Luanda - Coloco a minha foice em seara que não é alheia, mas sim transversal a todos os angolanos, genuínos ou não, como também se tem dito. Refiro-me à problemática da dupla nacionalidade, suscitada surpreendentemente pela direcção do MPLA – não com a seriedade que um assunto fracturante e melindroso como este deve merecer ao ser abordado, mas, conforme vimos, de modo espaventoso, paroquial e envolvendo um corporativismo político insano.

Fonte: Angolense

ONDE A PORCA TORCE O RABO

De súbito, foi como se tivéssemos um elefante adentrando em toda a sua corpulência numa loja de porcelanas: partindo tudo e mais alguma coisa, não sobrando nada de útil para ninguém. O móbil, está mais do que evidente, foi correr atrás não de verdadeiros benefícios para a sociedade como um todo, mas o de investir contra um adversário político. Um leviatã circunstancial que ameaça o seu longevo poder: a UNITA e o seu líder Adalberto da Costa Júnior, que é o verdadeiro alvo, mas que como todos sabemos já se desfez da outra nacionalidade de que era portador.


Nesta faceta, poder-se-á dizer então que este é um assunto diluído, morto e enterrado. Contudo, num plano mais geral de análise, a problemática da dupla nacionalidade tem pano para manga. Ou seja, para sermos francos, ela bem pode prestar-se a uma discussão diferente, mas sem o viés sórdido e deselegante que o partido maioritário angolano lhe está a imprimir, com propósitos políticos escusos, levando-o a entroncar com outros temas que lhe são colaterais – questões de etnias e raças, dentre outras.


E é nesse ponto que está o busílis. É que, olhando pelo retrovisor, este é um assunto que atravessa longitudinalmente a história do MPLA, desde a sua génese como movimento de libertação até à sua ascensão como partido governante já no pós-independência; no entanto, a sua liderança sempre se esquivou a uma abordagem franca e aberta do mesmo. Optou por soterrá-lo, sem se importar com as consequências e o risco de isso levar a clivagens maiores.


Foi o que sucedeu no decurso dos anos 60, quando Viriato da Cruz quis que o “dossier étnico” no interior do movimento fosse frontalmente abordado pelo seu comité-director. Mas sabe-se da reacção negativa que Agostinho Neto teve, escudando-se numa pseudolegitimidade que na verdade mais não era que uma liderança autocrática, o que acabou por forçar Viriato a um martirizante autoexílio do qual já não regressaria.


Em 27 de Maio de 1977 foi o clímax, num caldeirão em que à problemática etno-rácica aglutinaram-se aspectos ideológicos, degenerando tudo num banho de sangue.
Depois disso, naquilo que se pode classificar como a sua “era medieval”, o MPLA mergulharia num angustiante sufoco dessas questões que se tornaram em rigorosos tabus, apenas balbuciados – esparsa e episodicamente nos corredores do medo – pelos seus militantes de base e por um ou outro dirigente menor.


Pouco antes do final da guerra e até pouco depois do armistício com a UNITA vislumbrou-se um período em que tais assuntos poderiam ter sido debatidos. Enquanto jornalista com responsabilidades editoriais nos jornais Angolense e no seu sucessor Semanário Angolense, ao serviço dos quais estive, estou a lembrar-me que em várias ocasiões estas publicações trouxeram à tona – como autênticas pedradas no charco – assuntos desta natureza, dando o mote para eles serem discutidos pelos políticos, seus partidos e pela sociedade em geral.


Além da dupla nacionalidade, chamámos a atenção para o que estava mal em matéria de equilíbrios rácicos nas instituições públicas e privadas, numa altura em que a isso se podia considerar racismo escamoteado e camuflado. Questionámos sobre se era honesto e patriótico termos, em lugares de governação, como se fossem cidadãos honrados, indivíduos que haviam andado de mãos dadas com a antiga polıcia secreta colonial. Denunciámos o início da pilhagem dos recursos do Estado e a consequente formação de um novo-riquismo em bases ilícitas. Indicámos a necessidade imperiosa de se frear a corrupção e haver uma partilha com maior equidade da riqueza nacional. Monitorámos o que estava mal e desequilibrado em relação à composição étnica do governo, já que como Estado de pós-conflito a premissa era o seu equilíbrio.


Na abordagem de todos estes assuntos, a ideia era tão-somente a de levar a que o País, saído de um prolongado, sangrento e dilacerante conflito armado, encarasse a reconstrução nacional não apenas no sentido estritamente material, mas em alinhamento também com o que poderíamos chamar de reconstrução das almas, o sarar das feridas, nisso se incluindo obviamente o debate deste tipo de questões frontalmente e sem quaisquer tibiezas, algo que o MPLA jamais elencou na sua agenda magna de desafios e preocupações. Em meados dos anos 2000, aquilo a que designou de “Agenda Nacional de Consenso” trazia zero relativamente a estas matérias.


A questão da Lei da Nacionalidade e sua relação com a dupla cidadania era então trazida à mesa, pelas páginas do Angolense, sem quaisquer propósitos xenófobos e ou rácicos como está a suceder agora. Pretendíamos, isso sim, chamar a atenção da sociedade para o cenário de promiscuidade e banalização da identidade nacional que, a ser prosseguido, poderia redundar em problemas futuros para a liderança do país.


Tal como hoje ainda continua a verificar-se, e provavelmente em proporções maiores, pairava desde 1992, um cenário de incertezas neste país que levou muita gente graúda a acautelar o futuro no estrangeiro. É uma verdade insofismável. Não nos referimos aos angolanos comuns que por conta da guerra decidiram, aos trancos e barrancos e talvez apenas para salvar o pêlo, exilar-se, levando uma vida lá fora que na maioria dos casos nem por isso foi fácil. Também não nos referimos aos militantes da UNITA que tiveram de fazer recurso a nacionalidades estrangeiras para levarem a cabo a luta que desenvolviam.
Referimo-mos, sim, a inúmeros dirigentes, do lado da barricada do partido no poder, que adquiriram nacionalidades e passaportes estrangeiros por razões bem menos nobres: seja para aforrarem as fortunas resultantes do saque ao erário público, um “desporto” que já então começavam a praticar, seja simplesmente para se “acoitarem” em paragens mais seguras caso as coisas por cá dessem para o torto.


Portanto, levantáramos a problemática dos “duplos” não para agitar a bandeira fundamentalista do chauvinismo e da xenofobia. Mas por causa dessa promiscuidade que já ameaçava transformar Angola na galinha de ovos doirados de uns tantos que, posicionados em lugares de governação, nem por isso estavam genuinamente preocupados com o seu progresso espiritual e material no futuro.


Este é um cenário que infelizmente persiste, mas ao qual o partido responsável pela governação do país foi fazendo vista grossa.


Passaram-se duas décadas e este problema dos “duplos” continua realmente a colocar-se. Mas a sua resolução já demanda outro modus operandis, recomendando-se mais sabedoria, tacto e sensatez a lidar com o assunto. Afinal, nesse meio tempo verificaram-se mutações sensíveis no modo de ser dos angolanos, sobretudo entre a nova geração, muitos dos quais são detentores de uma cultura moldada por uma visão mais em consonância com os fenómenos de globalização do Mundo, onde a tacanhez do passado já não tem lugar.


Estes são tempos de corte com o passado, de olhar para a questão da dupla nacionalidade de maneira diferente, perscrutando bem as suas virtudes (que também as tem) sem necessidade de se incorrer em actos que fomentem e exacerbem sentimentos xenófobos.


À nova geração de políticos têm de ser cada vez mais inculcados noções e sentimentos pátrios. Em respeito estrito pelos marcos da Constituição da República, quem quiser seguir carreira política deverá estar compenetrado que o exercício das mais altas funções em órgãos de soberania está realmente vedado a angolanos de dupla nacionalidade.


No entanto, não se confundam os termos: em si mesma a dupla nacionalidade não constitui nem deverá constituir crime. Existem razões fundadas que levarão sempre a que muitos angolanos optem por adquirir alguma nacionalidade estrangeira, portando-a em paralelo com a angolana. Eles podem tão-somente casar-se com cidadãos estrangeiros e isso os habilitar à nacionalidade do cônjuje.


Ponderosas razões de política externa e até mesmo de estratégia empresarial podem justificar que o próprio Estado Angolano tenha interesse em que haja angolanos que portem igualmente cidadanias estrangeiras. A recíproca também é verdadeira: podemos ter necessidade – agora sustentada em motivações menos suspeitas e mais nobres e honestas – de novos “Pierre Falcone”. Por que não? O lobbyng internacional não constitui crime.
A grande Nação Angolana que se pretende construir deverá continuar a conviver com a diáspora e comunidades angolanas no exterior, que já são razoavelmentes extensas. Obviamente, são muitos os angolanos que nessa condição posuem cidadanias estrangeiras, sem que por isso se lhes deva coartar direitos e deveres como cidadãos nacionais.


Repito, a tudo isso têm de estar atreladas sólidas convições e motivações patrióticas, o que só se obtem por via de processos estruturantes de natureza educacional e devidamente consolidados, pois são estes que formarão um novo Homem, imbuído de uma nova consciência e preparado para as necessidades e estratégias que o futuro demanda.


Faz todo o sentido trazermos à colação o exemplo de Israel, cujo patriotismo é exaltado com uma imanência tal, que faz com que os israelistas em geral não posterguem a sua identidade onde quer que residam. Ao ponto de muitos jovens israelitas, mesmo residindo no estrangeiro, não se coibirem de ir a Israel cumprir o serviço serviço militar, sendo tal uma exigência impreterível para o caso de pretenderem um dia servir em cargos públicos relevantes na pátria-mãe.


Em suma, o que está em causa não é propriamente passar a ideia de uma devassa às origens das pessoas. É uma questão de afectos, pois até há pessoas que vêm de fora e se afeiçoam e nutrem uma paixão por Angola em maior grau do que muitos que se intitulam “autóctones”.