Luanda - Assinala–se, em todo o mundo, o dia internacional da cidadania, a 18 de Maio. Aqui, no nosso pais, onde há um gosto particular para pelas  comemorações, a data passou quase despercebida. Digo quase porque houve quem se tenha lembrado de assinalar esse  dia procurando falar do sentido dessa palavra que é cidadania. Foi o caso meritoso da Rádio Luanda. Fui convidado para estar presente, no espaço das 8 às 10 horas e lá fui. Nos estudios tive o prazer de encontrar  Fátima Viegas que também tinha sido convidada para o mesmo efeito.


Fonte: Club-k.net


Começamos então a falar do tema, guiados pelo  pivot (gosto  desta palavra, pois o seu campo semantico esta associado a ideia de centro aglutinador, organizador e distribuidor de uma actividade; aprendia–a quando jogava basquetebol e designavamos então o base por esse nome) dizia, guiados pelo  pivot do programa, o Paulo Miranda. Coube a mim começar a falar e comecei por dizer que a cidadania, antes de mais, é entendida como a ligação entre  um indivíduo e um soberano, uma pessoa e um Estado. E que a cidadania, neste caso, seria definida como uma relação política que sustenta a inserção de um indivíduo numa polis (em grego) ou numa civitas (em latim). Neste sentido, a cidadania confunde –se  com o conceito  de nacionalidade porque valoriza os traços distintivos dos membros de uma comunidade política.


Mas a cidadania é mais do que esse laço político, a cidadania é definida por dois elementos: um elemento identitário que se traduz no sentido de pertença partilhado pelo conjunto de membros de uma mesma comunidade social e um elemento estatutário que se expressa pelo conjunto de direitos (e deveres) de que é portador cada membro da comunidade e desta no seu todo. Para além disto, disse que a cidadania podia ser entendida num plano abstrato enquanto núcleo de direitos atribuidos a cada membro da comunidade e num plano concreto, a partir das formas de acesso a esses direitos. O que faz da cidadania não apenas uma realidade jurídica mas também uma realidade social. A cidadania expressa –se pela relação entre o cidadão –direitos (sujeito de direitos positivos) e o cidadão –social (ser integrado num meio, onde se desenvolve em relação com outros individuos ou instituições). Isto implica saber quais são os modos e lugares de realização desses direitos que prefazem o estatuto de cidadão. A cidadania ultrapassa pois o mero ambito legal, a simples consagração formal de direitos abstractos, demanda que estes se materializem, através da capacidade, em concreto, de acesso a recursos e bens.

 

E se esta capacidade não é endógena à família ou ao próprio membro da comunidade, a sociedade tem que a assumir como sua através da expressão da solidariedade que é também  um garante da coesão social. Ora, a solidariedade implica a socialização dos riscos  do desenvolvimento desigual e, mesmo, do trabalho. Na verdade, a cidadania implica uma solidariedade a todos os níveis que permita todos os seres humanos participarem do conjunto de bens disponíveis, nomeadamente daqueles que são absolutamente inerentes à condição humana, quer através da sua produção, quer através da sua partilha.

 

Então uma cidadania plena implica a liberdade de escolha dos governantes, numa sociedade   de concorrência, não apenas económica mas também política, aberta à emulação de projectos e pessoas. Implica a possibilidade de fiscalização do cidadão destes eleitos mas também a participação dos próprios cidadãos nas escolhas e determinação das políticas públicas.  

 

Ora, o que se constatava no pais é que a cidadania em concreto tinha muito pouco de real. Desde logo porque o salário minimo nacional adquirido não chegava para comprar a cesta básica definida pelo Ministério do Planeamento que é constituida por um conjunto de produtos tidos como essenciais para as famílias angolanas não descerem para lá da linha vermelha humana. Dito isto, deixando para depois a possibilidade de falar de forma mais amiude dessa relação entre o cidadão-direitos e cidadão-social, passei a palavra a Paulo Miranda que colocou de imediato a mesma questão a Fátima Viegas. Esta corroborou, no geral, o que já tinha dito, e sublinhou o papel da solidariedade como elemento da cidadania. Dando como exemplo os direitos de cidadania, consagrados na Constituição, enfatizou os esforços do governo para  resolver os graves problemas sociais que o país vive e que impedem quase cerca de 68% dos angolanos de disfrutarem de uma cidadania plena, para lá dos simples direitos civis.

 

O empenho militante de Fátima Viegas, motivado pelas minhas leves críticas ao governo, levou-a a dar como exemplo de cidadania a realização do CAN, pois para ela o CAN tinha sido um motivo de orgulho nacional, procurando reforçar a sua opinião pelo facto de eu  ter dito antes, ao falar do elemento identitário, que vibrava, como todos os angolanos, as nossas meninas ganha o campeonato africano de andebol, ou quando a nossa selecção de futebol ganha um jogo. Logo que retomei a palavra discordei deste culto do orgulho nacional por teremos organizado um CAN exemplar. E disse que o CAN tinha sido, no minimo, uma escolha equivocada, pois o país gastou (segundo a revista Exame) 2 mil milhões de dolares americanos que dificilmente terão retorno quando deixou de aplicar quantia equivalente, por exemplo, nos sectores das águas e da educação. Areas estas que são, como já o disse, em outros textos, as prioridades estrategica e social do país. E essa escolha equivocada, que gerou uma certa euforia, momentânea, de uma parte dos angolanos, que poderá ter feito as glórias do poder, aos olhos do futebol africano, era motivo impeditivo do exercício de direitos de cidadania de muitos mais angolanos que continuam privados de acesso à escola e à àgua potável.

 

Prova disto, acrescentei, é a imagem emblemática do Estádio 11 de Novembro, em Luanda, que na sua imponência, magestatica e solitária, ofusca a abandonada obra do Campus Universitário (que devia ter terminado em 2006 e, somente este ano,  foi anunciada a conclusão da primeira fase) e da Estação de Tratamento de Águas de Bita-Viana que deveria garantir o abastecimento de água potável a zona circunvizinha e, nomedamente, ao complexo habitacional do chamado novo Kilamba Kiaxi.

 

Aí, a mão invísivel da ditadura coagiu Paulo Miranda a terminar abruptamente o programa. Como bom profissional, nada disse, mas despediu-se dos seus dois convidados e encerrou o debate, cerca de meia hora depois dele ter começado. Quando me despedi das pessoas da redacção reparei que o próprio director da Rádio Luanda lá estava com ar preocupado e, quiça, encabulado, por ter cedido a pressão vinda de cima. As comemorações do dia da cidadania ficaram assim marcadas pela violação dos direitos de cidadania.