Lisboa - A rainha Ginga (1582-1663) é apresentada como "uma protonacionalista angolana, na luta contra o poder colonial português, e uma heroína de todo o continente" numa nova obra de referência publicada em França sobre "a mulher mais famosa de África".


Fonte: DN


Ana de Sousa N'Jinga M'Bandi, a célebre rainha Ginga, "é uma das figuras mais fascinantes da história africana", resumiu o historiador e editor francês Michel Chandeigne, entrevistado pela Lusa em Paris.

 

Michel Chandeigne, fundador da Livraria Portuguesa em Paris e especialista da história da expansão portuguesa, acaba de publicar N'Jinga, Rainha de Angola, numa edição de referência do relato do padre Antonio Cavazzi de Monteccuccolo (1621-1678).

 

O volume, de 416 páginas, é a história da conversão de "uma rainha terrível" ao catolicismo, considerada durante muito tempo como a força anticristã mais terrível da África Central, explicou Michel Chandeigne à Lusa. Ginga reinou durante 40 anos e resistiu quase 30 aos portugueses, com as suas tropas de Jagas, "uma seita cruel".

 

O relato de Cavazzi, um missionário que desprezava os africanos mas que paradoxalmente estudou em detalhe os seus cultos, é também o resultado do fascínio que a heroína angolana exercia sobre os seus contemporâneos. O fascínio foi partilhado pelo missionário que devia salvá-la para o Deus cristão e que foi seu confessor. Cavazzi oficiou ele mesmo as exéquias da "Rainha dos Jagas".

 

"Ginga era uma mulher inteligente. Todos, mesmo os seus inimigos da época, têm um discurso unânime sobre isso. Tinha uma liberdade sexual total. Dormia com escravos que estavam à sua disposição sob ameaça de morte se tivessem encontros com qualquer outra mulher", recorda Chandeigne.

 

"Ginga tende a ficar na história africana como a grande heroína do continente. Morreu muito velha. Era uma mulher com uma força de homem, digamos, que comandou as suas tropas no campo de batalha durante muitos anos. É uma figura proto nacionalista de resistência aos portugueses e à opressão", acrescenta também o historiador francês.

 

"Ao contrário do que se passou no Congo, onde a Igreja local estava nas mãos da elite do país e onde a população abraçou por sua vontade o cristianismo, em Angola a adesão à nova fé foi reticente e forçada", escrevem no prefácio ao livro Linda Heywood e John K. Thornton, dois dos maiores especialistas do período abrangido pela vida de Ginga.

 

O testemunho de Cavazzi "é excepcional porque o homem era muito atento às práticas culturais, aos cultos dos africanos, aos vestidos, à vida quotidiana. É um testemunho ímpar na história das missões e temos também desenhos com descrição de sacrifícios, práticas de justiça, penas de morte", iconografia que corresponde aos relatos de grande crueldade que atravessam a obra.

 

A edição da Chandeigne sobre a rainha Ginga, resultado de dez anos de trabalho, corresponde à primeira versão da Histórica descrizione de tre regni Congo, Matamba ed Angola, manuscrito descoberto em Modena (Itália) nos arquivos da família Araldi, em 1969. É deste manuscrito "perdido" que Chandeigne reproduz as aguarelas com cenas da vida na Matamba seiscentista.

 

"Era uma mulher de poder, uma mulher livre, uma grande heroína africana", resume Michel Chandeigne. "Espero que com este livro o fenómeno ultrapasse as fronteiras do mundo lusófono."