Luanda - Independentemente de toda hermenêutica necessária, o sentido, alcance e extensão de qualquer comando normativo, ou seja, toda interpretação que o hermenêuta oferece ao texto jurídico tem uma razão subjacente.

Fonte: Club-k.net

Todo jurista nas suas declarações, deve fazer uso da razão, que é uma maneira de compreender a realidade, elaborar explicações e expô-las de forma compreensível. Esta razão funciona com base em princípios.

 

Como poder explicar com fundamentos na razão a interpretação que o Governo de Angola está a oferecer ao Princípio do Gradualismo, previsto no artigo 242.º da Constituição da República de Angola?

 

O Princípio da Razão Suficiente afirma que tudo o que existe e tudo o que acontece tem uma razão para existir ou para acontecer, e isto pode ser conhecido pela nossa razão (capacidade de raciocinar). O Princípio da Razão Suficiente também é conhecido como Princípio da Causalidade por estabelecer conexões entre coisas, entre factos ou entre acontecimentos.

 

Indo na ideia geral fornecida pelo Princípio da Razão Suficiente, podemos formular as seguintes questões:

 

1 - Das modalidades funcional e territorial do Princípio do Gradualismo, qual delas oferece a interpretação que na unidade constitucional é melhor harmonizável?

 

2 - Qual das modalidades é capaz de ferir a concretização dos Direitos, Liberdades e Garantias Fundamentais, previstas na Constituição da República de Angola?

 

Gradualismo territorial significa instituir paulatinamente as Autarquias Locais, a medida que as localidades forem capazes do ponto de vista económico, financeiro, etc., justificarem a sua autonomia e o direito de concretizar suas liberdades constitucionais. De modo mais simples, significa dizer que, os municípios pobres não terão o direito de serem transformadas em Autarquias, da mesma forma que seus habitantes pobres poderão ver seus direitos vedados com fundamento na sua condição económica e financeira.

 

Gradualismo funcional é a institucionalização simultânea das Autarquias Locais em todo território nacional, ficando de modo paulatino a transferência das competências do poder central para o local.

 

Com base no Princípio da Razão Suficiente, que relações a institucionalização das Autarquias Locais estabelecem com outras normas constitucionais?

 

Com base nestas relações, qual modalidade responde o segundo questionamento?

 

A institucionalização das Autarquias Locais estabelecem relações com os seguintes comandos constitucionais:

 

a) Princípio da Dignidade da Pessoa Humana: tem como objectivo fundamental a construção de uma sociedade livre, justa, democrática, solidária, de paz, igualdade e progresso social e do respeito de tal princípio depende a soberania e independência (art.º 1.º da CRA);

 

b) Vontade do Povo vs Soberania Popular: nos quais se fundamenta o Estado Democrático de Direito, bem como todos seus desdobramentos (primado da Constituição, separação de poderes e interdependência de funções, unidade nacional, pluralismo de expressão, democracia representativa, etc.) (arts.º 1.º e 2.º da CRA);

 

c) Soberania: unidade e indivisibilidade territorial, escolha livre dos representantes (arts.º 2.º n.º 1 e 3.º n.º 1.º da CRA);

 

d) Não discriminação: promoção da igualdade de direitos e de oportunidades entre os angolanos (arts.º 21.º al. h) e 23.º da CRA);

 

e) Força jurídica da Constituição: aplicação e vinculação directa dos direitos, liberdades e garantias fundamentais (art.º 28.º CRA);

 

f) Participação na vida pública: direito à todos cidadãos a participação na vida política e na direcção dos assuntos públicos, directamente ou por intermédio de representantes livremente eleitos (art.º 52.º n.º 1.º da CRA);

 

g) Acesso a cargos públicos: direito conferido à todo cidadão de aceder em condições de igualdade e liberdade, aos cargos públicos, nos termos da Constituição e da lei (art.º 53.º da CRA);

 

h) Direito de sufrágio: direito de votar e ser eleito para qualquer órgão electivo do Estado e do poder local e de desempenhar os seus cargos ou mandatos, sem limitações da capacidade electiva, senão nos termos da Constituição e da lei (art.º 54.º da CRA);

 

i) Garantia geral do Estado: obrigação do Estado de reconhecer como invioláveis os direitos e liberdades fundamentais consagrados na Constituição, assim como o dever de criar as condições políticas, económicas, sociais, culturais, de paz, estabilidade, o livre exercício dos direitos e das liberdade fundamentais (art.º 56.º da CRA);

 

j) Proibição de restrição de direitos, liberdade e garantias: a restrição e limitação de direitos, liberdades e garantias só serão admitidas nos casos previstos na Constituição e na lei (arts.º 57.º e 58.º da CRA).

 

Como supra demonstrado, a institucionalização das Autarquias Locais com base na modalidade territorial, em obediência ao Princípio da Razão Suficiente, colide com disposições constitucionais fundamentais.

 

Do ponto de vista da hermenêutica constitucional, que Princípio de Interpretação se harmoniza ao Princípio da Razão Suficiente, de modos que tais colisões sejam afastadas?

 

Em rigor, esta harmonização só será possível se os legisladores na discussão da Lei de Institucionalização das Autarquias Locais, actuarem em conformidade ao Princípio da Unidade da Constituição.

Na realidade normativa angolana, este princípio orientador está previsto no n.º 1 do art.º 9.º do Código Civil Angola (CC), cujo enunciado diz expressamente: "a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstruir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico (...)".

Segundo a regra deste princípio, as normas constitucionais devem ser vistas não como normas isoladas, mas como preceitos integrados num sistema unitário de regras e princípios, que é instituído na e pela própria Constituição. Em consequência, a constituição só pode ser compreendida e interpretada correctamente se nós a entendermos como unidade, do que resulta, por outro lado, que em nenhuma hipótese devemos separar uma norma do conjunto em que ela se integra, até porque − relembre-se o círculo hermenêutico − o sentido da parte e o sentido do todo são mutuamente dependentes.

Aceito e posto em prática este princípio, os Deputados devem bloquear o surgimento de eventuais conflitos na interpretação deste preceito da Constituição, ao mesmo tempo em que se habilita a (des) qualificar, como contradições meramente aparentes, entre a modalidade funcional e territorial do Princípio do Gradualismo, na tentativa regular esta situação de facto.

Regista-se, ainda, que a rigor este princípio dá suporte, se não a todos, pelos menos à grande maioria dos outros cânones interpretativos, porque optimiza o texto da Constituição, por si só naturalmente expansivo, permitindo aos seus aplicadores a construir as soluções exigidas em cada situação hermenêutica.

Outro princípio de substancial relevância é o Princípio do Efeito Integrador.

Este princípio sustenta a ideia de que o intérprete deverá sempre que possível buscar soluções que propiciem a integração social e a unidade política na aplicação da norma jurídica, com respeito ao pluralismo existente na sociedade. Dito de outro modo, este cânone interpretativo orienta o aplicador da Constituição no sentido de que, ao construir soluções para os problemas jurídico-constitucionais, procure dar preferência àqueles critérios ou pontos de vista que favoreçam a integração social e a unidade política, porque além de criar uma certa ordem política, toda Constituição necessita produzir e manter a coesão sócio-política, enquanto pré-requisito ou condição de viabilidade de qualquer sistema jurídico.

Foi noticiado que a proposta de Lei de Institucionalização das Autarquias Locais foi retirada da discussão na especialidade, por falta de consenso entre o MPLA e a UNITA. A retirada visa o estabelecimento de pontos convergentes entre as duas formações políticas, dos quais resultará a interpretação (política?) que se oferecerá ao Princípio do Gradualismo, previsto no art.º 242.º da Constituição da República de Angola.

Sem intenção de ensinar o “Pai Nosso ao Vigário”, lembramos aos dignos legisladores, intérpretes naturais da Constituição, que existem limites da interpretação constitucional.

De salientar que a questão dos limites da interpretação não é um problema próprio da hermenêutica jurídica, nem muito menos da chamada interpretação especificamente constitucional, ele aplica-se em todos os domínios da comunicação humana. No âmbito da hermenêutica jurídica, em geral, e da interpretação constitucional, em particular, a ideia de se estabelecerem parâmetros objectivos para a actividade hermenêutica deriva imediatamente do Princípio da Segurança Jurídica, que estaria comprometida se os aplicadores do direito, em virtude da abertura e da riqueza semântica dos enunciados normativos e a pretexto de adaptá-los às sempre mutantes exigências sociais, pudessem submetê-los a novas leituras à revelia dos cânones interpretativos e do comum sentimento de justiça.

No início deste texto frisamos que o ponto de estrangulamento entre a UNITA e o MPLA está no sentido semântico da expressão “gradualismo”. Nos domínios da semântica geral, embora admitindo que, em princípio, todo texto possibilita múltiplas interpretações, existem critérios para verificar a sensatez das interpretações e, assim, descartar a ideia de que todas sejam igualmente válidas, pois algumas podem se mostrar indubitavelmente erradas ou clamorosamente inaceitáveis e assim devem ser consideradas.

Que sentido deve-se dar ao Princípio do Gradualismo? Funcional ou Territorial? É uma simples questão de semântica ou esconde visões políticas? A combinação dos Princípios da Razão Suficiente, Princípio da Unidade da Constituição e o Princípio do Efeito Integrador respondem integralmente o antagonismo semântico, entre as duas forças políticas.

Como regular a institucionalização das Autarquias Locais ignorando o Princípio Filosófico da Razão Suficiente, e seus desdobramentos na hermenêutica jurídica?