Luanda - Entrevista com Bernardo Castro, Activista p/ Direitos humanos na Perspectiva Fundiária


Ck- Nosso convidado é o Director Executivo da Rede Terra. Sabemos que a Rede realiza estudos, advocacia social, monitoria, produz material e promove formações. Sr. Bernardo Castro (BC), como é a situação de direitos fundiários em Angola?


BC- No plano formal, embora, não tornados públicos alguns regulamentos específicos o que tem dificultado também a interpretação da lei de terras estamos, de certo modo, bem servidos porque ampliado o leque de direitos fundiários contrariamente à lei antiga. No plano material entenda-se, prático, temos enormes problemas.



Ck- Que natureza de problemas num país em franco crescimento?




BC- O processo de gestão de terras em Angola não é transparente. O instituto geográfico e cadastral de Angola que nos termos da lei é o órgão técnico de gestão de terras e com responsabilidades de instrução de processo e organização da base dados está apagado. Só existe ao nível de capitais das províncias e sem recursos bastantes para conduzir com eficácia o processo.  



Ck- Quer dizer com a expressão «não transparente» que o rentável negócio imobiliário está viciado de ilegalidades?



BC- Sei que algumas demolições são ilegais e presididas por algumas empresas ou projectos privados maximizando o lucro decorrente do negócio imobiliário; sei ainda que se desconhecem os preços praticados porque não foi publicado o Despacho sobre a Tabela de preços da terra. A única tabela de preços que conheço é dos serviços que o Instituto geográfico e cadastral de Angola deve praticar nos actos de demarcações e outros. Portanto, não se sabe quanto o país ganha com a venda de terrenos a essas empresas e pessoas singulares. Digo ainda não transparente porque a gestão racional e sustentável de  recursos e, no caso, espaços biofísicos deve dialogar incontornavelmente com o elemento humano. As nossas estatísticas estão desactualizadas assim como o cadastro. Portanto, o governo não tem o número exacto da sua população; não sabe, por conseguinte, quantos metros ou kilómetros ao quadrado cada um ocupa agora e daqui a 20 anos. É preciso não ignorar a densidade populacional na gestão de recursos. O ordenamento do território não foi realizado que nos termos da lei do ordenamento do território deve disciplinar as mais diversas formas de ocupação e aproveitamento dos solos segundo as suas múltiplas aptidões. Mais, não existem planos directores e a viola-se o princípio da participação popular na produção e implementação de projectos de interesse nacional, sobretudo, em matéria de terras. Caro jornalista é a tudo isso que chamo de processo não transparente. 



Ck- O Estado através das Administrações municipais começou com o processo de registo de pessoas para efeitos de atribuição de terrenos em 2009. O que se lhe oferece comentar?




BC- Sempre chamei atenção para o envolvimento do instituto geográfico e cadastral Angola na Cartilha que o Jornal de Angola publicou. O resultado é o fracasso. Já em anos anteriores uma empresa que não importa aqui citar tinha recolhido dinheiro aos cidadãos e nada se viu. Voltando ao caso, e para ilustrar como é que as próprias Administrações não dominavam os processos e procedimentos segundo a lei nova enquanto, a Administração da Samba pedia certos documentos que só eram atendíveis à luz da lei antiga a Administração de Viana ou Kilamba-Kiaxi pedia outros. È o tipo de gestão que se faz. Muitas instituições do Estado moveram-se para uma brincadeira destas. Portanto, só depois de desencadeado o processo e despertadas as expectativas dos cidadãos é que o governo dá conta que o plano era insustentável porque mutiladas as suas bases. É pena.



CK- A Rede Terra defendeu a propriedade originária da terra pelo povo. É sustentável esta ideia?




BC- Tornei público essa opinião através da Rádio Ecclesia, mas olhando um pouco para os estudos realizados por alguns especialistas em 2004 compreendo que mais do que uma opinião é convicção da grande maioria da nossa população que a terra é uma dádiva de Deus que passa de geração em geração cabendo apenas aos Estados através de governos geri-la para o bem de todos. O Estado angolano provou durante os 30 anos intencionalmente ou não a sua incapacidade numa gestão menos conflituosa e transparente da terra. Olha que quando o colono se instalou, compulsivamente, desterrou as nossas populações, destruiu e matou. Com a independência muitas famílias continuam, ainda hoje, nas encostas de montanhas porque impedidas de explorar as terras que hoje deveriam ser protegidas pelo domínio útil consuetudinário porque de seus antepassados. Eu sou do Waku-Kungu e falo isso com propriedade. Portanto, infelizmente, temos um Estado cujas instituições são corruptas. Atendem mais os interesses de pequenos grupos associados ao poder politico ou militar contra as legítimas aspirações e interesses das nossas populações que são confrontadas com a pobreza associada também à insegurança da posse da terra.



CK- Não acha grave essa afirmação?


BC- Grave é  morrerem pessoas ou expô-las ao relento quando se promovem demolições ilegais. Os últimos relatórios sobre a governação em Angola provam a posição péssima em que nos encontramos. Então, não ouviu que mais de 500 certificados até ao nível superior são falsos aquando do concurso para a docência? Este Estado é de imoralidades onde a classe dirigente chama a si a todo o custo a riqueza contra a miséria da população. 



CK- Os nossos sobas em meio rural já possuem os seus títulos?



Deveria perguntar aos órgãos legalmente competentes para a titulação das comunidades rurais. Entretanto e com profunda tristeza confesso-lhe que as terras de famílias comunitárias em meio rural ainda não foram demarcadas nem tituladas. Em resultado, recebo queixas de muitos sobas por verem as suas terras esbulhadas. Dentro das terras rurais comunitárias encontramos grandes fazendas cujos fazendeiros, em muitos casos, não conseguem levantar na comunidade uma escola. Vá à Kibala e em outros municípios para conferir essas violações. O direito à terra no domínio costumeiro é vulnerável ou seja assemelha-se ao que ouvi falar do tempo colonial. Por isso, queremos angariar fundos para não só minimizarmos essas e outras violações à lei de terras como também sensibilizar as populações para que denunciem práticas lesivas aos seus direitos legalmente protegidos.



CK- Vemos esse manual intitulado Anotações à Lei de Terras. É vossa produção?



BC- Ainda bem. Esse é apenas exemplo do material que produzimos. Trata-se de um financiamento da União Europeia que por constatarmos enormes conflitos de interpretação da lei de terras entendeu-se produzir esse instrumento embora fora dos prazos inicialmente acordados por força do processo constituinte que ocorreu no país. Facilitará a compreender o espírito e letra de algumas disposições menos claras ou obscuras. 


CK- O teu trabalha compensa?


BC- Trabalhar em favor dos mais vulneráveis ou indefesos para mim é também uma missão evangélica. Veja o grupo San em Angola. Perdeu grande parte da sua terra e é discriminado. Quem protege esse grupo minoritário que quando visitei em Cacula alguns membros pediram para que a sua língua tivesse dignidade como as outras no espaço da Rádio Ngola Yetu. Essa população nem dinheiro tem para tratar Cédulas de Nascimento para si e seus filhos. Portanto, é uma insiginificante contribuição que presto e peço aos líderes religiosos que deixem de brilhar com o último tostão dos pobres e se juntem a nós. É preciso uma nova consciência e ordem social. Temos de compreender que a terra é património da humanidade. Dela depende a nossa vida que não deve ser por ambição de uns espezinhada de qualquer forma. Cada um merece um pouco dessa terra e de outros recursos. Infelizmente, quando falamos dessas coisas muitos nos perseguem. Não preciso de ter coragem para falar a verdade. É assim que um dia quando ainda tinha os meus 17 anos o Frei João Domingos ensinou-me, pessoa por quem tenho muito respeito e admiração.