Luanda - Na vida há coisas que não se esquece, ficam implantadas definitivamente na memória. As nossas memórias estão armazenadas em tijolos do cérebro, contidos por diversos ficheiros, compostos por dados diversos e classificados, de acordo com a sua natureza. O nosso raciocínio, no processo do pensamento profundo, abre os tijolos que lhes conduzem aos ficheiros específicos onde estão arrecadados os dados que precisamos naquele momento. Este motor cerebral é que dinamiza e impulsiona o sistema pensante do homem, que lhe permite conceber ideias, analisar as coisas, fazer retrospetivas, prever o futuro e tirar conclusões.


Fonte: Club-k.net


“Clinica da Morte” - Campo do Tarrafal

Em 2006 tive a oportunidade de visitar pela primeira vez o Arquipélago de Cabo Verde, sita à leste do Senegal, ao longo do paralelo 16º, no Oceano Atlântico. O ilustre Deputado Joaquim Ernesto Mulato e Eu fomos a Cabo Verde para participar na Conferência Internacional da IDC-África, que teve lugar na Cidade da Praia, no dia 06 de Junho de 2006, em que participaram delegações vindas da Europa e da África, tendo como Agenda: A promoção da democracia; a boa governação; o desenvolvimento sustentável; o meio ambiente; e a alteração climática.


No trajecto para a Cidade da Praia ficamos (04/06/2006) na Ilha do Sal durante 24 horas. Ai encontramos o nosso colega Deputado (empresário) Melo Xavier com que tivemos boas conversas e jantamos juntos no restaurante turístico da Ilha do Sal. Nesta conversa interessante, aberta e amena soubemos que, o ilustre Deputado Melo Xavier tinha muitos investimentos no Arquipélago de Cabo Verde e quase passava mais tempo lá do que em Luanda. Ele estabeleceu uma teia de negócios, de contactos e de amizades com os governantes, não só em Cabo Verde, mas também, no São Tomé e Príncipe.


O mais interessante é que, Senhor Melo Xavier era um diplomata (oficioso) itinerante do Presidente José Eduardo dos Santos, incumbidos de tarefas ocultas para executar. De entre as tarefas estratégicas exercidas por Deputado Melo Xavier era de apoiar os amigos do MPLA no Cabo Verde e no São Tomé e Príncipe, prestando-lhes apoios político, financeiro, económico, comercial, administrativo, técnico e logístico para mantê-los no poder. Acima disso, efectuar negócios ocultos do Presidente José Eduardo dos Santos e sua família. Aliás, o Cabo Verde e São Tomé e Príncipe são «paraísos fiscais», sendo rotas de tráfico de drogas, pirataria e branqueamento de capitais.


Percebeu-se que existiam Agentes dos Serviços de Inteligência e Segurança de Angola nestes dois países da expressão portuguesa. Para o efeito, durante as eleições gerais havia sempre uma estrutura montada algures no São Tomé e Príncipe, onde os boletins de votos eram transportados por via aérea de Luanda para lá, para ser preenchidos, introduzidos no sistema informático e transportados (a calada da noite) de Avioneta para as diversas Ilhas do Arquipélago. No dia da votação os técnicos e os Agentes dos Serviços de Segurança de Angola participavam clandestinamente na distribuição das urnas pelas Assembleias de Votos. Até, nesta conversa, sob o encanto do álcool, o nosso colega e compatriota desbobinou muita coisa, dizendo, com orgulho: «nós temos controlo absoluto da situação cá em Cabo Verde e no São Tomé e Príncipe».


No dia seguinte (05/06/2006) o ilustre Melo Xavier pegou na sua Avioneta e foi-se embora, e nós seguimos para a Cidade da Praia. No final da Conferência Internacional (07/06/2006) nós os dois achamos que era pertinente visitarmos o Campo de Reclusão do Tarrafal, que fica a Norte da Cidade da Praia. No dia 08 de Junho de 2006, cedo de manha, alugamos um táxi, e percorremos o interior da Ilha do Santiago até ao Campo de Reclusão do Tarrafal, onde pereceram em agonia muitos nacionalistas das colonias portuguesas, inclusive os portugueses da Metrópole que estavam em conflito com o regime fascista do António de Oliveira Salazar.


O Campo de Reclusão do Tarrafal está situado no vale descampado, rodeado por enormes precipícios montanhosos, virados ao mar, do oceano atlântico. Só existe um acesso terrestre, por uma estrada ondulante que passa por enorme escarpada, quase semelhante a estrada que atravessa a Serra da Leba, entre Lubango e Namibe. A partir do interior do Campo do Tarrafal, olhando para o monumento montanhoso, em contraste com o mar, sob o sol ardente, fica-se com a impressão de que, o céu estivesse aproximar a terra. Este campo está cercado por um muro altíssimo, liso e declinado, com uma vala enorme, que impossibilita qualquer tentativa de fuga. O vale onde está o campo desce ao mar, que recebe uma brisa húmida que bate sobre a serra das montanhas, dando uma frescura árida. Lá no horizonte distante vê os navios que transitam pelo oceano atlântico.


Tivemos (com Eng.º Joaquim Ernesto Mulato) a oportunidade de fazer uma visita guiada por uma Senhora, responsável do campo, muito simpática e carinhosa, de carácter tipicamente africano. Visitamos todos os compartimentos do Campo. Eu, pessoalmente fiquei curioso e assustado a olhar para aquele aparato e como estava estruturado: as celas solitárias; as salas de torturas; a clínica da morte; as salas de interrogatórios; os lugares de matanças; as salas de enforcamentos; o local onde os presos eram mantidos de pé em baixo do sol, etc. O campo estava divido entre a parte dos presos portugueses da Metrópole e a outra parte que albergava os presos das colonias. Afinal, mesmo na prisão, havia a discriminação entre os Brancos da Metrópole e os Africanos das Colonias.


O que nos embaraçou bastante no Campo do Tarrafal é de que, somente os Ex-presos da família do MPLA têm os seus dados exibidos na Galeria da Sala Nobre. Os outros Ex-presos ligados à UNITA e à FNLA estão omissos. Parece que, o MPLA obrigou o Governo de Cabo Verde para omiti-los deliberadamente. No fundo, é a forma mais eficaz de escamotear a História e distorcê-la. Por outro lado, este facto demonstra claramente a dimensão da influência do JES sob o Governo de Cabo Verde, o que, de facto, confirmou as palavras do ilustre Deputado Melo Xavier.


A “Clinica da Morte” é o ponto culminante do Campo do Tarrafal onde os presos eram mortos por envenenamentos, por torturas, por asfixias, por fome, por doenças, por malnutrição ou por pesquisas laboratoriais. Vendo bem as características do Tarrafal assemelham-se ao «holocausto do Auschwitz», onde os Nazis submeteram os Judeus e os Polacos ao genocídio durante a Guerra Mundial II. A minha curta estadia no Campo do Tarrafal fez-me recordar do tempo doloroso e torturante que estivemos enclausurados na Cadeia do Laboratório Central Criminalístico de Luanda, em 1999, com os meus colegas do Grupo Parlamentar da UNITA: Manuel Savihemba, Carlos Alberto Calitas, João Vicente Viemba e Daniel José Domingos Maluka.


Tive a oportunidade de comparar fisicamente a estrutura interna do Campo do Tarrafal ao Laboratório Central Criminalístico de Luanda e toda a sua envolvência interna. Notei que não havia uma grande diferença entre os métodos utilizados no Tarrafal, no Auschwitz e no Laboratório Criminalístico de Luanda. Quando estive na Alemanha aproveitei a oportunidade de visitar o Campo de Auschwitz, que fica no Sul da Polônia. Dei conta que, nos três casos, a doutrina dominante era fascista, que consiste no seguinte: Reduzir o homem a zero; coloca-lo na condição desumana; quebrá-lo psicologicamente; atormentá-lo e debilitá-lo fisicamente; e deixá-lo morrer lentamente. A estrutura interna do Laboratório Criminalístico de Luanda é quase igual a do Campo de Reclusão do Tarrafal. A única diferença é de que, o Campo do Tarrafal ocupa um espaço muito vasto e é isolado; ao passo que, o Laboratório Criminalístico fica próximo do centro da cidade e a sua dimensão geográfica é menor.


Existe neste Laboratório Criminalístico as salas de torturas, salas de interrogatórios, espaço largo para tirar imagens e uma cave cheia de água, ligada ao cemitério da Santa Ana por um túnel. As vítimas são primeiro amaradas, torturadas e arrastadas à cave onde são forçados a ficar de pé dentro de água até ao pescoço. O detido fica ai durante horas até a exaustão e afoga-se na água. Dali, na calada da noite, os restos mortais são arrastados pelo túnel para o cemitério da Santa Ana, onde são atirados nas covas coletivas. As noites eram horríveis, ouvia-se gritos de torturas e matanças; as nossas celas estavam encostadas às salas de interrogatórios e de torturas; a minha cela e a cela do Deputado Daniel José Domingos Maluka estavam encostadas à cave aquática, e tudo que ai se fazia era perceptível.


Tristemente, nós eramos invadidos nas nossas celas constantemente por agentes armados com AK-47, e tiravam tudo que tínhamos nas celas. As nossas celas eram solitárias e de betão; de cerca de 2 metros quadrados; as fossas estavam dentro das celas; as portas são de ferro grosso e pesado; a circulação do ar dentro da cela passa por dois buraquinhos: um na porta, e outro no tecto; as camas são de betão liso; as paredes das celas estão eletrificadas e rebocadas com pedrinhas afiadas; ao encostar nelas dá choque; a canalização da cadeia é do sistema de gravidade; tanto pode-se baixar o nível de água ou levantá-lo; quando se levanta transborda as águas residuais (sedimentos) das fossas e inunda as celas; isso sufoca e obriga o preso ficar de pé e meter o nariz no buraquinho da porta para apanhar o ar; no tempo chuvoso há sempre tendência de inundar toda a cadeia, obrigado os detidos transportar os resíduos sólidos para o depósito.


Repare que, durante 10 meses da cadeia o governo não forneceu-nos nem água potável, nem comida, nem medicamentos e nem consultas médicas. As nossas famílias tiveram que criarem esquemas para nos fornecer tudo que precisávamos. Mesmo assim, enquanto em vez os Agentes da Segurança do Futungo de Belas vinham invadir as celas e juntava-nos numa sala que fica na entrada da cadeia, onde eramos ameaçados com armas de fogo para prestar depoimentos. A nossa prisão era gerido directamente por operativos do Futungo de Belas, que apareciam duas vezes ao dia para recorrer as informações através do grupo de oito agentes que foram introduzidos na cadeia a coberto de detidos. Esses elementos controlavam tudo que estivéssemos a fazer e o Chefe do Grupo elaborava os relatórios escritos e o operativo do Palácio Presidencial do Futungo de Belas vinha recolhê-los.


Veja que, nós fomos retirados das nossas casas muito cedo de manha nos dias 9 e 13 de Fevereiro de 1999, e cada um de nós foi conduzido ao Laboratório Criminalístico, sem retirar as nossas imunidades parlamentares. Lá, fomos lançados nas celas, as quais há mais de seis anos nunca foram varridas e nunca foram usadas. Aquilo estava cheio de poeira, lagartos, insectos, formigas, bichos e cobras; havia muitos mosquitos, marimbondos e salalés que invadiam as celas a partir do cemitério da Santa Ana. Foi um drama e ficamos bem terrorizados, ameaçados e torturados psicologicamente. No fundo, o objectivo final da nossa prisão era a eliminação física. Fomos acusados de «rebelião armada contra a segurança do Estado; tendo-se evocado a figura de, “flagrante delito,” de um suposto assalto á Cidade de Luanda, com um Exército, que dissera, se encontrava nos ardores da Cidade Capital».


Aliás, haviam dicas que nos chegavam na cadeia de que a nossa eliminação física já tinha sido tomada superiormente e faltava apenas o «timing» da sua execução. Só que, a pressão da Comunidade Internacional foi tremenda e o clima interno não foi tão favorável; penso que não havia «consenso» no seio da Direcção do MPLA para proceder a execução sumária dos Cinco Deputados da UNITA. Gostaria de dizer que, os meandros deste processo dos Cinco Deputados da UNITA (embora esquecido deliberadamente) são muito complexos e amanhã merecerão os estudos profundos sobre os contornos políticos, jurídicos, diplomáticos e militares deste Processo, que se integra na luta pela construção do Estado Democrático de Direito.


Convém afirmar que, os arquitetos deste Processo macabro foram as seguintes personagens: José Eduardo dos Santos – Presidente da República. Domingos Culolo – Procurador-Geral da República. Roberto António Victor Francisco de Almeida – Presidente da Assembleia Nacional. É uma cobardia quanto ao Doutor Roberto de Almeida que deixou os seus colegas ser presos arbitrariamente, maltratados, castigados e humilhados, sem tomar uma posição firme. Além disso, ele mandou remover dos Arquivos da Assembleia Nacional toda a documentação relacionada com este Processo. O que confirma que, «este Acto macabro foi feito deliberadamente, com má-fé e com dolo». Só o Estado terrorista pode agir assim contra os seus concidadãos. Aliás, alguém, de grande prestígio, alertava-nos que, «o leão não come as suas crias, e era aconselhável não ter ilusão».


Paradoxalmente, hoje estamos a assistir ao tratamento digno e humano que está sendo atribuído aos Deputados do Grupo Parlamentar do MPLA, que saquearam os Cofres do Estado e mergulharam o país na ruina. Eles estão merecer o cuidado e o respeito do Estado; os seus Processos são primeiro investigados, estudados, analisados e apurados pela Procuradoria-Geral da República antes de submete-los à Assembleia Nacional onde passam por trâmites legais das Comissões de Especialidades, até chegar ao Plenário, onde a decisão final é tomada para levantar as imunidades parlamentares. Infelizmente, por sermos da UNITA, nós não tivemos qualquer tratamento jurídico-legal; fomos arbitrariamente detidos a partir das nossas casas, sem respeitar os nossos estatutos de deputados, em pleno exercício de funções. Foi um acto escandaloso e humilhante conforme fomos atirados em carinhas abertas, em público, na rua, como se fossemos animais selvagens, levados ao laboratório criminalístico, ao lado do cemitério da Santa Ana. O povo, que nos elegeu, assistia pavidamente a este cenário macabro e cruel.


Porém, quando a pressão da Comunidade Internacional atingiu o nível insustentável, o Presidente José Eduardo dos Santos foi obrigado a tirar-nos da cadeia, à pressa, e conduzir-nos de imediato a uma Reunião Plenária da Assembleia Nacional. Só que, este Acto vergonhoso foi feito sem restituir as imunidades parlamentares que foram retiradas um mês depois da nossa prisão arbitrária. Além disso, consta no Acórdão do Proc. 05/99, do dia 14 de Outubro de 1999, do Tribunal Supremo, que fundamenta a “Soltura Provisoria,” nos seguintes termos: «…devendo os autos aguardar pela produção de melhor prova».


Infelizmente, até hoje, depois de 22 anos, a melhor prova ainda não foi produzida e continuamos sem a “Soltura Definitiva.” Gostaria de afirmar que, quando isso ocorreu o Senhor Presidente João Manuel Gonçalves Lourenço era o Presidente do Grupo Parlamentar do MPLA, e ele conhece bem todos os meandros deste Processo e é a pessoa mais indicada para velar pelos direitos humanos; melhorar as condições das cadeias; tratar humanamente os presos e os detidos; respeitar a Constituição e Lei; e, sobretudo, “responsabilizar” o Estado pelos seus Actos.


Fiz esta reflexão memorial no intuito de fazer retrospectiva, analisar o presente e olhar para o futuro. Isso para dizer que, devemos mudar as nossas mentalidades e os métodos de lidar com a integridade física e moral da pessoa humana, tratando-lhe humanamente, em pé de igualdade, sem qualquer tipo de discriminação, baseando-se na Constituição e na Lei. Pois, a “cidadania” é o «factor-chave» que congrega e une todos os valores culturais dos povos, num Estado-Nação, como Angola, que é composta por diversas Nações nativas, pré-colonial, que eram de facto Estados Soberanos. Cada um desses povos tem os mesmos deveres e pugna pelos mesmos direitos, liberdades e garantias – em pé de igualdade. Por isso, a “Justiça” é o «guardião da constituição», é indivisível, e deve ser igual para todos, exercida nos termos da Lei.