Benguela - Há dias, publiquei um "post" a demonstrar preocupação face a precária situação da província do Kwanza-Sul em termos de desenvolvimento económico e social. E tenho poderosas razões para agir assim, mas dizer, desde já, que não me anima, nem estou motivado em participar em qualquer tipo de conspiração ou cabala contra o governador Job Capapinha. O que escrevi aqui seria o mesmo que lhe diria de caras e com os olhos nos olhos: a província do Kwanza-Sul merece um governo melhor. Nesta conformidade, o meu grito foi legítimo.

Fonte: Club-k.net

Nada contra Job Capapinha

Tenho uma indeclinável ligação umbilical pela terra que, há 59 anos, me viu nascer e onde fiz os estudos primários e secundários. É um elo incrivelmente profundo, em cujas entranhas mergulham as raízes ancestrais da minha parte materna, os Cangombe do Amboim. O meu avô Jaime Azulay era natural de Luanda, mas chegou jovem ao KS, após uma passagem pelo Dondo, onde temos os Portalegre, que são nossos parentes directos e também pelo Golungo-Alto e Dala-Caxibo. As nossas origens são humildes. Nós, os Azulay Kamussumbes, nascemos e crescemos em indescritível miséria, no tempo colonial. Várias vezes nos faltou comida à mesa e não tínhamos água canalizada e muito menos electricidade nem qualquer electro-doméstico, que fosse para enfeite . Recordo as intermináveis noites em que, a tiritar de frio, viamos as grossas gotas de chuva caírem sobre nós, despencadas dos tufos de capim que cobriam a casa que construímos com as nossas próprias mãos. Nascemos e crescemos num mundo periférico de atroz miséria e injustificadas desigualdades. Ainda continua lá, na montanha da Mbumba, a nossa casinha de pau-a-pique onde ficaram o nosso suor e as nossas lágrimas.


Na infância e na adolescência sentimos a humilhação de ter de bater à porta da Administração do Concelho para receber um Atestado de pobreza. Era uma famigerada declaração que nos permitia estudar, isentos do pagamento de propinas e dava direito a merenda escolar e roupa usada nas irmãs Vicentinas. Ressalvo que contei sempre com um incondicional apoio do meu saudoso padrinho, António Martins de Matos, de grata memória.


As dificuldades eram de tal monta, que obrigaram-nos a mudar para Benguela em 1969, onde contamos com a incomensurável ajuda dos nossos familiares. Infelizmente, dois anos depois, regressamos para Novo Redondo e retomamos a nossa vida, deixando em Benguela o meu irmão Nelito em casa de nossos tios.


Mais uma vez, a vida em Novo Redondo corria difícil e continuava sem solução a batalha da nossa família contra a Câmara Municipal, por causa da demolição da casa do meu avô no Inconcon, nos finais dos anos cinquenta e a nunca cumprida promessas de nos darem uma casa nova.


Num processo rocambolesco, as autoridades coloniais submeteram o meu avô, que era solicitador, a um julgamento viciado. Ele também exercia trabalhos de advocacia em prol da população local, que estava a ser espoliada das suas terras ancestrais. Os requerimentos que saiam das suas mãos tinham muita repercussão em Lisboa e isso passou a causar problemas aos usurpadores de terras. Assim, começou a perseguição, até que encontraram oportunidade que necessitavam para o neutralizar. Num momento em que tinha a Cédula de solicitador caducada, porque a Cédula era emitida em Lisboa e chegava-se a aguardar meses pela vinda do documento renovado. Através de uma armadilha acusaram-no de exercer Advocacia com a Cédula caducada e assim aplicaram-lhe uma pesada multa que, naquelas circunstâncias, ele jamais conseguiria pagar. Foi quando converteram a multa em prisão efectiva e o transferiram para o calabouço em Benguela. A depressão e os remorsos pelas seis meninas e um menino que tinha deixado entregues a sua sorte em mãos da esposa, a avó Ema Roberto Manuel Cangombe. Contra todos os protestos e uma carta de punho próprio ao ministro da Justiça de Portugal, acabaram por fazê-lo definhar até ser recolhido pela morte e sepultado em Benguela. O meu avô era um dos negros mais cultos daquela época. Era também telegrafista e em 1928/29 foi chefe da Estação Postal de Porto Amboim.


Nas reuniões com os seus contemporâneos aqueles homens já reivindicavam a independência de Angola. Estávamos fartos de sofrermos em nossa própria terra quando, em 1974, o MPLA chegou com as promessas de que estava a lutar para termos uma sociedade mais justa em Angola. Rapidamente aderimos em MPLA e tornei -me soldado antes da independência, em Novembro de 1975. Os meus primos e o meu irmão Nelito também já estavam na tropa em Benguela.


Portanto, tenho razões para me preocupar com a terra que deixou sua marca em várias gerações da minha família.


Em boa verdade, eu jamais e em circunstância alguma, trairia o meu legado familiar, fundado na secular honra dos nossos antanhos, onde se incluem os nossos irmãos Kamussumbes de todos os tempos e extractos sociais.


Quando me referi que queria que entregassem os destino da governação da provincia em minhas humildes mãos, fi-lo como força de expressão, para dizer que o Kwanza-Sul tem filhos capazes de o dirigir para o progresso, com a mesma força e determinação com que lutaram pelos ideais em que acreditaram e acreditam, desde os primórdios e nos tempos e circunstâncias mais complicadas. E os Kamussumbes saíram sempre vitoriosos, mas depois são esquecidos.


No que me toca pessoalmente, já há bastante tempo cheguei a definitiva conclusão de que, não obstante ter adquirido ao longo da vida inúmeras valências profissionais e académicas e de ter como balizas e motivo de honra um perfil baseado em valores patrióticos e morais, para determinadas pessoas, nem um quiosque para venda de jornais atrasados me entregariam para gerir. Deus sabe as monstruosidades que enfrentei com a simples função de director de uma correspondência do Jornal de Angola. Foi assim no tempo de José Eduardo dos Santos e é assim agora no tempo de João Lourenço.


Pertenço a uma estirpe de homem que olha de frente quem quer que seja e onde quer que seja. O meu perfil e as minhas referências de Humanidade e visão do mundo não personificam o que se valoriza aqui na nossa pátria sofrida.


Desculpe, se não fui muito gentil consigo, mas fica em Paz, cda Job Capapinha. O Jaime Azulay criticou apenas porque ama e quer o melhor para a sua/nossa terra, pelas justificadas razões que atrás descreveu.


Não me interpretem mal, por favor!


Eu não quero nada de nada, que não seja a merecida reforma e pendurar com dignidade as  surradas chuteiras que jogaram comigo o jogo da vida. Tenho uma família linda, uma moto, uma guitarra e um pandeiro. Deus me dá tudo que preciso!


Aos Sábados, irei pescar peixes que demoram bué a morder o anzol e nos deixam tempo para, na amena cavaqueira com o Carlos Pinto e o Duducho, vazarmos latas e latas de cuca geladas, ao som da boa música do nosso xirico a pilhas, serenamente, junto ao sombreiro, no balançar da nossa chata branca.


Catumbela, 13 de Junho de 2020.