Luanda - É sabido que a revisão constitucional que deu origem a nova Lei Constitucional foi marcada pela violação de um dos limites materiais da Lei Constitucional revista. O que provocou uma grave descontinuidade a base formal da constituição angolana e materializou um verdadeiro golpe constitucional revelando a triste incapacidade dos angolanos, sobretudo os familiarizados com o poder político, em manter compromissos colectivos na base da legalidade.


Fonte: jukulomesso.blogspot.com


ImageSendo a constituição a base sócio-cultural expressa pelo sentido de compromisso colectivo mantido durante séculos de existência dos povos de Angola e em cuja complexidade assenta a identidade nacional dos angolanos, a Lei Constitucional surge como a forma escrita ou legal deste compromisso assumido desde os nossos ancestrais e construído com múltiplos sacrifícios entre guerras e mortes, muitas das quais com marcas profundas na alma de cada angolano. Daí que embora o movimento constitucionalista universal seja tributário da revolução burguesa que projectou a ideia do pacto social escrito dos povos com o derrube do absolutismo simbolicamente transparente no despotismo exercido pelo Rei Luís XIV e celebrizado com a máxima “L´Etat cest moi!”, a ideia de constituição seja tão antiga quanto a existência das primeiras sociedades humanas organizadas. A Constituição é difusa comportando valores maleáveis as circunstâncias e exigências históricas dos povos no seu processo evolutivo reflectindo por fim o seu inconsciente político colectivo. É a dimensão abstracta dos laços fundamentais ou a matriz, se quisermos, das relações de convivência perene que se tornam concretas com a Lei Constitucional. A Lei Constitucional é assim o documento escrito que reflecte os princípios unanimemente escolhidos pelo povo do manancial de valores incorporados na Constituição. A Lei Constitucional é a dimensão jurídica da Constituição enquanto dimensão política do compromisso de coexistência pacífica e progressiva dos povos num mesmo espaço territorial, embora o legislador constituinte prefira a terminologia Constituição da República para a nova Lei.


A revisão constitucional, como mecanismo através do qual é alterado o texto da Lei Constitucional em benefício da sua adaptação histórica, é na essência o processo de conformação entre a Lei Constitucional e a Constituição vindo daí a identificação da vontade da maioria popular ao seu texto pela alteração do seu conteúdo. Os limites surgem para estabelecer fronteiras entre os valores maleáveis e os não maleáveis. Estes últimos são o garante da estabilidade política sem a qual é impossível a manutenção do vínculo da colectividade política. É por isso que a descontinuidade provocada na Lei Constitucional vem abalar a estabilidade deste compromisso ancestral traindo profundamente o povo, seu destinatário. O legislador constituinte reconhece a violação do limite material na nova Lei Constitucional quando ultrapassando a inviolabilidade da forma de eleição dos órgãos soberanos admite a existência de órgãos de soberania não elegíveis (alínea h) do art.º 236º). Um verdadeiro desastre político-constitucional que cumpre ser resolvido pelas próximas gerações de legisladores constituintes sem compromissos com práticas ilegais na de gestão de interesses colectivos. De todo o modo, é a Lei Constitucional vigente, assim determinada pela ditadura parlamentar do partido no poder que a legitimou com a necessária cumplicidade negativa (por inacção) da oposição civil gerada pela sua apatia política e é obrigação da nossa geração administrar as suas consequências presentes.

 

A Lei Constitucional actual comporta limites formais, materiais e pela primeira vez na história constitucional um verdadeiro limite temporal expresso pela condição de revisão da lei magna decorridos 5 anos após a última revisão (art.º 235º, n.º1), já que a anterior Lei Constitucional previa a sua revisão a todo o tempo condicionado pelo pedido de um mínimo de 10 deputados (vide: art.º 158º, n.º 2 - Lei Constitucional aprovada ao abrigo da Lei n.º 23/92 – Lei de Revisão Constitucional) como ainda é mantido no novo texto magno. Os limites formais mantêm a base substancial da anterior Lei Constitucional (a aprovação das alterações a Lei Constitucional passou a ser condicionada por 2/3 de deputados em efectividade de funções mantendo a ideia de que o Presidente da República não pode recusar a promulgação de Leis de Revisão Constitucional – art.º 234º, n.º 1 e 2) sendo de notar apenas as alterações óbvias no leque dos limites materiais (art.º 236º) que gozam igualmente de um incremento de elogiar com os novos limites consagrados como o respeito pela forma republicana de Governo; pela autonomia local – limite material claramente positivado para proteger de futuro as autarquias locais – e pela independência dos tribunais na revisão da Lei Constitucional.


A revisão de 1991 sobre a Lei Constitucional como última presença da Constituição Revolucionária de 1975 não previu quaisquer normas relativas a revisão da própria Lei Constitucional tal era a falta de percepção jurídica do Estado própria dos sistemas centralistas de poder agenciada a sollo pelo MPLA. Estas nascem pela primeira vez com a revisão que se opera 1992 na sequência dos acordos de Bicesse. E nascem condicionadas por três limites (temporal, formal e material) onde os limites temporais não surgem de forma expressiva dando-se maior destaque aos limites materiais devido a preocupação que as duas forças beligerantes obreiras da II República, embora questionável, tinham em relação a protecção dos seus interesses constitucionais. A Revisão da Lei Constitucional podia ser operada a todo o tempo (art.º 158º n.º 3) – não havendo aqui qualquer limite temporal, com a excepção daquele que proibia a revisão da constituição em situações de emergência ou estado de sítio (art.º 160º do referido diploma constitucional). O interesse que presidia tamanha leveza na positivação dos limites temporais era sem dúvidas a percepção provisória da Lei Constitucional que cada um dos partidos políticos (UNITA e MPLA) tinha durante o processo de revisão. Cada partido julgava vir a alterar a Lei Constitucional tão logo alcançasse o poder político que julgava absolutamente certo de aceder dada a popularidade junto do eleitorado reclamada dos dois lados, pelo que era de aliviar a pressão dos limites temporais sobre tais pretensões.


O limite temporal introduzido na nova Lei Constitucional é resultado de um exercício político de mau feitio que pretende proteger o novo modelo de legitimação do Presidente da República enquanto interessar ao regime no poder. Na provável visão estratégica político-partidária e eleitoral de seus mentores o 5º ano, em que é possível uma revisão da Lei Constitucional, coincide com o curso do segundo e último mandato regular do actual titular do cargo máximo do executivo. Fica assim salvaguardada e segura a elegibilidade de JES a boleia dos créditos eleitorais de um MPLA cada vez menos interessado em manter o seu mandatário político a testa dos destinos da nação. É uma façanha que passou para certificar a incapacidade dos partidos da oposição civil em discutir assuntos de fundo político-normativo e determinar um poder legitimado para concretizar planos de médio prazo assentes na instauração de uma burguesia forte que condicione o exercício do poder político de futuro. É claro que os poderes de revisão constitucional reconhecidos a todo o tempo a Assembleia Nacional limitam-se a alterações pontuais e que não coloquem em risco a estabilidade do partido que exerce a ditadura parlamentar e como tal nunca será exercido contra a cláusula pétrea revista, mantendo assim incólume os interesses constitucionais do actual regime.


A semelhança do que se recomendou para a alteração das cláusulas pétreas pela aprovação de referendos constitucionais que possibilitem a revisão da Lei Constitucional nos termos em que foi feita (vide: www.jukulomesso.blogspot.com/comentandoabelchivukuvukueraularaujo), é de recomendar o pedido de inconstitucionalidade parcial ao Tribunal Constitucional da actual Lei Constitucional para, sendo declarada, permitir a retoma da continuidade constitucional pela introdução de referendos constitucionais que permitam a introdução regular de órgãos soberanos não elegíveis. Em relação ao Presidente da República a boleia de mandatos anteriores não confirmados não geraria neste contexto qualquer inconstitucionalidade. A maioria do MPLA certamente assegura o voto popular favorável ao modelo de legitimação do Presidente da República em caso de referendo constitucional que pode ser introduzido a todo o tempo em revisão constitucional. Para tamanha empreitada basta a ousadia de grupos parlamentares, representantes da oposição civil, com forte vontade na defesa dos interesses da nação. Uma atitude que lavaria a honra de partidos como a UNITA que declinaram a aprovação do presente texto constitucional estando obrigados a gerir o exercício parlamentar sob a sua sustentação.