Luanda - Integra da posição do jurista Luis Nascimento defendida em 2014 sobre a constituição na qual o autor apelava para a sua revisão e mostrava algumas incongruencias.

Fonte: Club-k.net

A Constituição de 2010 constitui o suporte legal do triunfo da restauração autoritária obtido com os resultados das eleições legislativas amplamente fraudulentas de 2008 que, opondo-se e subvertendo o Estado democrático de direito, consagrado pela Lei Constitucional de 1992, impôs contra a vontade da Nação uma nova ordem Constitucional da conveniência do então Presidente da República, José Eduardo dos Santos mas também do actual João Manuel Lourenço.

A Constituição de 2010 foi elaborada e outorgada visando consagrar as eleições legislativas de 2008 em que o então Presidente da República passou a ser designado como cabeça da lista do Partido mais votado e que esse modo de eleição seria aplicado retroativamente levando em consideração que o cidadão José Eduardo dos Santos tinha sido o cabeça da lista do Partido mais votado. Não obstante, as leis, em princípio, apenas aplicarem-se para o futuro, a Constituição de 2010 teve, em relação ao Presidente da República, aplicação retroactiva e, por isso, a sua legitimidade também passou a ser retroactiva, ou seja, desde 2008.

A Constituição de 2010 consagra, portanto, um sistema de governo autoritário embora tenha um catálogo de direitos muito mais explícitos que a anterior Lei Constitucional de 1992.

Há, pois, uma contradição entre a Constituição no tocante aos direitos fundamentais e à garantia da Constitucionalidade e a Constituição no que diz respeito aos direitos do Presidente.

Segundo a Constituição, o Presidente da República de Angola, acumula as funções de titular do Poder Executivo e Comandante em Chefe das Forças Armadas Angolanas (art. 108.º da CRA); nomeia o Juiz Presidente do Tribunal Constitucional e demais juízes do referido Tribunal (alínea f); nomeia o Juiz Presidente do Tribunal de Contas, o Juiz Vice-Presidente e os demais Juízes do referido Tribunal (g); nomeia o Juiz Presidente, o Vice-Presidente e os demais Juízes do Supremo Tribunal Militar (h); nomeia e exonera o Procurador-Geral da República, os Vice-Procuradores Gerais da República e os Adjuntos do Procurador-Geral da República, bem como os Procuradores Militares junto do Supremo Tribunal Militar (i); nomeia os membros dos Conselhos Superiores das Magistraturas (t) e designa os membros do Conselho da República e do Conselho de Segurança Nacional. Compete-lhe ainda indultar e comutar penas e é, por exemplo, o único com competência para assinar e ratificar os tratados, acordos e outros instrumentos internacionais.

A eleição do Presidente, simultânea com a dos Deputados à Assembleia Nacional (art. 109.º), faz dele, presidente e primeiro candidato do Partido vencedor, o chefe da maioria parlamentar e lhe permite o domínio total da Assembleia Nacional.

De acordo com o constitucionalista português Jorge Miranda “Se não há uma limitação de poderes de quem detém o exercício da governação, podem estar em risco as liberdades fundamentais dos cidadãos”, “pois, o esquema de limitação de poderes é uma garantia importante dos direitos fundamentais”.

Este constitucionalista português constata e, em meu entender bem, que “Existe uma complicação no novo sistema Constitucional Angolano. Atribuem-se na Constituição da República de Angola, ao Presidente da República todas as características de um sistema presidencial, mas não o voto directo de um eleitor que poderia fazer uma escolha”. Ora, de acordo com o referido Constitucionalista, a ideia por trás da eleição automática do Presidente da República só pode ser uma: a concentração de poderes. A Constituição de 2010 consagra um sistema que perpetua o poder do Presidente”.

Este sistema autoritário de tipo consular, no dizer do cientista político Nelson Pestana “Bonavena”, em que poder se concentra numa só pessoa, coloca a esta mesma pessoa o primeiro principal desafio, que é o do cumprimento da própria Constituição.

Relativamente às violações da Constituição pelo Presidente da República, Nelson Pestana destaca o facto do Presidente da República ter ignorado a decisão do Tribunal Constitucional que considerou inconstitucional o n.º 3 do art. 241.º da CRA, ou seja, “a nomeação do Vice-Presidente da República pelo Presidente até a realização das próximas eleições gerais”, na medida em que a actual Constituição não permite a possibilidade de nenhum angolano exercer a mais alta magistratura do País a não ser por via do voto popular.

Quanto a mim, gostaria de destacar, a título meramente exemplificativo, mais duas violações, entre outras.

Desde logo, violação ao art. 47.º da CRA (Liberdade de reunião e manifestação) que prescreve que “É garantida a todos os cidadãos a liberdade de reunião e manifestação pacífica e sem armas sem necessidade de qualquer autorização”, quando, no dia 15 de Abril de 2011, no seu discurso na reunião do Comité Central do seu Partido, o Presidente da República lançou aos seus zelosos colaboradores, apoiantes e subordinados, um apelo à denúncia de alegados “oportunistas, intriguistas e demagogos que querem enganar aqueles que não têm conhecimento da verdade…”, nos termos seguintes: “Para essa gente, revolução quer dizer juntar pessoas e fazer manifestações, mesmo as não autorizadas, para insultar, denigrir, provocar distúrbios e confusão, com o propósito de obrigar a polícia a agir e poderem dizer que não há liberdade de expressão e não há pelos direitos”.

Foi de resto, a partir desta violação pelo Presidente da República que o Jornal de Angola, no seu Editorial de 16 de Abril de 2011, posicionando-se na linha da frente do “apelo oportuno do Presidente” definiu como seria o combate, nos seguintes termos: “Se os intriguistas e oportunistas têm dúvidas, que estiquem a corda. Vão ter a resposta adequada. Não dos poderes públicos mas dos angolanos que lutam corajosamente pela reconstrução da pátria e não podem permitir que aventureiros sem escrúpulos ponham em causa tudo o que conquistamos nos anos de paz”.

Foi através da violação pelo Presidente da República deste preceito Constitucional que o comportamento das autoridades policiais, forças de segurança e das milícias por essas forças enquadradas tornou-se mais violento culminando com detenções gratuitas (os manifestantes foram absolvidos em todos os julgamentos, se não em primeira instância – Tribunal Municipal – em segunda instância – Tribunal Supremo, por falta de provas de terem cometido qualquer espécie de crime), agressões violentíssimas de que são exemplos as sofridas pelo então Secretário-geral do Bloco Democrático, o companheiro Filomeno Vieira Lopes e do membro do Conselho Nacional, o sindicalista Manuel Victória Pereira, que nem sequer se encontravam em manifestações, culminando com os assassinatos bárbaros de Alves Kamulingue e Isaias Cassule.

Violação igualmente dos artigos 21.º, alínea h) e 23.º (Princípio da Igualdade) da CRA, pois o PR, na veste de titular do Poder Executivo, em vez de “promover a igualdade de direitos e de oportunidades entre angolanos, sem preconceitos de origem e de filiação partidária”, o que efectivamente as suas políticas acentuavam é o aumento exponencial das desigualdades sociais tornando os ricos cada vez mais ricos e os pobres e remediados aumentando a um ritmo superior ao do crescimento do PIB numa base real, ao promover “a acumulação primitiva do capital” e o “crescimento e desenvolvimento social a diferentes velocidades”, ou seja, ao promover um modelo de acesso e repartição da renda petrolífera, que tem beneficiado essencialmente a elite política e empresarial angolanas.

Para terminar gostaria exprimir a minha convicção de que os angolanos perderam em todos os sentidos com a outorga da Constituição de 2010, constituindo-se a mesma um autêntico regresso ao passado em relação à Lei Constitucional de 1992, pois, perante o autoritarismo, omnipresença do Presidente da República e atrofismo dos restantes poderes (Parlamento e Tribunais), os direitos, liberdades e garantias permanecem letra morta.

Pelo acima exposto e porque a iniciativa de revisão da Constituição compete, para além do Presidente da República, à 1/3 dos Deputados à Assembleia Nacional em efectividade de funções, urge que os Partidos da Oposição iniciem a luta para fazerem das próximas eleições gerais de 2017, um autêntico referendo para a revisão da actual Constituição, consagrando nela a efectiva separação e interdependência dos órgãos de soberania, a eleição do Presidente da República, o Parlamento como órgão efectivamente representativo de todos os angolanos e titular por excelência do Poder legislativo, bem como a independência e autonomia dos tribunais.

Luanda, 05 de Fevereiro de 2014

Luís Nascimento
(Secretário Nacional para os Assuntos Parlamentares do Bloco Democrático)