Lisboa - O maior, o mais internacional, o mais militante, o mais polémico dos escritores portugueses - qualificativos não faltarão aos "media" para noticiar a morte de José Saramago, hoje, aos 87 anos. Concorde-se ou não com eles, já em vida foram estes os "títulos" mais correntemente utilizados em referência ao escritor desde que se tornou conhecido na praça literária - o que aconteceu tarde, como a simples consulta da sua biografia permitirá concluir. 


* Raúl Malaquias Marques
Fonte: Lusa


Nobel português deixa vasto legado literário marcado pela polémica

Há três passos centrais nessa biografia: o primeiro leva-o da Azinhaga humilde onde nasceu, a 16 de Novembro de 1922, para Lisboa, cenário de várias experiências profissionais antes de se consagrar às Letras, o segundo de Lisboa a Estocolmo, para receber o primeiro Nobel da Literatura em língua portuguesa, o terceiro de Lisboa para Lanzarote, em 1993, por diferendo com o poder cultural de então.


A história desse diferendo veio amplamente contada nos jornais. Em síntese: o então subsecretário de Estado da Cultura, António Sousa Lara, vetou a candidatura do romance "O Evangelho segundo Jesus Cristo" a um prémio literário internacional.


Alegou o governante que era "ofensiva" para os católicos portugueses a tese defendida por Saramago no romance.


Por motivos religiosos, como neste caso, ou socio-políticos, como quando em 1994 a maioria (PSD) da Câmara de Mafra considerou o "Memorial do Convento" prejudicial para a imagem da vila e rejeitou dar o nome do escritor a uma escola secundária local, algumas das obras de Saramago geraram incomodidade ou suscitaram leituras extrapoladas do texto literário.


 A par da sua militância comunista, por muito que nem sempre aplicadamente ortodoxa, era característico de Saramago o tom "sem papas na língua", dentro e fora de Portugal, quando desaprovava práticas e políticas que a seu ver transgrediam normas consagradas nas legislações nacionais e nos tratados e convenções internacionais.


Em 1998, a Academia Sueca deu-lhe o Nobel da Literatura. Em Portugal e no estrangeiro, os aplausos aconteceram ao mesmo tempo que declarações de indiferença, se não de aberta hostilidade, e não faltou quem sugerisse que a distinção - mais uma vez na história do Nobel - ficara a dever-se mais à militância do que à escrita de Saramago.
 

 De escritor, por essa altura, e tomando "Os poemas possíveis" como a sua primeira obra "reconhecida" - não cronologicamente a primeira - já Saramago tinha oficina montada há 32 anos.


" parte uma primeira ficção, aos 22 anos, que só muito mais tarde, já consagrado internacionalmente, aceitou republicar (Terra do pecado), Saramago começou tarde no género que seria o da sua eleição e o da sua glória como escritor: o romance, com 16 obras publicadas.


A menos que tenha deixado inéditos nessa área, só mesmo o ensaio não motivou José Saramago como escritor.


De resto, nada literariamente lhe foi "estranho": escreveu poesia, crónica, conto, teatro, memórias, fez crítica literária em jornais e revistas, literatura de viagens, escreveu para crianças.


Defende o ensaísta e crítico literário Carlos Reis que, logo na poesia ("Os poemas possíveis", em 1966) e na crónica ("Deste mundo e do outro", de 1971, e "A Bagagem do viajante", de 1973), se evidenciam sinais do Saramago ficcionista.


 Os volumes de crónica - escreveu Reis - "revelam uma personalidade muito atenta ao seu tempo: a experiência do social, o olhar sobre o típico, a atenção às personagens do quotidiano são aspectos que decisivamente interferem na constituição do romancista".


 "De modo diferente, mas não menos efectivo, também algo da criação poética (Os poemas possíveis, Provavelmente alegria e O ano de 1993) prepara e anuncia - na opinião do ensaísta - a emergência do romancista, tanto no que toca ao privilégio de recorrentes opções temáticas como no que respeita ao culto de certas estratégias discursivas".


 É de 30 anos o intervalo entre a primeira incursão de Saramago na escrita ficcional e aquele que é habitualmente apontado como o seu primeiro "grande romance" - o "Manual de Pintura e Caligrafia".


 Logo no "Manual" - segundo Reis - Saramago abre "uma vasta reflexão, em registo ficcional, sobre questões cruciais do homem, da sociedade e da literatura do seu tempo".


 Três anos depois, com um livro de contos - "Objecto quase" - e uma peça de teatro - "A noite" - entretanto somados ao currículo, "Levantado do chão", a epopeia de uma família de camponeses desde o princípio do século até aos primeiros anos pós-25 de abril, é o romance da confirmação - confirmação das suas potencialidades de escritor e das suas "opções temáticas".


A ensaísta Maria Lúcia Lepecki considera que "Levantado do chão" "abre novos caminhos na ficção portuguesa. "Na escrita, na linguagem, no modo do imaginário - escreveu - 'Levantado do chão' é profundamente inovador, revolucionário, no quadro da narrativa portuguesa de hoje".


A partir de "Levantado do chão", como assinalou Carlos Reis, "a problematização da história" passa a ser "um aspecto central da obra saramaguiana em particular na ficção narrativa, mas também em algum teatro".


 Acontece assim, depois daquele romance, no teatro de "Que farei com este livro" (com Camões no centro do drama), na ficção de "Memorial do Convento" (Mafra e a sucessão de D. João V), "O ano da morte de Ricardo Reis" (o Estado Novo), "História do cerco de Lisboa" (a conquista de Lisboa, o direito de rever - reavaliar - o texto histórico). Todos estes livros foram escritos pelo autor em Portugal.


 A seguir, em Lanzarote, onde se instala em 1993, Saramago produzirá um conjunto de obras em que é nítida uma mais contida utilização do material histórico que lhe serve de base. O escritor passou a outra "instância": em títulos como "Todos os nomes", "A caverna", "O homem duplicado", "As intermitências da morte", "O ensaio sobre a lucidez" (ressalvada a paródia política), "O ensaio sobre a cegueira" (levado ao cinema pelo realizador Fernando Meirelles) "Don Giovanni ou o dissoluto absolvido", aparece claramente no centro do seu discurso ficcional o homem em face dos seus limites, das suas angústias, das suas interrogações.


 Em articulação com o discurso ficcional, o discurso cívico. Sobretudo depois do Nobel, Saramago desdobrou-se em intervenções públicas, em muitas das quais entrou em rota de colisão com instituições e governos, como o dos Estados Unidos ao tempo de George W. Bush, pela política de agressão, o de Israel, pela intervenção nos territórios palestinianos ocupados, e o de Cuba, pelo fuzilamento de adversários políticos.


 A obra vasta e diversificada do escritor está traduzida em mais de 30 países e foi distinguida com numerosos prémios nacionais, como Prémio Camões (1995) e internacionais.


Além da sua obra, Saramago deixa uma fundação com o seu nome que funcionará na Casa dos Bicos e tem como objecto - como se lê nos estatutos - "promover o estudo da obra literária do seu Instituidor bem como da sua correspondência e espólio e respectiva preservação".