Luanda - Apesar das chamadas de atenção no sentido de acabarmos com amadorismos, prosseguem as estimativas do Ministério da Saúde que nada têm a ver com a realidade que se nos apresenta. As estimativas devem passar a ser feitas por profissionais que percebam de estatística.

Fonte: Club-k.net
 
Já aqui chamámos à atenção, em Abril deste ano (já lá vão mais de 3 meses), para o facto de o Ministério da Saúde estar a apresentar publicamente estimativas sobre o número de infectados com o coronavírus, que nada têm a ver com a realidade dos números que nos são apresentados por esse órgão. 


O que parece é que se olha para as estimativas feitas lá por fora (Estados Unidos, Brasil ou Portugal) e faz-se uma transposição para a realidade angolana, apresentando-se assim números saídos de outras galáxias para chamar à atenção das pessoas para a possibilidade de grande propagação do vírus. 


Se a intenção é colocar as pessoas de sobreaviso, o que se consegue em realidade são duas coisas: (1) criar o pânico e (2) cair em completo descrédito, pois quem tem dois dedos de testa apercebe-se que se trata de estimativas feitas por leigos na matéria. 
 
Vamos aos factos. 

No passado dia 1 de Abril, estávamos nós com 10 casos de covid detectados, o Ministério da Saúde anunciou que até 15 de Abril estaríamos com mil casos e, até Junho, com 10 mil casos. 


De facto, a 15 de Abril estávamos com 19 casos anunciados (dos 2,1 milhões de casos em todo o mundo) e em final de Junho, estávamos com 284 casos (em todo o mundo, somavam-se então 10,3 milhões de casos). 


Portanto: ao invés de mil casos anunciados para 15 de Abril, tínhamos de facto 19 (ou seja, 19% da estimativa). E ao invés dos 10 mil casos anunciados para final de Junho, tínhamos realmente 284 (ou seja, 28% da estimativa). 


De que valem, pois, tais projecções, se os números apresentados até aí apontavam para estimativas bastante mais baixas, mesmo considerando o facto de estarem então a ser feitos poucos testes? 
 
Um amigo garantiu-me ser sua convicção que o Ministério da Saúde sabia que a realidade estava realmente distante dos números que eram exibidos diariamente no Centro de Imprensa Aníbal de Melo (CIAM), daí as projecções estatisticamente absurdas. 


Já eu achava que se tratava somente de incompetência ou, por se tratar de uma doença, serem médicos (que são formados para diagnóstico e cura) a fazer tais estimativas, sem perceberem minimamente como se fazem estimativas (uma área que nada tem a ver com medicina). 


Prova disso é que um conhecido médico foi para a TV Zimbo apresentar estimativas que davam conta de haver uma incidência irreal do vírus em Luanda, a partir dos testes feitos ao pessoal e jornalistas que circulavam então pelo CIAM. Mais uma generalização absurda, a partir de dados de pouco mais de cem casos, em nada representativos da população de Luanda. 


Depois disso, um cardiologista veio a público garantir que uma certa percentagem dos hipertensos estariam com covid, sem explicar como chegou a esse número (que pode até estar próximo da realidade, mas a notícia não é esclarecedora). 


Tudo isto são projecções feitas por amadores, que nada têm a ver com a realidade e, por isso, os seus autores deviam ter sido denunciados pelas associações profissionais da área. E os meios de comunicação social que lhes dão voz deviam ser seriamente penalizados, por estarem a reproduzir asneiras, apenas porque dizem respeito a uma doença e são ditas por médicos. 
 
A propósito desta questão de os médicos acharem que se devem pronunciar sobre tudo o que diga respeito a doenças, quero recordar que, durante a sua formação, um médico aprende a diagnosticar e a curar doenças segundo um certo paradigma. Não aprende praticamente mais nada para além disso. Atenção, que falamos aqui apenas em medicina, sem nos referirmos àqueles médicos que fazem também formações noutras áreas. 


Mesmo quando se pronunciam e tomam decisões sobre saúde pública, os médicos esquecem-se que a saúde pública absolutamente nada tem a ver com medicina. Saúde pública chega a ser muito mais sociologia, antropologia e políticas públicas, que medicina. 


Portanto, a verdade é que (por cá e nalgumas outras partes do mundo) os médicos estão convencidos que podem falar de tudo o que diga respeito a doenças, quando a verdade está muito longe daí. 


E estamos a ver o resultado disso. 
 
Mas não é tudo. 


Em meados de Junho último, a Sra. Ministra da Saúde anunciou publicamente que pelo menos 1 em cada 20 habitantes de Luanda está infectado com o novo coronavírus. Dito de outro modo e como Luanda tem hoje 8,5 milhões de habitantes, o Ministério da Saúde estimava a 15 de Junho, que tínhamos em Luanda acima de 426.179 infectados. 
 
A última estimativa foi apresentada há dias, quando o Ministério da Saúde veio a público anunciar que, até Setembro, deveremos ter 45 mil casos positivos de covid. 


Ficamos como então? Se em Junho teríamos (só em Luanda) acima de 426 mil infectados, como é possível em Setembro (3 meses depois) termos em todo o país apenas 45 mil casos positivos (apenas pouco mais de 10% do número anunciado antes)? 


Assim não se percebe por onde andamos. São as maiores autoridades sanitárias do país a pôr os pés pelas mãos, demonstrando completa insegurança, incerteza e desconhecimento da realidade. 
 
Será que os primeiros serão casos reais e os segundos, somente aqueles de que há notícia? 
Depois, é preciso perguntar de onde vieram estes números. 


E de que vale estar a anunciar estimativas que em nada têm a ver com a realidade? 
Com que objectivo se o faz? 


Será apenas por negligência e irresponsabilidade, ou haverá grande arrogância por trás desta atitude, que se manifesta na falta de audição de especialistas (médicos e outros) da área da estatística, por parte do Ministério da Saúde? 
 
Não vou aqui referir a questão relacionada com as estimativas por amostragem. Farei isso no próximo texto, que distribuirei amanhã. 


Aqui, pretendi apenas sinalizar o facto de as autoridades sanitárias deste país pensarem que somos todos atrasados e não percebemos nada de estatística, ao ponto de andarem a brincar connosco, adiantando números díspares, que absolutamente nada têm a ver com a realidade que essas mesmas autoridades anunciam. 


E quando, depois, os números não batem certo, ninguém vem a público esclarecer a razão de ser da gafe. 
Assim não vamos a lugar algum! 

Paulo de Carvalho 
27/Jul/2020 
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