Lisboa - O Presidente de Angola descarregou os seus dispositivos de repressão e com isto ultrajou o que há de mais sagrado numa comunidade nacional: o respeito aos direitos de cidadania jurídica e política das pessoas.

Fonte: Publico

Cada vez se percebe com mais clareza que o presidente de Angola enfrenta um sério dilema na sua governação e que, tarde ou cedo, irá ter necessidade de o dirimir. A insatisfação popular cresce no país como se viu na última manifestação multitudinária do dia 24 de Outubro, porém, contra o que seria de esperar, as respostas do poder político até agora têm sido desastradas. Invariavelmente marcadas por medidas de agressividade. Talvez os dirigentes vivam inebriados com a ilusão de que o povo dorme. É verdade que ainda dorme, no entanto quando acordar de vez, como diria o jornalista e romancista português Pedro Lopes de Mendonça (1826-1865), “o acordar será terrível”[1]. Bem terrível.

A memória do general e dos seus acólitos a este respeito parece-me curta e pouco difere da memória dos ditadores e tiranos de todas as épocas. Em alguns momentos da história os governos cometem tantos abusos a ponto de se deixarem ofuscar por fantasias da imaginação, convencidos de que podem refrear a indisposição e a fúria dos povos com ameaças, balas e prisões. No final de tudo, porém, esta suposta eficácia da violência governamental contra os povos acaba por se virar contra os próprios algozes.


Desde 1975 que o MPLA tem estado a acender mechas de conflitos que um dia poderão desembocar num generalizado movimento de desobediência civil e dar lugar a um colossal protesto social. Por enquanto os protestos são surdos, estão abafados nos peitos dessa massa humilhada de angolanos. Mas o que parece hoje controlável à miopia e surdez dos donos do poder pode transformar-se amanhã em lavas incandescentes que nem as polícias e os exércitos melhor aparelhados do planeta conseguem controlar.


Veja-se o que aconteceu em França com a revolução de 1789. Esta será talvez uma das maiores legendas que a história nos oferece e que os governantes do mundo raramente guardam na memória. O trágico desabar da monarquia absoluta com o rei Luís XVI a ser levado ao patíbulo e a ser guilhotinado é uma lição que os políticos deviam reter nas suas meditações. O facto em si encerra algo de simbolicamente lapidar, porque nos permite entender como fatalmente os povos se revoltam cada vez que os seus dirigentes os aviltam no seu amor-próprio e lhes roubam os sonhos. É um direito e uma reacção natural da humanidade contra certos monstros que governam as sociedades

A pátria de Jean-Jacques Rousseau é, talvez, de todas a pátria maior das revoltas. O povo ali jamais aceitou submeter-se a cadeias de ferro, mesmo quando o sistema político representativo acenou com promessas de liberdade e justiça para os trabalhadores. Contra o descaso, a soberba e o menosprezo de reis e ministros diante do sentir e das aspirações dos seus governados, logo brotava impetuosa das profundezas da nação uma nova e espantosa convulsão social.


Em Julho de 1830, o povo, acabrunhado com o peso de tantas violações aos seus direitos, pôs-se de novo em marcha, tal como no passado se pusera em marcha para derrubar a Bastilha e protestar contra a carestia dos alimentos básicos. Multidões embriagadas de cólera e de vingança cercaram a Câmara dos Pares, em Paris, a conclamar contra o monarca Carlos X e a exigir a cabeça dos seus ministros traidores. A cavalaria da Guarda Nacional não se moveu para proteger os palácios dos poderosos. Fechou os olhos ao furor das massas e à erecção de barricadas nas ruas durante três dias. A burguesia pagou para ver os andaimes carcomidos do velho mundo da fidalguia virem abaixo. Ela entendia ter chegado a hora de dar o passo decisivo de ruptura histórica para acabar com os “vínculos e privilégios” de uma classe que representava um atraso civilizacional. Era preciso expulsar o rei do trono e condená-lo a sair de França por ser um descendente da realeza espanhola. Os verdadeiros culpados do desastre nacional, esses sim, tinham que receber uma sentença memorável: prisão perpétua.


Alvorecia então a epopeia dos grandes movimentos insurreccionais e das revoluções proletárias cujas chamas iriam alastrar-se por toda a Europa do século XIX. Pela mão dos liberais radicais, as rebeliões ganharam um crescente impulso e desafiaram frontalmente os sistemas de desigualdade política e social. Se na Polónia os primeiros levantamentos de Janeiro de 1831 culminaram num gigantesco banho de sangue consumado pelas tropas do czar Nicolau I da Rússia, a insurgência não desfaleceu. Recobrou forças e mais adiante voltou a atacar o despotismo russo e a ocupação do território polaco. Em Nápoles e noutros Estados italianos os reis e os vice-reis despóticos, amparados nas baionetas austríacas, enforcavam e fuzilavam os revolucionários de forma sumária.


Contudo, as balas não conseguiram quebrar a energia dos partisans da luta nacionalista. Por todas as fronteiras do Velho Mundo cresciam as tensões sociais e com elas irromperam trágicas fracturas. A paisagem da Europa inundou-se com trincheiras de combate contra todos os modelos de absolutismo político. Foi o caso das rebeliões nas províncias do reino dos Países Baixos e na Rússia onde, desde 1825, uma fracção da nobreza e oficiais do Exército nacional, os chamados Dezembristas, puseram em causa o absolutismo monárquico e reclamaram pelo fim do estado de servidão.

Mas foi em França que as rebeliões explodiram com mais fragor e persistência, semelhantes a fenómenos sísmicos e suas réplicas. A começar pela insurreição dos trabalhadores da capital em Junho de 1848 que abriu caminho à instauração da República. Entretanto, o período da governação de Napoleão III foi o que mais instabilidade espalhou por todos os recantos do país. A princípio, este governante enganou o povo francês ostentando o diadema de “salvador da liberdade”. Logo depois, no entanto, caiu-lhe a máscara e descobriu-se nele “um novo ditador” que sufocava a França, conforme escreveu a propósito Victor Hugo (1802-1885) num dos seus mais brilhantes ensaios. Um “apóstata da democracia, inimigo encarniçado da liberdade [e] flagelo dos direitos e da soberania do povo”.


Napoleão teve o o mesmo destino de tantos outros psicopatas e verdugos da história. O genial autor do poema O Ano Terrível (onde descreve o drama sangrento da Comuna de Paris em 1871) compôs dele um epitáfio ajustado à sua insignificância. Fê-lo passar à posteridade com o apelido de “O Pequeno”. A França não perdoou ao déspota o opróbrio e a maré de desventuras em que o país submergiu minado pela corrupção, por perseguições políticas e pela pobreza do povo e por um sem-fim de vidas humanas sacrificadas na desastrosa guerra contra a Prússia.


Pois falando agora da manifestação de 24 de Outubro em Luanda, é lamentável ver o profundo abismo que se interpõe entre os agentes superiores do Estado – governo e fracções do Judiciário – e a realidade de Angola em si. Agentes incapazes de perceber o óbvio. Ou seja, de perceber que o povo lentamente começa a despertar e que a erupção de ânimos naquela data simbólica é um sinal categórico de mudança nos humores da sociedade. Sobretudo da sua parcela mais jovem. Contudo, ao invés de quebrar a carapaça de arrogância que o cobre, o general João Lourenço fecha-se no seu mundo estacionário e limita-se a produzir arsenais de sofismas e paradoxos para desviar as atenções e desacreditar os manifestantes, apontando-os como uma horda de desordeiros, incendiários e anarquistas manipulados por forças obscuras.


Esta nova descarga de mentiras à queima-roupa sobre a sociedade, a meu ver, consagra o clímax de desprezo impudico a que o MPLA e o seu poder de Estado chegaram. Trata-se o resto do país como inimigo por este não comungar das suas políticas. Ao soltar os seus esbirros e açulá-los como cães raivosos, o general deu-lhes licença para desatarem os piores actos de violência contra uma massa pacífica de jovens que reclamava por justiça social e diariamente experimenta a dor da destruição das suas vidas e dos familiares. A dor da pobreza, do desemprego e das doenças. O tecido social em Angola esgarça-se perigosamente e produz sofrimento nas populações.


O fenómeno, porém, não abala a sensibilidade do governo, deixa-o indiferente. Para quem vive na abundância, em casas de luxo e feliz, escapa-lhes o que seja a memória do pesadelo nos pobres. Proteger os fracos e combater as malfeitorias nas fileiras da cleptocracia nativa não é uma preocupação dos governos do MPLA. Para este baronato perverso os abusos, os privilégios e a desigualdade social estão naturalizados. Tal como a impunidade no crime. A ralé que se acostume, não tem direito a manifestar-se, do contrário só lhe resta a lei do chicote, como dizia um fascista. E foi o que fez João Lourenço. Descarregou os seus dispositivos de repressão e com isto ultrajou o que há de mais sagrado numa comunidade nacional: o respeito aos direitos de cidadania jurídica e política das pessoas.

Foi tal a gravidade do ultraje que sequer se observou um mínimo de contenção. Sequer se impôs um limite civilizacional no estado de tensão que então se gerou. Agindo por impulsos cegos, impróprios de uma força mantenedora da ordem pública, a polícia extrapolou a sua dimensão funcional, caiu em acções “mortíferas de ódio” e varreu a multidão com toda a sorte de agressões físicas. Por fim, procedeu a detenções absurdas e nem os profissionais da imprensa escaparam dessa sanha e barbaridades. Foram tratados como pessoas desprezíveis, iguais a arruaceiros.


Sobre a manifestação em si, várias peças fotográficas e vídeos me chegaram às mãos. O que logo chama atenção nas peças é uma multidão indefesa, acossada por golpes de bastões, bofetadas e pontapés e atemorizada diante da ameaça de pistolas e metralhadoras exibidas ostensivamente pelos agentes da polícia. Mas a perversão maior no comportamento hostil das forças de segurança foi a sua pulsão incontrolável de atirar sobre a multidão como faziam as quadrilhas de cowboys no faroeste americano. Ao ver estas cenas diabólicas de uma polícia desvairada, a minha impressão foi, como não podia de ser, de total repulsa. Nenhum argumento esgrimido pelo general João Lourenço para explicar esta repressão de proporções desmesuradas é sustentável à luz dos factos. São argumentos falsos pelos quais se pretende impedir que se vejam os antagonismos sociais em crescendo no país; e pelos quais, em resumo, se pretende deslegitimar todo e qualquer questionamento que se faça acerca deste novo ciclo de violência institucional.


Não é de agora que o MPLA se empenha em desconstruir as vozes críticas da oposição, em especial as vozes marginais do espectro político por as considerar incontroláveis. O exemplo mais relevante é a massa de jovens que se manifestou no dia 24 de Outubro. Uma massa sem partido. O general João Lourenço, que emergiu aos olhos do país como construtor de um novo paradigma político e empunhou o machado das reformas, ainda não percebeu que a juventude está obcecada por liberdade, pela defesa dos valores democráticos e que rejeita os espartilhos do MPLA e as suas linguagens carregadas de estereótipos e terror. Que rejeita as promessas de um futuro melhor, já que esse futuro nunca chega para a maioria esmagadora da população. E que rejeita também os discursos messiânicos sobre o papel do grande pastor, o MPLA, como única força política destinada a conduzir o rebanho nacional pelos caminhos de ouro da felicidade.


Na verdade, o general não percebeu que a épica do desencanto que move a juventude se tornou imparável e que um dia ela poderá também levantar-se e destruir as Bastilhas de opressão reinantes em Angola. E que não haverá muros capazes de a deter, pois os jovens transportam em si o pensamento da fome e da revolta e em nenhum momento da história este pensamento foi derrubado por balas.


Com a sua monumental coreografia de violência a 24 de Outubro o governo mostrou mais uma vez, sem disfarces, o seu verdadeiro rosto. Não só pelas imagens que desfilaram diante dos olhos inquietos do mundo, mas por uma outra realidade, ainda mais sombria, que as autoridades procuraram solapar: a roda de brutalidades que encheu os subterrâneos das esquadras da polícia e que os jornalistas presos relataram com abundância de pormenores. Eles próprios foram atingidos por todo o tipo de coacções com o claro propósito de os amedrontar e privar do direito ao exercício do seu trabalho. Factos nefastos e preocupantes, que provam à saciedade a bossa antidemocrática do MPLA e do seu governo e a inata incapacidade do regime de Luanda para lidar com situações desta envergadura que não seja somente por recurso a meios violentos.


Por obra das forças mefistofélicas do regime, quebrou-se a espinha dorsal do Estado naquela manifestação no seu dever de protecção das pessoas. Trituram-se todas as normas, trituram-se os direitos humanos de cada um, “apanágio” do indivíduo em sociedade, e apertaram-se ainda mais as algemas sobre os pulsos dos cidadãos. O sangue derramado no asfalto prova que as virtudes republicanas de “valorização do indivíduo e das suas liberdades” são letra morta para o governo constitucional e autocrático do MPLA. A crueldade, o menosprezo da aristocracia do poder pelas liberdades e pelo direito de cada um pensar de forma independente é motivo mais que suficiente de indignação para qualquer cidadão que se preze.


Com esta deriva e incompetência, o governo revela uma grave distorção cognitiva para entender a urgência de se preservar a coesão político-cultural no interior da comunidade nacional sob pena de Angola mais adiante, num futuro breve, mergulhar em graves furacões sociais. O entendimento que os dirigentes têm do mundo repousa tão-só na força bruta, na ameaça e em teorias da conspiração. Daí a sua notória incapacidade para dialogar com os parceiros políticos. Enquanto persistir esta paranóia ou este eclipse da razão nas cúpulas do Partido e do Estado, o país permanecerá encerrado no gueto em que o MPLA o confinou há quarenta e cinco anos.


Angola realmente está muito doente, prisioneira de uma clique de políticos portadores de um conjunto de aberrações na sua personalidade e conduta que podemos classificar de “narcisismo maligno”, para usar uma expressão de Erich Fromm, psicanalista e filósofo alemão, quando se referia aos ditadores e autocratas do século XX.


Diria, enfim, tratar-se de cenários perturbadores, porquanto se assiste à restauração de velhas políticas e tiques de cunho draconiano que foram a marca emblemática da ditadura de Agostinho Neto. Um desses tiques é o tom macarthista da retórica beligerante do MPLA utilizado como um punhal assassino contra os críticos e adversários. Não é por acaso que as liturgias e as odes consagradas ao velho tirano estão hoje tão em voga no palácio presidencial e nas fortalezas do Partido, espelhando desta forma uma devoção exagerada jamais observada no governo “majestático” de José Eduardo dos Santos. Facto que, do meu ponto de vista, invalida a tese, advogada por alguns, de que o general João Lourenço cristaliza em si a esperança de uma redenção do MPLA. Nada de mais enganoso quando se percebe neste homem uma “vontade nietzschiana de poder”. Uma ambição desmedida de se instituir como único poder, único sustentáculo do Estado.


É aqui que reside o grande perigo, conforme advertia John Dewey, e que se traduz numa ameaça real, maior do que a existência de Estados totalitários estrangeiros. Segundo este filósofo norte-americano (1859-1852), são as nossas atitudes pessoais (tantas vezes ingénuas) e o descaso das instituições nacionais os responsáveis históricos pela tomada do poder por líderes autoritários. Em nome da ordem, da segurança, da disciplina e da uniformidade, outorga-se a um só indivíduo uma confiança total. Nada de mais desastroso. “O campo de batalha, antes de tudo, está em nós mesmos [dizia Dewey], nas nossas escolhas e nas nossas instituições”.


Definitivamente o povo de Angola acordará um dia de modo completo. Depende agora do MPLA inverter rapidamente a sua trilha de abusos de poder, senão iremos vê-lo a carregar o seu próprio caixão rumo ao auto-sepultamento.