E ainda, se for possível, ver minha avó envolvida em seus trajes tradicionais, seus panos, suas “bugingangas”, suas missangas,  cheias de delírios tradicionais, cheio de delírios africanos. Mais africano que o Kilimanjaro é o cachimbo da minha avó. Que, eu, infalivelmente encontrava sem muito esforço  em algum canto da casa, esquecido, quando ela de maneira inevitável  se auxiliava de minha ajuda.

Quantas vezes não servi de memória a África. A África para mim é uma grande alma, um grande espírito feminino, de preferência aquele espírito que não se vende: o irrenunciável espírito e desejo de ser africano ou africana. É a carapinha, a cabeleira  dura e branca da minha avó (minha querida avó); branca e dura como as Neves do Kilimanjaro, que nunca se derretem. Nunca se rendem, ao sol e aos zangões azarões que existem por aí.

Cobiçada ou não, não é o que importa. Hoje a África viaja, emigra, desfila nas passarelas de todo mundo. Se renuncia o que é, e isso não importa, é coisa de poetas,  afinal como uma senhora conservadora que foi no passado, hoje ela precisa emancipar-se, e sempre haverá uma boa justificação pelas suas atitudes modernas. A modernidade não pode excluir a África do seu sonho de exibição e extravagância. 

Nada de críticas, a África precisa  mostrar o que tem de melhor: sedução, feitiço, magia, oportunismo, cobiça e  enfim a beleza. Mostrar a beleza,  se preciso renunciar o irrenunciável, “o impossível”.  A África pode, sim, e deve. Quem não pode cometer o pecado de renunciar são os poetas, esses sim são fiéis, a ela, eternamente e a tudo que existe por aí de bom e tradicional. Esses podem fazer as coisas de maneira incondicional, fazer juramentos, deixar e/ou escrever testamentos, cantar, clamar e gritar por ela.
É ela que tem que ser reverenciada e definir a natureza dos nossos instintos, da nossa cultura, das nossas tradições. Ela é a base, o início de todos os princípios, é a natureza. Por isso, não precisa de censura, conselhos e toda essa cultura que os homens, em particular os poetas, criaram em cima dela.

Se antes era saqueada, hoje precisa vender, ser vendida, corrompida e corromper. Enfim, a  África precisa de trabalhar como qualquer uma boa empreendedora. Ela modernizou-se  ou tem modernizado-se. Não é mais a quintandeira dos balaios( das laranjas- “laranja minha senhora, compra laranjas”)  isso já era; quanto mais o que pode aparecer e surgir na esquina é uma quinguila. Uma quinguila pensando em alternar seu negócio, já que o dólar moeda forte e atrativa, pode um dia correr o risco de não servir, nem mais para satisfazer a cobiça dessa modernidade; que só a África entende o seu valor e importância, não servirá nem mesmo para corrompe-la. Hoje a África  fecha contratos, possivelmente estabelece regras, anuncia sua vaidade e até diz que está solteira; e que precisa de namorado.

Eu sinceramente me apaixonei pela idéia. De mulher forte, reservada que era, hoje a África abre-se, como uma flor. Pode ser em busca dos raios solares, ou do zangão atrevido e corrupto, sempre com uma proposta indecente, fazendo a melhor das incursões. Melhor  do que isso só a oferta de um poeta , um bardo, um vate, que “canta de alma e nunca mente”.

Quem cobiça a África, primeiro, tem que poder. Não basta querer. Mais africano que a África é o mistério, os milagres de nossas difíceis mulheres, mais africano do que o Kilimanjaro é apaixonar-se por uma delas. É tão africano e tão difícil quanto escalar as “Neves do Kilimanjaro”, assim é a África, misteriosa, difícil e complicada. É um coração difícil, o coração africano. Hoje deixou de ser um coração cheio de curiosidades a ser desvendado; é ela que desvenda, procura, recebe convites, sem nenhum tipo de constrangimento. Enfim, a África despertou. E é ela agora que vai em busca de delírios.

A África ficou distante de todos, e o pior, é que ninguém se atreve a perguntar na mesma: onde está  a sua carapinha? Corre o risco de ser perfeita, e, assim, deixar de ser natural. Quem quiser ver a África, agora terá que viajar a Lisboa, a Nova York. Ou então, se poder, comprar as revistas e os jornais mais caro. Enganam-se aqueles que pensam que ela fará noticias para o Jornal de Angola, ela não dá bola a essa gente racional e que vivem do excessivamente correto, do logicamente correto e da responsabilidade concisa.

A África venceu, e com razão! Assim, hoje debocha de todos e tudo. Dá-se até o luxo de fazer caridade, coisa boa, e que está em moda para o pessoal fino, elegante, bonito e rico, quem está lá em cima na elite deve fazer caridade, se os milionários podem, por que ela não pode? Ela não tem culpa. Faz o que faz porque precisa mostrar aos homens  e ao mundo aquilo que sempre esteve escondido como fenômeno de repressão e humilhação.

A  África, aquela, a da minha avó, que nunca precisou de passarelas, para mim não morreu, ainda é parte das minhas ilusões, da minha alma. E a de hoje é parte dos meus sonhos, é  a minha visão do futuro.


* Nelo de Carvalho
Fonte:
www.a-patria.net