje. Não dá para a gente entender como uma pessoa compra seis pãezinhos com 165 mil% de inflação (...) É uma situação de miséria muito grande. A mão-de-obra muito pobre migra para sobreviver e, evidentemente, não há empregos para todos.

Folha Online - Por que iniciaram os conflitos? Já que a imigração sempre ocorreu pacificamente...

Hernandez - Temos uma conjuntura internacional entre Zimbábue, Zâmbia, Moçambique e África do Sul. E temos também as questões internas a cada um desses países. A Zâmbia, assim como o Zimbábue, tem problemas seríssimos. Em Moçambique a situação é um pouco melhor, mas também há problemas. Todos esses países tem uma concentração precária de distribuição de renda. A situação também tem a ver com problemas internos à África do Sul. O país é a economia com os melhores índices da África meridional, mas tem por volta de 30% de desemprego, o que é elevado.

Em torno de Johannesburgo existiam as cidades para os negros viverem durante o apartheid, precárias em termos de energia elétrica, saneamento básico, saúde e educação. Já são locais com grande acúmulo urbano e ainda recebem os imigrantes. A África do Sul também tem uma das maiores taxas de migração do campo para a cidade. E essa população fica nas proximidades de Johannesburgo, com uma vida extremamente precária.

A mão-de-obra estrangeira que se desloca também para essa área compete no mercado informal com a mão-de-obra local, que já tem salários baixos. Os migrantes acabam aceitando salários ainda menores, o que fomenta sérios problemas de aceitação. Esse embate gera outro problema, pois faz com que as pessoas voltem ao seus países de origem, que não os comporta também.

Folha Online - Então, a situação é mais uma rejeição à situação do que ao estrangeiro em si?

Hernandez - Exatamente. Em cada um dos lugares na África, as questões tem respostas específicas na economia. A taxa de desemprego, a taxa de inflação, a má distribuição da renda, as doenças e epidemias, sobretudo a Aids. É uma reação local à pobreza e é evidente que essas questões são apropriadas politicamente, de forma muitas vezes banalizada, reduzida a embates entre estrangeiros, quando a questão é muito mais profunda. Envolve, por exemplo, uma política trabalhista que não dá aos trabalhadores da África do Sul nenhuma proteção, o que, aliás, é uma tendência no novo modelo de mercado atual.

Folha Online - Então, os atuais embates na África do Sul não possuem motivação étnica?

Hernandez - Não. Não dá nem para pensar em atribuir a esses conflitos uma dimensão étnica. Não é xenofobia. Nem no Zimbábue, nem na Zâmbia, nem em Moçambique e nem na África do Sul. Muitas vezes esses conflitos se revestem para uma parte da população em uma questão racial. Porque, historicamente, houve um apartheid que teve seu término nos anos 90. Mas a gente sabe que a segregação de fato, as questões econômicas, sociais e o preconceito pertencem a uma dimensão simbólica e, portanto, levam algum tempo para apresentarem uma diminuição. Então, até hoje a gente vê que nos próprios países essas questões são banalizadas como conflitos étnicos, mas os verdadeiros motivos são os econômicos e sociais.

Folha Online - A situação da África do Sul pode prejudicar o presidente no processo eleitoral?

Hernandez - O país está em um processo de eleições. A partir do momento em que o governo não consegue controlar a situação, é um problema para ele, sem dúvida nenhuma. O desemprego é uma questão própria da África do Sul. Claro que ele é influenciado pelos zimbabuanos, mas o problema é anterior. A má distribuição de renda, além do desemprego, são questões que foram postas na agenda do presidente Thabo Mbeki, mas estão sem repostas.

Mesmo após a diminuição da violência, ainda haverá muito a se fazer em relação a saúde, educação e a luz elétrica. E a gente sabe que, em ano eleitoral, a situação lembra o que fez e a oposição lembra o que não foi feito. Então, sim, esses embates podem prejudicá-lo [ao presidente Thabo Mbeki]. 


Folha Online - O que poderia ser feito para resolver os embates?

Hernandez - Na verdade, a questão é regional e deve ser resolvida regionalmente, a partir de uma mobilização da União Africana, de Angola, Moçambique e Zâmbia. No entanto, é um problema que também interessa às empresas que investem na África do Sul, alcançando uma dimensão ainda maior. Para dar conta disso, é necessário um esforço dos governos envolvidos, sobretudo o do Zimbábue e o da África do Sul. A questão ainda necessita de muitos programas de governo e, mesmo com vontade política, isso só deve acontecer em médio prazo.

A curto prazo, o que se pode fazer é uma ajuda internacional localizada, com alimentos e produtos básicos. Já existe uma ação internacional lá, no campo de refugiados, da ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) e dos Médicos Sem Fronteiras (MSF). Antes de qualquer coisa, tem que haver paz. Com uma economia de guerra não dá para se pensar em refazer o tecido social e econômico.

Atualmente, nós vemos um movimento dos meios de imprensa e da sociedade em pensar no que pode acontecer em 2010, na Copa do Mundo. O interesse chega a tal ponto que o governo local afirma que os conflitos podem prejudicar a Copa e também gerar violência. Mas é justamente o contrário, a violência não pode ficar em segundo plano. A Copa não tem importância agora.

*FERNANDA BARBOSA
Fonte:  Folha Online