Luanda - Que é uma Constituição? Qual é a verdadeira essência de uma Constituição? Qual será a verdadeira essência, o verdadeiro conceito de uma Constituição? Estas indagações foram feitas numa conferência de Ferdinand Lassalle, em 1863, para intelectuais e operários da antiga Prússia (actual Alemanha e parte da Polónia).

Fonte: Club-k.net

Passados 157 anos, as interrogações do jurista e economista, amigo de Karl Marx e de Proudhon, continuam actuais, requerendo tal como na época, respostas!

A Constituição é a norma positiva mais importante de um Estado, porque trata-se da expressividade do arbítrio livre e soberano do povo acerca da organização do Estado e do conteúdo e extensão dos direitos fundamentais que lhes são garantidos. Em virtude do seu posicionamento hierárquico na pirâmide normativa idealizada por Hans Kelsen, a Constituição goza de supremacia frente a todas as demais normas, que com ela devem se adequar, sob pena de que lhes seja recusada validade, conforme ordena o artigo 226.º da Carta Magna, (leges virtus haec est: imperare, vetare, permittere, punire).

Angola vive momentos políticos especiais, em que a Constituição e a sua força e eficácia normativa foram colocadas sob intensa pressão política, de um lado defensores da Constituição formal e do outro, defensores intencionados da Constituição material.

As linhas divisórias entre a legitimidade política derivada do princípio democrático da maioria e a constitucionalidade desta legitimidade confundem-se!

A abordagem científica destes conflictos, embora estranhos a nossa realidade jurídica-acadêmica, mereceu atenção especial de dois dos maiores pensadores do Direito contemporâneo, na tentativa de fornecem elementos para uma teorização, elaboração e aprofundamento de um conceito de Constituição - trata-se de Ferdinand Lassalle e Konrad Hesse.

Ao oferecer destaque à estes dois insignes juristas, não foi no menosprezo aos positivistas (Laband, Jellinek ou Carré de Malberg e Kelsen), aos historicistas (Burke, De Maistre, Gierke), aos institucionalistas (Hauriou, Renard, Burdeau, Santi Romano, Mortati), ao decisionista (Karl Schmitt), aos estruturalistas (Spagna Musso, José Afonso da Silva) e outros, entre os quais minha maior referência na corrente da filosofia dos valores – com a devida vénia ao mestre alemão Otto Bachof. Todavia, fizemo-lo tendo em atenção para o facto da nossa reflexão introdutória cingir-se na corrente sociológica do pensamento constitucional.

Coube a Ferdinand Lassalle, no entanto, o mérito de haver lançado as bases de uma análise da Constituição no sentido material e sociológico, ao afirmar a necessidade de distinguir entre Constituições reais e Constituições escritas. Considerando que a verdadeira Constituição de um país reside sempre e unicamente nos factores reais e efectivos de poder que dominam nessa sociedade, observa que, quando a Constituição escrita não corresponder a tais factores, está condenada a ser por eles afastada, (Lassalle, 1862).

Na concepção de Lassalle, os problemas constitucionais não são primariamente problemas de direito, mas de poder, porque ela submetendo-se a tais condições (factores), ou é reformada para ser posta em sintonia com os factores materiais de poder da sociedade organizada, ou sucumbe perante esta.

Por seu turno, Hesse relativiza as idéias de Lassalle ao condicionar a autonomia da Constituição e acrescenta um elemento axiológico:

“A norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade. A sua essência reside na sua vigência, ou seja, a situação por ela regulada pretende ser concretizada na realidade. Essa pretensão de eficácia não pode ser separada das condições históricas da sua realização, que estão, de diferentes formas, numa relação de interdependência, criando regras próprias que não podem ser desconsideradas. Devem ser contempladas aqui as condições naturais, técnicas, econômicas e sociais. A pretensão de eficácia da norma jurídica somente será realizada se levar em conta essas condições.

Há de ser, igualmente, contemplado o substrato espiritual que se consubstancia num determinado povo, isto é, as concepções sociais concretas e o baldrame axiológico que influenciam decisivamente a conformação, o entendimento e a autoridade das proposições normativas” (Hesse, op. cit., p. 14-15).

A Constituição de um Estado representa as relações de poder nele dominantes: o poder político, representado pelos governantes, deputados e demais agentes políticos; o poder social, representado pelos estratos organizados da sociedade; o poder econômico, representado pelos detentores do capital, e o poder intelectual, representado pela consciência e cultura gerais. Todas essas relações fácticas de poder são chamadas de Constituição real de um país ou Constituição em sentido político, sociológico, económico e cultural. Em contraposição a essa Constituição real há a conhecida Constituição jurídica, constituída pelas normas limitadoras da actuação do Estado, estatuidoras dos princípios constitucionais básicos e promovedoras dos direitos fundamentais (Hesse, 1991, p. 9).

O ilustre Professor Catedrático Paulo Bonavides similarmente perfilha dessa bifurcação entre a Constituição jurídica e a Constituição real: “cada país tem ordinariamente duas Constituições: uma no texto e nos compêndios de Direito Constitucional, outra na realidade; uma que habita as regiões da teoria, outra que se vê e percebe nas trepidações da vida e da práxis; a primeira, escrita do punho do legislador constituinte em assembleia formal; a segunda, que ninguém redigiu, gravada quase toda na consciência social e dinamizada pela competição dos grupos componentes da sociedade” (Bonavides, 2005, p. 188).

Numa perspectiva material, a Constituição é o estatuto jurídico-político do Estado, resultado do poder constituinte material, como poder do Estado de se dotar de tal estatuto, de se autorregulamentar (Miranda, tomo II, 1996, pág. 11)

Numa perspectiva formal, a Constituição traduz-se na relação das normas constitucionais, ou do sistema jurídico-constitucional, com as demais normas do ordenamento jurídico em geral (Miranda, tomo II, 1996, pág. 11).

Os seja, formalmente é Constituição o conjunto de normas que revestem força jurídica superior às demais normas jurídicas (Miranda, tomo II, 1996, pág. 12).

Continuando, o Mestre Luso (Miranda, tomo II, 1996, pág. 21), ensina que, sendo o Estado comunidade e poder, a Constituição material nunca é apenas Constituição política, confinada à organização política. É Também Constituição social, estatuto da comunidade perante o poder ou da sociedade politicamente conformada. Estatuto jurídico do Estado significa sempre estatuto do poder político e estatuto da sociedade – quer dizer, dos indivíduos e dos grupos que a compõem – posta em dialéctica com o poder e por ele unificada. E, sendo Constituição do Estado (em si) e Constituição do Direito do Estado, necessariamente abarca tanto o poder quanto a sociedade sujeita a esse Direito.

O Estado Constitucional é o Estado que resulta da Constituição. Na sequência das constituições francesa e norte-americana, hoje todos os Estados estão estruturados constitucionalmente, no sentido em que dispõem de uma Constituição que estabelece a estrutura política do Estado e os limites ao poder do mesmo (est modus in rebus).

Ao subordinar-se à Constituição, o Estado apresenta-se como um Estado de Direito (art.º 6.º da Constituição da República de Angola “CRA”). Todavia, o Estado deve estrutura-se como um Estado Democrático de Direito (art.º 2º, nº 1, da CRA), ou seja, uma ordem de domínio legitimada pelo povo (arts.º 2.º, n.º 1, 3.º, 4.º e 109.º da CRA).

Nas palavras de Konrad Hesse, a Constituição jurídica, no que tem de fundamental, isto é, nas disposições não propriamente de índole técnica, sucumbe quotidianamente em face da Constituição real. A ideia de um efeito determinante exclusivo da Constituição real não significa outra coisa senão a própria negação da Constituição jurídica. Poder-se-ia dizer, parafraseando as conhecidas palavras de Rudolf Sohm, que o Direito Constitucional está em contradição com a própria essência da Constituição.

Essa negação do Direito Constitucional importa na negação do seu valor enquanto ciência jurídica. Como toda ciência jurídica, o Direito Constitucional é ciência normativa; Diferencia-se, assim, da Sociologia e da Ciência Política enquanto ciências da realidade. Se as normas constitucionais nada mais expressam do que relações fácticas altamente mutáveis, não há como deixar de reconhecer que a ciência da Constituição jurídica constitui uma ciência jurídica na ausência do direito, não lhe restando outra função senão a de constatar e comentar os factos criados pela Realpolitik. Assim, o Direito Constitucional não estaria a serviço de uma ordem estatal justa, cumprindo-lhe tão-somente a miserável função — indigna de qualquer ciência — de justificar as relações de poder dominantes. Se a Ciência da Constituição adopta essa tese e passa a admitir a Constituição real como decisiva, tem-se a sua descaracterização como ciência normativa, operando-se a sua conversão numa simples ciência do ser.

Não haveria mais como diferençá-la da Sociologia ou da Ciência Política.

Afigura-se justificada a negação do Direito Constitucional, e a consequente negação do próprio valor da Teoria Geral do Estado enquanto ciência, se a Constituição jurídica expressa, efectivamente, uma momentânea constelação de poder. Ao contrário, essa doutrina afigura-se desprovida de fundamento se se puder admitir que a Constituição contém, ainda que de forma limitada, uma força própria, motivadora e ordenadora da vida do Estado. A questão que se apresenta diz respeito à força normativa da Constituição.

A Constituição enquanto Lei Estruturante do Estado, dela depende a validade e a conformidade das leis e dos demais actos do Estado, da Administração Pública (tribunais incluídos) e do Poder Local, sendo inconstitucionais as leis e os actos que violem os princípios e normas nela consagrados (art.º 226.º da CRA) “ex autoritate legis”.

Há 157 anos o espírito contido na norma constitucional de 2010, era dissertado na antiga Prússia. Lasselle dizia que, a Constituição era mais do que uma Lei, qualquer coisa mais sagrada, mais firme e mais imóvel que uma Lei comum. Mais adiante chamava atenção para a sincronia imperativa entre a Constituição Escrita e a prática dos actos, quer legislativos ou administrativos, sob pena da realidade factual levar ao falecimento da Constituição diante dos factores reais de poder dominantes no país.