Luanda - Numa longa entrevista de três páginas, publicada no passado dia 28 de maio no oficioso “Jornal de Angola”, Francisco Queiroz, Ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, reduz o 27 de Maio a uma “sucessão de erros políticos históricos lamentáveis”.

Fonte:  NJ


O primeiro erro veio, segundo o entrevistado, “por parte de entidades políticas que contestaram e atentaram contra o regime”, o qual provocou outro erro por parte das autoridades que, “reagindo a essa tentativa de perturbação do poder instituído, tomaram medidas que, do ponto de vista da História e daquilo que hoje conhecemos, constituiu uma má gestão da crise”. Por conseguinte, todos foram vítimas. Ainda que tivessem havido “ excessos” e vítimas dos dois lados, as amnistias tinham feito apagar os “ilícitos” cometidos, pelo que todos estavam perdoados, sendo tempo de reconciliação, de olhar para a frente e não para trás.


Para Francisco Queiroz, o autor destas linhas incorre numa concepção “estreita e revanchista”, de “identificar o culpado”. Esta concepção “estreita e revanchista de encarar as coisas talvez resulte do distanciamento da realidade angolana atual ”.


Como é de bom tom para quem tem o controlo dos meios de comunicação oficiais, o teor da entrevista ao jornal foi repisado numa segunda entrevista, desta vez na TPA, em horário nobre.

Por me sentir visado, vejo-me obrigado a esclarecer a minha posição, de forma a que os angolanos possam livremente avaliar quem incorre em “concepção estreita” e quem comete erros flagrantes e intencionais.


A SUBIDA DE HITLER AO PODER


A receita foi simples. Apenas um mês depois de assumir o poder, após a sua nomeação como chanceler, em 1933, Hitler promoveu o incêndio do Reichstag (Parlamento). Declarando o ato criminoso como sinal de uma revolta comunista, visando um golpe de Estado, obteve um decreto que suspendia todos os direitos e liberdades individuais do país, o que lhe deu a possibilidade de consolidar o poder e eliminar toda a oposição.


Ordenou a prisão de milhares de marxistas e opositores políticos, enquanto o braço armado do seu partido espancava e assassinava inimigos políticos, com a conivência dos juízes da região.


Com dois meses de governo, toda a oposição estava liquidada, estando os sobreviventes no recém- inaugurado campo de extermínio de Dachau. Não só a oposição, como muitos inocentes, designadamente a população de origem judia.


Terminada a guerra, um dos argumentos dos nazis, para se defenderem nos julgamentos de Nuremberg, foi o de que havia um contexto histórico, com erros de parte a parte, em que todos foram vítimas, que se limitaram a obedecer a ordens, justificando-se o perdão e a reconciliação entre vencedores e vencidos.


Será que a comunidade internacional aceitou tal “justificação” para apagar o holocausto e perdoar os responsáveis? Não. Seria um atentado à memória das vítimas fazê-lo!


A RECEITA


Longe de mim equiparar os governantes de Angola aos nazis. Tal seria demagógico e pouco sério. Porém, há uma similitude de métodos, utilizados, aliás, por todos os regimes totalitários e sanguinários, desde Pinochet (Chile) a Pol Pot (Cambodja), que se impõe denunciar.


O regime angolano copiou a receita de Hitler, com adaptações. Não mandou incendiar nenhum edifício para responsabilizar os militantes que, em torno de Nito Alves, representavam a ala mais combativa do MPLA, contestando a já visível corrupção e o desprezo pelos interesses nacionais. Não foi por acaso que os ideais de progresso e defesa dos interesses da população tenham dado lugar à cleptocracia e a um regime dos mais corruptos do mundo, com o Luanda Leaks a revelar apenas a face visível do iceberg. Corrupção que não desapareceu por magia, apenas por ter mudado o discurso, quando as moscas continuam a esvoaçar…


O regime aproveitou as movimentações populares, ocorridas no dia 27 de Maio, para inventar uma tentativa de golpe de Estado e, assim, iniciar a repressão mais sangrenta da África independente, que vitimou cerca de 30 000 de angolanos, enlutando quase todas as famílias.


Os credenciados historiadores Álvaro Mateus e Dalila Mateus, na sua obra “Purga em Angola”, demonstraram exaustivamente a natureza do 27 de Maio. Longe de ser uma tentativa de golpe de Estado, constituiu uma inventona, pretexto para a liquidação do setor mais avançado do MPLA.


Para o historiador José Milhazes, o então presidente Agostinho Neto instrumentalizou os acontecimentos em curso nesse dia: “O 27 de Maio foi uma “inventona” (revolução imaginária) criada por parte de Agostinho Neto e pela então parte da direção do MPLA, que aproveitou a manifestação de Nito Alves -que não tinha por objetivo a tomada do poder nem a realização de um golpe de Estado -para neutralizar facções muito importantes dentro do MPLA, que tinham divergências com ele .“


A luz verde para os assassinatos, traduzida na célebre frase de Neto “Não vamos perder tempo com julgamentos !”, teve como pretexto a descoberta numa ambulância dos corpos mutilados de sete dirigentes do MPLA, no Sambizanga. Porém, tudo indica que foi a própria DISA e o grupo de dirigentes que a controlava, com destaque para Onambwe, que executou e depois encenou as mortes, sem que tivesse havido qualquer responsabilidade dos chamados “nitistas”.


De facto, Helder Neto suicidou-se na cadeia de S. Paulo, Saidy Mingas foi vitima de uma emboscada de elementos da DISA, que planeavam liquidar igualmente Lopo do Nascimento, como este último declarou recentemente numa entrevista. Garcia Neto não era considerado indefectível de Neto e N’Zagi era tido como próximo de Nito.


A morte de sete dirigentes do MPLA, em circunstâncias por esclarecer, mas que tudo indica ter sido perpetrada por elementos da DISA, não pode justificar a matança de 30 000 angolanos.


Não houve, assim, contrariamente ao alegado por Francisco Queiroz, nenhum “erro histórico” nem “excessos” por parte das vítimas do 27 de Maio, que justificassem o holocausto angolano. Porém, não renegamos a Verdade Histórica, doa a quem doer, e pretendemos o completo esclarecimento de todos os factos bem como a identificação dos responsáveis pelos assassinatos de 30 000 angolanos. Tal implica a abertura dos arquivos secretos e uma investigação isenta, com recolha de depoimentos.


Não se pode equiparar os carrascos e torcionários às vítimas, que tombaram nas suas mãos, tal como não se pode equiparar os elementos da PIDE aos presos políticos que lutaram contra o fascismo e o colonialismo. Fazê-lo, envergonha o regime, que devia assumir, sem tibiezas, as suas responsabilidades.


AS AMNISTIAS


Francisco Queiroz vem, seguidamente, referir-se às amnistias que teriam feito apagar os “ilícitos” (porque não chama crimes?), impedindo responsabilizações.


Porém, é um princípio consagrado no Direito Internacional que os crimes contra a Humanidade não prescrevem nem são amnistiáveis. Se tal sucedesse, o Tribunal Penal Internacional não teria campo de ação.


O regime angolano não pode, assim, amnistiar-se a si próprio.


A chamada Reconciliação e Perdão, promovida pelo governo, constitui, deste modo, uma manobra de propaganda, destinada a branquear crimes hediondos e libertar o governo do opróbrio de uma acusação que, persistentemente, ao longo destes 43 anos, tem sido mantida pelos familiares das vítimas e apoiada, crescentemente, pela opinião pública. O silêncio ensurdecedor do regime face às cartas e petições, o mutismo toal face a uma questão tabú, deu agora lugar a uma manobra teatral, bem encenada e com um maestro afinado, o Sr. Ministro, jurista de mérito mas ao serviço de uma causa perdida.

REVANCHE ?


Finalmente, Francisco Queiroz considera a minha posição revanchista, ou seja, vingativa. Nada de mais falso. Não tenho defendido a aplicação de penas aos responsáveis (que bem as merecem), mas apenas a sua identificação, de modo a que quem perdoar possa saber a quem perdoa, como, aliás, é preconizado pela União Africana, de que Angola faz parte.


É uma exigência bem modesta, que não se confunde com vingança, mas que causa, naturalmente, muita perturbação a quem se quer livrar de uma acusação bem fundada e continua a apresentar o “Pai da Nação” como um “humanista”, quando tem as mãos pejadas de sangue e ostenta o título real de ditador-mor da África independente. O historiador Carlos Pacheco bem o demonstrou, na sua obra prima “Agostinho Neto- O Perfil de um Ditador”,
cuja leitura recomendo, vivamente, ao Sr. Ministro (e não só).


Edgar Valles