Luanda - O mais recente decreto presidencial acerca do estado de emergência veio resolver alguns problemas, mas há quem ponha em dúvida uma das suas cláusulas.

Fonte: Club-k.net

Nalguns locais de habitação comum, há pânico em relação aos empregados domésticos, como se a condição social destes carregasse consigo o rótulo de transmissores do novo coronavírus.


 
Com o mais recente abrandamento das restrições em tempo de coronavírus, o governo angolano determinou para já a possibilidade de regresso ao trabalho por parte dos empregados domésticos.


O decreto presidencial estabelece nomeadamente que “é permitida a prestação de serviço por trabalhadores domésticos, no período compreendido entre as 6 e as 15 horas”, sendo a entidade patronal obrigada a criar as condições para o efeito, nomeadamente máscaras individuais e o hábito de lavagem frequente das mãos.
 


Considerei francamente positiva esta medida, porquanto a situação anterior (de impossibilidade de trabalho doméstico), quanto mais não fosse, limitava grandemente a acção dos cidadãos que se deslocavam para os locais de trabalho e não tinham com quem deixar os filhos.


Aliás, já na anterior prorrogação do estado de emergência, eu era favorável a este abrandamento, deixando a decisão ao critério de cada um.


 
Não me causou propriamente espanto, a resistência à medida por parte de alguns citadinos da capital. Tudo bem, cada um é livre de decidir o que considera melhor para as circunstâncias conjunturais respectivas.


Mas um amigo chamou-me à atenção para a intransigência na negação do abrandamento em relação aos trabalhadores domésticos, com o argumento segundo o qual seriam eles a transportar o vírus para dentro de sua casa.
 
Pior ainda fiquei, quando ele me disse que, no seu e noutros condomínios, o pessoal entrou em pânico ao saber desse abrandamento. Eis os argumentos utilizados:


1) Estamos todos bem cá em casa e queremos continuar bem, de modo que devemos continuar sem empregados domésticos.


2) Não se aceita que os empregados domésticos da vizinhança retornem ao trabalho, pois assim vão trazer o vírus cá para o condomínio (ou o prédio, ou o bairro).

 

3) O local de maior transmissão do vírus são os táxis colectivos, que os trabalhadores domésticos utilizam.


4) Já temos em Luanda circulação local do vírus, de modo que estamos a um passo da circulação comunitária.

 

Cheguei a tomar contacto com mensagens de pânico geral, em grupos de WhatsApp de prédios e de condomínios.


Cada um usando os argumentos que mais lhes convinham e cada um considerando o seu caso, o pior: quem mora em prédios considera a sua situação comunitária pior, quem mora em condomínio de prédios acha que está pior e quem vive em condomínio de vivendas julga-se em pior situação que os demais.
 
Penso não haver razão para pânico, porque (em primeiro lugar) vamos ter de colocar nas nossas cabeças que precisamos de começar a conviver com o vírus.


Pois quem disse que está tudo bem em nossas casas, apenas porque ninguém tem sintomas da doença do coronavírus?
 
Em segundo lugar, penso que devemos assentar bem os pés no chão e não confundir as coisas.


O coronavírus não deve ser confundido com os vírus do ébola ou do Marburg, ou ainda por exemplo com as bactérias que transmitem a cólera ou a febre tifoide. Ao contrário destes quatro outros casos, o coronavírus não escolhe estrato social – transmite-se independentemente do estatuto de cada um e das suas condições de vida.


Por sinal, até, em todo o mundo, este coronavírus foi levado para outros países por pessoas que viajam. Surgiu na China e foi circulando pelo mundo, levado tanto por chineses, quanto por pessoas de outras nacionalidades.


Portanto, por estas duas razões, não faz qualquer sentido temermos que sejam os empregados domésticos a transmitir-nos o vírus, quando o mais provável é suceder exactamente o oposto.


Portanto, mais facilmente apanhamos este vírus em gabinetes climatizados do nosso local de trabalho, do que a partir dos empregados domésticos.


E, por enquanto, mais facilmente seremos nós a transmiti-lo a empregados domésticos do que o contrário.
 
Em terceiro lugar, está a questão dos táxis colectivos.


Por que razão havemos de temer apanhar hoje o vírus a partir dos nossos empregados domésticos, se não tememos apanhá-lo a partir de funcionários das nossas empresas e escritórios, que também eles circulam maioritariamente em táxis colectivos?
 
Finalmente, devo mencionar o facto de haver pânico em relação ao retorno dos empregados domésticos, mas em momento algum terá havido pânico ou apenas desacordo, nas últimas 6 semanas, em relação ao trabalho de empregados da administração, seguranças e trabalhadores de limpeza dos condomínios, que apesar de também circularem em táxis colectivos, em momento algum terão sido considerados possíveis transmissores do vírus.
 
A partir daqui, só posso concluir com uma pergunta: não será todo este pânico, resultado de boa dose de preconceito e discriminação em relação aos empregados domésticos, que são seres humanos como nós?


Como se eles carregassem consigo (na testa ou no peito) o rótulo de transmissores do coronavírus…


Os empregados domésticos são um grupo que deve ser acarinhado por cada um de nós, até porque deles depende a nossa existência. Muitos deles preparam a nossa comida, engomam a nossa roupa, fazem a cama onde nos deitamos – em suma, com a sua atitude e o seu profissionalismo, são quem decide se vivemos mais ou menos tempo.


Sendo assim, ideias pré-concebidas como estas em relação a eles só nos podem causar dissabores, mais tarde ou mais cedo.
 
A terminar, o que se pode dizer é que a medida governamental de abrandamento em relação aos empregados domésticos é bem-vinda.


Já o pânico relacionado com a transmissão deste mais recente coronavírus a partir dos empregados domésticos não tem razão de ser.
 
Reafirmo que temos de começar a acostumar-nos à ideia de convivência com mais este coronavírus, que (tal como os demais) veio para ficar.


Recebamos, pois, os empregados domésticos, passemos-lhes as informações respeitantes aos cuidados de prevenção e prestemos-lhes todo o apoio, de modo que mantenham os seus sistemas imunitários fortes.


E libertemo-nos de preconceitos, que só dificultam a nossa existência e criam transtorno no relacionamento com os demais.

Paulo de Carvalho
12/5/2020
WhatsApp