Luanda - Nos últimos tempos, acendeu-se devido a um debate entre políticos a discussão em torno do impacto da guerra na sociedade angolana nos dias de hoje. Segui atentamente a imensidão de comentários a respeito nas redes sociais, em que claramente a esmagadora maioria dos que se pronunciaram, daqueles que emitiram opinião, defendiam que a guerra já não tem relação directa com a realidade vivida hoje, até porque já se passaram dezoito anos desde o alcance da paz no ano de 2002. Infelizmente, quase ninguém estuda em relação as consequências, do impacto real deste fenômeno e incentivo os especialistas a fazê-lo. Assumo aqui uma visão contrária, que certamente causará alguma polémica mas é a minha visão em relação ao tema e partilho convosco.

Fonte: Club-k.net

O jurista, ao longo da sua trajetória, desde a formação, na vivência, na experiência que vai adquirindo ao longo da formação e no exercício da profissão, acaba em determinados momentos por se tornar parcialmente um sociólogo e de certa forma um psicólogo, tendo em conta que não pode de maneira nenhuma aparta-se ou estar alheio aos fenômenos sociais e da própria análise comportamental do ser humano, dos cidadãos com quem vai interagindo e vivenciando ao longo dos tempos. É nesta perspectiva que me atrevo a analisar este tema. Compreendo, respeito a análise e a visão de cada um destes cidadãos compatriotas, mas não concordo com essa tese minimalista e redutora da questão, na medida em que somando os catorze anos de luta de libertação nacional, que conduziu Angola a independência, aos vinte e sete anos de guerra civil pós independência (quarenta e um anos de guerra), que na prática significaram, mais de quatro décadas sem educação, ou seja, em que a educação lamentavelmente não chegou nem sequer próximo de um quinto da população angolana. Nelson Mandela citou inúmeras vezes o seguinte: “A educação é a arma mais poderosa que se pode usar para mudar o mundo”. Infelizmente o quadro que se seguiu, apesar de momentos a considerar, na globalidade não pode ser considerado positivo.


A guerra deixou-nos um legado extremamente negativo, não apenas no que as infraestruturas diz respeito, com o país quase destruído por inteiro mas o mais grave, numa degradação total do ser humano no que diz respeito aos valores, aos princípios éticos e morais que os devem nortear, com as famílias completamente desestruturadas e com a proliferação de comportamentos nocivos ao normal desenvolvimento, à paz e a estabilidade social a emergirem e a perpetuarem-se.


Ao contrário do que a maioria defende, entendo que os cidadãos que foram revelando em muitos casos desespero pelo poder, pela ascensão e assunção a cargos políticos, bem como a escalada da corrupção, cujos níveis atingiram escalões inaceitáveis e agudizaram-se, sustentados pela ganância, a arrogância, a prepotência, o abuso de poder que culminaram no assalto ao erário público e todos os outros comportamentos que fomos assistindo ao longo de largos anos, são consequência directa da guerra em grande parte, porque infelizmente às pessoas não foram preparadas para viver em paz, não estavam preparadas para viver em sociedade em conjunto com àqueles contra os quais lutaram, guerrearam durante décadas fruto da ausência de educação ao longo daquele período em que imperou a lei do mais forte. Os angolanos que já tinham as suas diferenças, tornaram-se irredutíveis nas suas posições ao ponto de não conseguirem olhar um para o outro, como sendo todos filhos da mesma terra, filhos da mãe pátria Angola e nunca tiveram a capacidade de perdoarem-se mutuamente pelos erros do passado. Em consequência a fome, a (subnutrição), a miséria ainda hoje subsistem e milhões de crianças vivem sem acesso a um ensino de qualidade e os hospitais permanecem sem a capacidade de atender condignamente os cidadãos. Muitas qualidades humanas foram-se perdendo ao longo daquele período. Os traumas das vítimas do “processo dos 50” (anterior a guerra anticolonial mas de grande relevância histórica), das vítimas do “27 de maio”, de 1992 e de outros episódios terríveis que assombram a nossa História continuam bem presentes, pelo que entendo que cada angolano deve reconciliar-se consigo mesmo em primeiro lugar e logo a seguir reconciliar-se com o outro e com a Nação.


Não basta dizer em alto e bom som “a guerra já acabou”. Infelizmente, as mágoas, os pesadelos, as discórdias, as feridas estão aí, continuam abertas, os ressentimentos continuam presentes apesar da tentativa de negação em determinados discursos. Na anterior liderança da nação, do Presidente José Eduardo dos Santos, os altos quadros da governação e da Administração Pública; das altas patentes dos ramos das forças armadas à oposição no geral, dos milhares de soldados dos dois exércitos que depois fundiram-se num só; dos desmobilizados à sociedade civil, certamente a esmagadora maioria nunca foi avaliada psicologicamente, embora qualquer um deles pudesse eventualmente padecer de algum transtorno ou trauma de guerra, tendo em conta a longevidade, a violência do conflito armado, que em determinados momentos ou em diversas ocasiões, a luta pela sobrevivência tornou-se mais do que uma necessidade, ao ponto da linguagem comum que chegou a vigorar era matar ou morrer e dado o desgaste natural em termos físicos e psicológicos, somando a outras situações como às baixas entre os companheiros de luta, familiares, parentes e amigos, que ia contribuindo para o exacerbar dos níveis de rivalidade entre às partes.
O papel dos psicólogos e sociólogos foi ignorado no pós-guerra e contrariamente ao que deveria ter sido feito, o papel dos assistentes sociais foi completamente negligenciado e colocado de parte, quando devia ter sido fomentado e potenciado. Lamentavelmente, até na actualidade, muitos fazem confusão entre o psicológico e psiquiatra e certamente questionarão, “estávamos todos malucos?”. Certamente que não, porém “a sociedade contínua doente” tal como muitas vezes afirma e bem a Psicóloga Maria Encarnação Pimenta.


Terminada a guerra ninguém de parte a parte, ou seja, entre os vários contendores teve acompanhamento psicológico, infelizmente também não havia psicólogos em quantidade e qualidade para a demanda e os potenciais pacientes provavelmente nunca terão demonstrado interesse numa autoavaliação e numa avaliação feita a si por um especialista. Uns esconderam-se na luxúria, na ostentação, na exposição da vida luxuosa para enterrarem os seus traumas do passado e pensavam que o dinheiro resolvia e comprava tudo. Outros passam a vida criticando e pouco fazem de modo altruísta para a verdadeira alteração do estado de coisas. Em países desenvolvidos como o Japão, a Alemanha, EUA e Portugal, ainda hoje passadas várias décadas, muitos vivem ainda com os traumas da 2a Guerra Mundial, da Guerra do Vetname, do Ultramar respectivamente e a sociedade assume este passivo. Em Angola passa-se justamente o contrário ao tentarmos fazer uma negação categórica, cada um com as suas motivações.


O Presidente João Lourenço deu um importante passo em frente no sentido da reconciliação, fazendo autocrítica, um verdadeiro “acto de contrição”, penitenciando-se publicamente ao longo do tempo percorrido até ao momento no seu mandato, ao expor o grosso dos podres, dos males da governação anterior de que ele mesmo fez parte, (embora possam sempre surgir novos factos), correndo inclusive o risco de perder a simpatia dos militantes do seu próprio partido, que se reviam na liderança e governação anterior e nota-se nalguns casos esta tendência e noutros é evidente a resistência que vai persistindo à tentativa de mudança. Arriscou ainda, perda de popularidade e eleitorado principalmente entre os mais novos, revelando um verdadeiro acto de coragem, que ganhou ainda mais enfâse com a devolução a família dos restos mortais de Jonas Malheiro Savimbi, para a realização de um funeral condigno e dando passos concretos com a criação da comissão encarregada da homenagem às vítimas de conflitos políticos de 1975 à 1992. O passo subsequente deve ser, começar realmente a resolver os problemas do povo, ou seja, a população em geral tem de sentir o efeito prático das mudanças na sua vida. O MPLA deve isso ao povo angolano. “ Até que aqueles que ocupam postos de responsabilidade não aceitem questionar com valentia o seu modo de administrar o poder e tentarem o bem-estar do seu povo, será difícil imaginar que se possa progredir para a verdadeira paz”. Papa João Paulo II.


Porém, é necessário que os outros também o façam, ou não cometeram erros ao longo dos quarenta e cinco anos que tanto gostam de fazer menção? Não fazem mea-culpa ou quando o fazem é de modo muito superficial, pouco incisivo e sem resultados práticos, continuando com as tentativas de “santificação e idolatria” de quem o legado é muito discutível. Quando alguém afirma que a História de um determinado partido é toda construída a base de mentiras, que até data da sua fundação é falsa, não está a contribuir para a pacificação da sociedade e das mentes. Reconhecer os méritos e qualidades do adversário mesmo neste ambiente difícil, complicado, cheio de turbulência, por vezes hostil, é algo que todos têm de aprender a cultivar, a semear para que possamos colher os frutos mais à frente.

 

Não estou com isso a incentivar as pessoas a viverem na falsidade mas a quebrarem os seus tabus e a olharem, encararem o seu próximo, o seu adversário de maneira diferente. Assim construiremos uma sociedade mais justa e equilibrada, ou seja, uma nova Angola.


A intolerância politica tem sido um dos maiores “calcanhares de Aquiles” da nossa sociedade, na medida em que tem emergido e se tornado demasiado evidente, em todos os quadrantes da vida social, entre os quais: os partidos políticos, as igrejas, as associações, refletindo-se nos cidadãos em geral, que não demonstram uma aceitação em relação ao pensamento do outro, contrariando objectivamente a existência do que devia ser uma cultura, uma consciência, uma visão democrática no pensamento, ou seja, aquilo que eu digo é que é a verdade, usando recorrentemente a expressão “ é a verdade... ou “a verdade dói”, “a verdade tem de ser dita”, partindo apenas da sua premissa, da sua realidade, do seu contexto, da sua vivência, da sua experiência para classificar a sua visão de verdadeira, colocando muitas vezes de lado a democracia que tanto afirmam defender, enaltecendo em sentido contrário, a cultura das ofensas e dos ataques pessoais, exacerbando o clima de acusações de parte a parte e este ódio que passa de geração em geração sem fim à vista, ao invés de contribuírem para a promoção do debate, da discussão, do dialogo de modo construtivo. O Escritor Deepak Chopra deixou uma lição interessante “Desista de estar certo. Em vez disso irradie paz, harmonia, amor e riso no seu coração”.


Parafraseando o Arcebispo Dom José Imbamba, “ é preciso que promovamos uma cultura de paz ao invés da cultura do ódio”, algo que não foi feito ao longo destes dezoito anos de paz em que perdemos tempo precioso, devido a falta de preparação das pessoas durante o tempo de guerra para os desafios do período pós-guerra. Não basta que os governantes e servidores públicos tenham formação técnica ou ostentem títulos académicos, é fundamental que sejam formados do ponto de vista humano para que estejam a altura de compreender o alcance e a importância da missão do governante. Cada um deve assumir os seus passivos com a respectiva cota de responsabilidade, porque todos cometeram graves erros no passado, quer seja no mais longínquo, quer seja no mais remoto. Chegou a hora de mudarmos de rumo, de caminharmos juntos, de construirmos o futuro, de iniciarmos uma nova era em que a educação, a consciência das pessoas, a cultura da irmandade, da amizade, da solidariedade, do patriotismo, a luta pelo bem comum deve nortear o comportamento, a acção dos cidadãos em geral e dos políticos em particular, para que Angola caminhe verdadeiramente em Democracia rumo ao progresso e ao desenvolvimento. Termino deixando o seguinte pensamento para reflexão de Martin Luther King: “ Temos de aprender a viver todos como irmãos ou morreremos todos como loucos”.