Sumbe - Eu fico imaginando o que aconteceria se em Portugal, no Brasil (como o sistema “maluco” de freios e contrapesos onde nada, absolutamente nada escapa da apreciação do poder judiciário), ou mesmo nos EUA, o Presidente da República permitisse a inscrição no OGE uma rubrica destinada a construção de um Centro Clínico Dentário exclusivo para o Presidente da República no âmbito do Programa de Investimentos Públicos desses respectivos países. Só fico imaginando! Ah, conhecendo, por exemplo, a realidade brasileira como eu conheço, não duvido que esse acto seria impugnado no STF (Supremo Tribunal Federal), fora as enxovalhadas de manifestações e requerimentos no Congresso pedindo o seu impeachment.

Fonte: Club-k.net

Impugnar no judiciário tal pretensão seria perfeitamente normal e natural, primeiro em razão da consistência e amadurecimento da democracia e das suas instituições, segundo porque há um entendimento cristalino de quem verdadeiramente manda: o povo, o único e verdadeiro soberano! Os tribunais não hesitariam em dar provimento tal pretensão, na medida em que se constituem verdadeiramente no último reduto do cidadão!

 

Nesses países, apesar de tudo, há uma clara consciência, oriunda máxima hobbesiana, segundo a qual, o único papel que seria atribuído ao Estado seria o de manter a paz entre os cidadãos. Ou seja, a civilidade e a convivência social pacífica seria a única acção a ser exercida pelo poder (...). Na perspectiva Lockeniana a principal função do Estado é a de prover a garantia dos direitos individuais e colectivos para os indivíduos que nele se encontram, ou seja, é promover todas as acções necessárias para o bem comum.

 

Destarte, nós (we the people), os cidadãos, temos o direito de exigirmos que para o cumprimento do telos a que se destina o Estado, que os governantes sejam virtuosos, não somente segundo as virtudes próprias da política, - aquelas já apregoadas por Maquiavel, as quais em certa medida me oponho - , mas que estes sejam embrenhados de outras virtudes, quais sejam: seriedade, honestidade, verdade, honra, probidade, competência, sensibilidade, além de muita empatia e outras mais, sem desprimor de muita moral.

 

No caso em tela, só não entendo mesmo é por quais razões, numa altura em que a sociedade angolana padece, como em nenhum outro momento da sua historia recente, de todos os tipos de problemas, - não os preciso nomear aqui, todos nós os conhecemos muito bem, - oh meu Deus, foi inscrito no OGE revisto (pasmem), uma rubrica destinada a construção de um Centro Clínico Dentário exclusivo para o Presidente da República no âmbito do Programa de Investimentos Públicos? Isso é uma actitude racional/virtuosa? Claramente que não, muito pelo contrário essa actitude configura um crime, passível de responsabilização política e até penal comissiva e omissivamente! Isso é um tapa na cara de todos nós, o povo!

 

É deveras repugnante e inaceitável, sobretudo se levarmos em consideração o facto de que o orçamento da tal clínica perpassava em muito o orçamento combinado de vários sectores importantes tais como os serviços de bombeiros, ensino pré-escolar, educação especial, equipamentos médicos, sem falar, dentre outros, a proteção social e emprego – me desculpem, eu não consigo deixar de vislumbrar uma certa maldade proposital, coisa de sociopata, nessa actitude, não é possível!

 

A política é a arte do bem fazer, do serviço ao próximo, de paixão pelo serviço público segundo as regras prescritas na lei e nos princípios à ela conexos e eu simplesmente não vejo em João Lourenço essa paixão.

 

Todos nós somos livres, mas não me peçam, por favor, para encontrar virtude e aplaudir o facto de, por pressão da sociedade, o próprio Presidente da República ter colocado essa pretensão de lado. A razão é muito simples: os jornais publicaram que o Sr. Presidente da República fê-lo por pressão da sociedade e não por consciência, logo não consigo encontrar virtude nisso!

 

No livro “Ética e Vergonha na Cara”, os filósofos brasileiros Mario Sergio Cortella e Clóvis de Barros Filho lançam, dentre outros, uma importante reflexão sobre o modo como orientamos as nossas escolhas, mostrando de que forma a vergonha encontra seu lugar na ética, a fim de que possamos pensar e agir para além do comodismo e dos prazeres individualmente percebidos em nosso dia a dia, quase como se fossem situações corriqueiras e típicas da cultura.

 

No nosso caso, olhando para a forma irresponsável como se gastam os dinheiros públicos e a forma passiva como as instituições que deveriam fazer o controlo olham passiva e impotentes sem fazerem nada, entenebrece a minha alma e consciência; assim, só me resta mesmo é escalar a montanha e do alto dela arautamente dizer o seguinte: venha logo a nós o teu reino, oh Senhor Jesus Cristo!

Sumbe, aos 28/07/2020

Nelson Custódio
Advogado, Pastor, Político e Activista dos Direitos Humanos