Luanda - Foi a enterrar sábado último (8) em Lisboa, o meu amigo Edgar de Sousa Marques da Cunha. Morreu, ao que sabemos, vítima de doença. E neste ano, que só vai no oitavo mês, perdi a conta dos quadros afectos a órgãos de comunicação social, amigos e conhecidos de vários outros sectores que morreram nessa condição, mas também que estão incapacitados. E agora (segunda-feira 10), foi a vez do músico Waldemar Bastos. Sem dúvida, 2020 está a ser um ano de péssima ceifa. Mas, “Ché menino não fala política... não fala política...”

Fonte: Club-k.net

Entristecido, concluo que a geração a qual pertenço, como nunca antes se viu, está a morrer todos os dias. Está a desaparecer. Sem honra, nem glória. Simplesmente, assim mesmo, como num estalar de dedos, está a desaparecer. Está a morrer. E o Edgar Cunha foi apenas mais um dos bons da nossa era, que não conseguiu contornar a morte.

Como é evidente, ninguém gosta dela e por isso choramos, ficamos magoados, sentimos a perda. Mas ela é incontornável. Ninguém tem o dom de impedi-la ou de adiá-la. Chega sem ser chamada e não adia a partida de quem for o escolhido. Seja rico ou pobre, seja bom ou mau. Não levamos nada e nem mesmo a roupa que trajamos, temos a possibilidade de escolher. Porque somos então egoístas e tão maus para com os outros, se ninguém há-de restar para ficar como observador (ou vencedor)?

Na sequência do anúncio da morte de Edgar Cunha (e agora do Waldemar Bastos), vi passar diante dos meus olhos o maior retrato da hipocrisia angolana. E a pergunta que não se cala agora, é porque razão nós, os que ainda temos muito para dar ao nosso País e as nossas famílias, estamos a morrer tão facilmente? Porque razão o Edgar Cunha, o Waldemar Bastos e outros, e provavelmente também eu, não chegaram (ou chegarão) à velhice tranquila, o grande sonho e a meta de cada um e de todos? Porquê que não conseguimos chegar à velhos, para podermos ler os livros que coleccionamos, viajar sem compromisso com o tempo, fazer sem pressa tudo o que deixamos para trás na velocidade da luta para assegurar a sobrevivência, para amar aqueles a quem pressionados pela falta de tempo colocamos por vezes para trás e não ao nosso lado, ou ainda, para pedir perdão pelo mal que causamos a quem nos brindou com o seu amor?

Respostas e justificações existem muitas. Mas, hão-de concordar que, a principal, prende-se com a qualidade de vida que os nossos libertadores da “camarilha que nos acompanha” nos têm patrocinado ao longo de quase 45 anos. Mas, pior que isso, é a forma humilhante como uns são tratados, em detrimento de outros, de uma minoria que, um pouco por todos os sectores, é favorecida à pretexto da serventia. Sem dúvida, as nossas frustrações também contribuem para encurtar o nosso tempo de vida útil. E o Edgar Cunha que conheci, pela sua integridade, sentiu o efeito desse veneno. Pagou um preço alto por ter herdado de seu pai, o ADN da verticalidade e da honestidade. Pagou, apenas por ser ele mesmo.

Na sequência da sua morte, ouvi e li os mais rasgados elogios de diferentes sectores e figuras públicas. Mas ninguém conseguiu explicar-nos também, porque razão um excelente profissional, com tantas qualidades, foi sucessivamente relegado para segundo, terceiro, quarto e quinto plano? Porquê que, durante certo período, foi forçado a seguir para o 'exílio' como adido numa embaixada, em Cuba, país com dificuldades extremas e com os nossos funcionários diplomáticos a sofrer privações, até para comer, porque os salários não são pagos com regularidade?

O Edgar Cunha de quem fui amigo era um homem, um profissional simples, integro e o seu objectivo, o seu posicionamento na vida, não era para ficar rico, pelo menos passando por cima dos outros. Clamava, seguindo princípios cultivados no berço onde nasceu e foi criado, apenas o que era seu por direito elementar: emprego, respeito, dignidade, solidariedade. Sim! Solidariedade, essa palavra pouco expressiva para nós, constituída por 13 letras que, por não ter sido respeitada e observada ao longo desses quase 45 anos, como resultado, estamos todos a pagar um preço extremamente elevado e cruel. Incluindo, é claro, nós os jornalistas.

Sofremos e somos mortos porque defendemos um partido; sofremos e somos mortos porque não o defendemos; sofremos e somos assassinados na tentativa de sermos apenas nós mesmos; sofremos e morremos ainda, porque na luta diária para tentarmos ser apenas cidadãos cumpridores das nossas obrigações, somos trucidados até no que de mais sagrado carregamos dentro de nós: o nosso bom nome, herança dos nossos progenitores, a nossa dignidade.

Como profissional de comunicação, aliás, como “cão faminto”, "mercenário", "bêbado" de acordo com os novos guardiões do templo, analisando todo esse filme, pergunto-me para que servirá uma carteira de jornalista, apenas um pedaço de cartão - apesar da sua relevância - se não passamos também de cúmplices de assassinos de consciência, ou de colaboradores do diabo no assassinato da nossa e da dignidade dos outros, incluindo nossos próprios colegas?

Quase 45 anos de independência, nós, jornalistas, não conseguimos sequer distanciar-nos da militância e do servilismo político. Continuamos divididos entre o ser, o parecer e o não ser. Não conseguimos, por nós mesmos, perceber que, aparte as nossas diferenças e motivações politicas (ou mercantilistas), temos a obrigatoriedade de estar na primeira fila dos que estão engajados na construção de um Estado democrático e de direito, em que a dignidade humana é fundamental, deve ser valorizada e respeitada. E isso está acima de partidos. Mas nós, ou parte de nós, também sentamo-nos à mesa do banquete com a “camarilha que nos acompanha”; comemos, bebemos, servimos ou lavamos a louça que eles sujam. Somos verdadeiros cúmplices da destruição, da matança, porque ajudamos ou acobertamos a podridão que amordaçou a Nação e emperra o desenvolvimento.

Quase completados 45 de independência, não conseguimos blindar-nos contra aqueles que, por míseros trocados, perseguem e assassinam os seus próprios colegas dentro e fora dos órgãos, mas também daqueles que tudo fazem para se eternizar no poder a qualquer preço, colocando em primeira instância interesses de pessoas, de grupos, do partido e não os da Nação.

Apesar de não passar de um “cão faminto” para alguns dos novos guardiões do templo, só para recordar, nunca estive nem próximo nem longe do cidadão Filomeno dos Santos. Conheço-o, sim, mas apenas da televisão. Mas se tivesse trabalhado para ele, não me envergonharia, porque nunca o faria para apunhalar o meu País. Não é para isso que sirvo. Por outro lado, a assessoria não tem poder decisório. Quem decide, com ou sem influência, é o assessorado.

Quanto a cidadã Welwitshia dos Santos, conheço-a desde criança, até porque na minha trajectória como cidadão eu, hoje na pele de “cão faminto”, acompanhei a chegada da “camarilha que nos acompanha” no aeroporto Craveiro Lopes. O seu pai, descendente do uma família humilde do Sambizanga, tornou-se no segundo Presidente da República por 38 anos. Já a sua mãe, é filha de uma família que já tinha protagonismo na cidade de Luanda, na Liga Nacional Africana, também palco da expressão do nacionalismo angolano. Eu nunca fiz parte da caravana da “camarilha que nos acompanha”. Não vim da mata e tomei o poder. Como jornalista, tenho a obrigação de conhecê-la. Contudo, o mais próximo que estive dela foi, na condição de deputada, no decorrer da visita efectuada por um grupo parlamentar chefiado pelo deputado Castro Maria, do MPLA, à redacção do semanário Agora, do qual fui director, já lá vão quase cinco anos. Mas no que me tem sido possível observar, ela não se parece em nada com a mãe Joana, nem com a dona Branca, a banqueira dos pobres em Portugal, pelo que, não vejo razão para pedir-lhe dinheiro por empréstimo. Da parte dela, também não vi razão bastante para receber ou atender eventual pedido de um “cão faminto” feito eu.

Como é pelas costas dos outros que vemos a nossa cara, depois de tudo por que passei nesses últimos cinco anos e particularmente na última quinzena, reforçado com o filme que assisti agora com a morte de Edgar Cunha, enquanto posso, aproveito para deixar bem claro que eu, “cão faminto”, sei quem são os meus verdadeiros amigos. Bastarão eles e os meus familiares, se tiverem disponibilidade, para acompanhar o meu caixão na minha última viagem. Seja durante ou após a pandemia. Dispenso tudo, incluindo elogios fúnebres. É enquanto vivo que necessitamos do respeito, da solidariedade, do reconhecimento se, efectivamente, merecemos. Depois de mortos, não nos servirá para nada. É hipocrisia. Não quero.

Descansem em paz Edgar e Waldemar Bastos. Somos muitas as vítimas de um Sistema atroz instalado por uma “camarilha que nos acompanha” e que nos esmaga faz quase meio século. E ainda teima em reconhecer que falhou. E como falhou companheiro. Quer mais uma oportunidade para permanecer no poleiro, mas não faz por merecer.

Onde quer que estejam agora, preparem o palco para a nossa recepção porque mais cedo uns, mais tarde outros, chegaremos. Porque a morte é a única certeza. Para nós, vítimas, mas também para os nossos carrascos.

Abraços!
Continuarei...
10.08.2020